Calvinismo e Missões: para a glória de Deus

Josaías Jr.

Obs.: Para saber mais sobre os cinco pontos de Calvinismo, sugiro a nossa série de Pródcasts sobre o assunto.

A doutrina da Eleição não é barreira para Missões. O pecado, sim.

Costuma-se dizer que os reformados não fazem missões porque creem na doutrina da eleição. Acredito que essa acusação é injusta, não porque os calvinistas são exemplo em tudo ou sejam reconhecidos como ardentes colaboradores da causa missionária (mas existem vários assim!), mas porque a Eleição, se bem compreendida, não impede as Missões. O que impede as igrejas calvinistas de realizar a obra missionária é a preguiça, a autojustificação, a falta de amor e um pouco entendimento do senso de urgência.

Muitas vezes, ouvimos relatos de conversões e rapidamente respondemos que números de mãos levantadas não representam necessariamente conversões ou que técnicas antibíblicas de evangelismo podem provocar mais dano que bênção.  Concordo com tudo isso. Mas temo que muitas vezes eu (e outros reformados) falo isso sentado em meu sofá enquanto assisto uma maratona de Doctor Who. Ver o episódio seguinte é mais interessante que o próximo – e o distante.

O curioso é que, de fato, a teologia reformada como um todo oferece uma base poderosíssima para a obra missionária. Seus distintivos teológicos, por serem bíblicos, são mais do que precisávamos para nos envolvermos com missões. É por isso que não creio que as igrejas calvinistas não se envolvam com missões e evangelismo. Elas se envolvem, sim. Talvez você não esteja na mesma situação apática que eu e muitos outros, mas acredito que a maioria de nós deveria se envolver de maneira mais sacrificial com Missões.  Poderíamos fazer muito mais se carregássemos nossos pressupostos com mais convicção.

Assim, nesses dois textos, pretendo refletir um pouco sobre a obra missionária de uma perspectiva reformada. Não sou missiólogo, nem pretendo trazer uma obra extensiva sobre o assunto. Desejo apenas lembrar a você (e a mim mesmo) da importância de Missões. Antes, porém… vamos voltar ao princípio – o que são missões e qual o seu propósito?

O que são Missões?

O texto básico da obra missionária encontra-se em Mateus 28 e é bastante conhecido.

Foi-me dada toda a autoridade no céu e na terra. Portanto ide, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo; ensinando-os a observar todas as coisas que eu vos tenho mandado; e eis que eu estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos. (Mateus 28.18-20)

O que chama atenção aqui é que essa é uma obra cristocêntrica. Note que a obra de missões baseia-se na obra e na autoridade de Cristo. Ela também tem como base o envio de Cristo pelo Pai (João 20.21). Ou seja, é uma obra que deve ser fundamentada em Cristo, não no homem. Muitas vezes as igrejas se esquecem disso e ignoram o verso 18, a base para o tão famoso “Ide”. A partir dessa omissão, surgem doutrinas que colocam o homem no centro, tanto como motivação para os chamados como o propósito final de missões.

A obra missionária tem uma mensagem que envolve fazer discípulos, isto é, ensinar sobre a obra de Cristo e a vida em Cristo. O alvo dessa atividade são todas as nações (conforme vimos em Apocalipse) e a certeza de que ela será vitoriosa é que aquele que tem toda a autoridade está conosco. Ou seja, do princípio ao fim, essa é uma obra centrada em Jesus Cristo.

Outro texto importante está em Atos 1.8:

Mas recebereis poder, ao descer sobre vós o Espírito Santo, e ser-me-eis testemunhas, tanto em Jerusalém, como em toda a Judéia e Samaria, e até os confins da terra.

Novamente, a missão envolve a autoridade de Cristo (como aquele que derrama o Espírito), a ação do Espírito Santo (capacitando os discípulos) e o alvo, que são todas as nações.

Um detalhe importante: aqueles que estão perto de nós também são alvo de missões, como “tanto em Jerusalém” nos ensina. Assim, todo cristão é um missionário. Ou, como disse Spurgeon, “todo cristão ou é um missionário ou é um impostor”. Estamos em missão, nas áreas em que atuamos, seja no trabalho, no parque, no café, na academia, na escola ou na faculdade. Até mesmo na igreja, dependendo do caso.

Não fomos feitos para nos sentir completamente à vontade neste mundo. Fomos feitos para estar no mundo, mas não dele. Nós estamos como um povo profético que tanto acolhe o forasteiro, e confronta o mundo com a rejeição do Deus que os criou. Precisamos ser uma comunidade que está cheia de amor para o mundo, e se empenha avidamente na tarefa de evangelização que Deus nos deu. (Adrian Warnock)

Tendo isso em vista, uma definição de Herman Bavinck nos ajudará a entender melhor essa atividade:

“Missões é aquela atividade da igreja, essencialmente nada mais do que a atividade de Cristo realizada por meio da igreja, pela qual a igreja, neste período intermediário, chama os povos da terra ao arrependimento e à fé em Cristo, de modo que se tornem seus discípulos e, pelo batismo, sejam incorporados à comunhão daqueles que esperam a vinda do Reino.”

