A inescrutabilidade e o Problema do Mal

K. Scott Oliphint
K. Scott Oliphint

O falecido Antony Flew contou certa vez a parábola do “Jardineiro Invisível”: dois exploradores encontram um jardim no meio de uma floresta. Nesse jardim há muitas flores e muita grama. Um dos exploradores afirma que deve haver um jardineiro que cuida da relva, enquanto o outro nega. Eles começam a vigiar, mas ninguém aparece. O explorador que acredita no jardineiro ainda afirma sua crença, mas sugere que talvez ele seja invisível. Os dois exploradores então armam uma cerca elétrica ao redor do jardim e a patrulham com cães de caça. Nada acontece. A cerca nunca é tocada e os cães nunca latem. Aquele que acredita mantém sua crença no jardineiro. O jardineiro, ele afirma, é invisível, intangível e insensível a choques. Ele não cheiro e não faz som algum, mas ele ama e cuida do jardim. Finalmente, o mais cético se desespera e questiona o mais crente sobre qual seria a diferença entre esse jardineiro hipotético e a ausência completa de um jardineiro.

Há, pelo menos, dois aspectos na história de Flew. O primeiro é o aspecto filosófico. Flew estava tentando ilustrar que qualquer afirmação que não possa, pelo menos de alguma forma, ser falsificada, não faz sentido. Seu argumento é que qualquer afirmação que tente cobrir tudo, no fim, não significa nada. Para uma afirmação ter significado, ela precisa ser confrontada por negativas.

O segundo aspecto da parábola de Flew é mais revelador. Ao escrever sobre a explicação dela, Flew diz:

Alguém nos diz que Deus nos ama como um pai que ama seus filhos. Nos afirmam isso com veemência. Então vemos uma criança morrer. O Pai Celestial não demonstra nenhum sinal óbvio de preocupação. Algumas qualificações são feitas. O que seria necessário acontecer para nos possibilitar dizer que “Deus não nos ama” ou até mesmo “Deus não existe”? O que precisaria acontecer para constituir para vocês uma prova negativa do amor ou da existência de Deus?

A conclusão de Flew é que o Deus do cristianismo está morto; Ele morreu a morte das mil qualificações. E foi o problema do sofrimento e do mal que motivou essa conclusão.

A motivação por trás da parábola de Flew é “o problema do mal”. Esse é um problema recorrente na história do pensamento. Generalizando, esse problema diz que não é aconselhável, se não simplesmente irracional, continuar a acreditar em algo quando há evidência que diminui ou mesmo nega sua verdade. Assim, nos dizem, não é aconselhável, se não simplesmente irracional, crer no tipo de Deus que os cristãos crêem quando, ao nosso redor e pelo mundo inteiro, há evidência do contrário – evidências que diminuem ou mesmo negam essa crença.

Seja lá o que for que pensemos da parábola do Jardineiro Invisível de Antony Flew, todos nós podemos nos relacionar de alguma forma com a motivação por trás da parábola. E essa motivação é que, às vezes, aflições horrendas acontecem atingem as pessoas, e isso é óbvio para qualquer um que tenha seus olhos abertos. E a dificuldade com tais atrocidades é que elas continuam a acontecer, com uma regularidade nauseante, face à nossa insistência que Deus, que é a própria bondade personalizada, existe.

A primeira coisa que precisa ser dita é que o problema do mal é, talvez antes de tudo, um problema intensamente pastoral. Relegá-lo simplesmente ao campo intelectual é um mal em si mesmo. Entretanto, há também um problema intensamente filosófico que diz respeito a todos que trabalham na área da apologética cristã – a defesa da fé cristã. De fato, me parece que o problema do mal é um daqueles problemas onde as preocupações pastorais e filosóficas estão mais intimamente ligados. Se ele for propriamente tratado pela via filosófica, não há como não lidar, ao mesmo tempo, com pelo menos parte do problema pastoral.

O problema do mal ainda é considerado como o argumento mais forte contra o cristianismo, especificamente, ou contra o teísmo, de forma mais genérica. Ele é considerado o calcanhar de Aquiles do cristianismo, aquele capaz de fazer desmoronar todos os argumentos. Uma das razões para que o problema do mal seja considerado um argumento tão forte contra o cristianismo é que ele tem um apelo muito amplo. Diferente de argumentos epistemológicos ou metafísicos contra a existência de Deus, o problema do mal é aquele mais intuitivo, compreensível por, praticamente, qualquer um, filósofo ou não. Tudo o que precisamos é viver nesse mundo e temos visão privilegiada para entender que as coisas estão terrivelmente erradas. Quando pensamos na noção mais comum de Deus em relação a tudo que está terrivelmente errado, o problema se torna agudo.

O problema remonta até Epicuro (342-270 a.C.), e foi bem desenvolvido por