Creio que ele resume bem e deixa claro que essa é uma “atividade de Cristo realizada por meio da igreja”. Não podemos esquecer: o “ide por todas as nações” é emoldurado pelo “toda a autoridade me foi dada” e pelo “estou convosco”. Antes do imperativo, o indicativo – e, nesse caso, depois também!

[tweet link=”http://iprodigo.com/?p=5627″]Não podemos esquecer: o “Ide por toda nação” é emoldurado por “Toda a autoridade me foi dada” e por “Estou convosco”.[/tweet]

Missões e Adoração

Em igrejas com tendências mais arminianas, é costume valorizar Missões como o propósito principal da igreja. É claro que a obra missionária é importantíssima, mas colocá-la em primeiro lugar diminui um pouco o que significa ser servo de Cristo, membro da igreja e parte da Nova Criação de Deus. Em geral, essa ideia pode levar irmãos e irmãs a considerarem suas outras ocupações atividades menores. É a velha separação entre vida secular e vida religiosa, como se apenas um lado glorificasse mais ao Salvador.

O Catecismo de Westminster nos lembra que o fim principal do homem é “glorificar a Deus e gozá-lo para sempre”. Fomos criados, em primeiro lugar, antes de existir igreja, Israel e mesmo da queda, para a glória de Deus. O ser humano foi feito para adorar o seu Criador em todas as áreas da vida – e também assim os redimidos farão eternamente. O que deve estar por trás de missões, da oração, do culto público, do trabalho, da arte, da família do cristão é a glória de Deus e a satisfação nele.

John Piper nos diz que as missões falham quando não há adoração – no sentido amplo de “fazer tudo para a glória de Deus” (1 Co 10.31) –  porque a adoração é essencial:

“As missões não representam o alvo fundamental da igreja, a adoração sim. As missões existem porque não há adoração, ela sim é fundamental, pois Deus é essencial e não o homem. Quando esta era se encerrar e os incontáveis milhões de redimidos estiverem perante o trono de Deus, não haverá mais missões. Elas representam, no momento, uma necessidade temporária. Mas a adoração permanece para sempre”.

Piper quer dizer que se realmente glorificarmos, amarmos e nos deleitarmos com Deus, seu nome será anunciado de maneira clara, gloriosa e atraente. Se considerarmos o Senhor Jesus como o tesouro mais valioso, nosso bem mais querido, nossa maior alegria, desejaremos que outros o conheçam e desfrutem também da alegria que é conhecê-lo. Lesslie Newbigin, missionário escocês, vai mais além e afirma:

Missões começam com uma certa explosão de alegria. As notícias de que o Jesus rejeitado e crucificado está vivo é algo que não pode ser suprimido. Deve ser anunciado. Quem poderia permanecer em silêncio sobre tal falto?… No coração de missões está a ação de graças e o louvor… Missões é doxologia colocada em prática. Esse é seu segredo mais profundo. Seu propósito é que Deus possa ser glorificado.

Muitos esperam sentir algo especial por algum povo – seja para evangelizá-los, para contribuir com certo projeto, ou mesmo parar orar. Entretanto, Piper nos diz que, mesmo se não sentirmos “aquele amor” especial por alguma nação, por amor ao nome de Deus devemos fazer e contribuir com missões.

E todo aquele que tiver deixado casas, ou irmãos, ou irmãs, ou pai, ou mãe, ou mulher, ou filhos, ou terras, por amor de meu nome, receberá cem vezes tanto, e herdará a vida eterna. (Mateus 19.29)

“Pelo qual recebemos a graça e o apostolado, por amor do seu nome, para a obediência da fé entre todos os gentios.” (Romanos 1.5)

Existe em nossas mentes o costume de separar obrigação de satisfação. De um lado estão aqueles que entendem que obedecer uma ordem tira o prazer e a espontaneidade de certo ato. É a turma do “filho pródigo”, do “proibido é mais gostoso”. Do outro, estão aqueles que pensam que satisfazer-se e alegrar-se em determinada tarefa nos transforma em egoístas. Devemos obedecer por obedecer. É o pessoal do “filho mais velho”. A Bíblia não faz essa distinção. Ela diz que feliz é aquele que tem prazer nos mandamentos de Deus. Que a busca da glória de Deus cumpre mandamentos e satisfaz a alma. Logo, Paulo pode dizer “ai de mim se não pregar” enquanto se alegra por ser preso graças ao Evangelho. É o exemplo do Filho, a vida de Cristo, que pela alegria e por obediência, derramou sua vida na cruz.

Assim, a glória de Deus deve ser a motivação e o alvo das missões. Por amor ao nome de Cristo, por obediência à sua Palavra, por nossa satisfação e alegria nele, deveríamos nos envolver mais e mais na obra missionária. Como disse Jim Elliot, “Não é tolo quem dá o que não pode manter para ganhar o que não pode perder”. Que essa seja a nossa convicção.

Na segunda parte, veremos como os distintivos da teologia reformada deveria nos levar à uma obra missionária mais ousada e sacrificial.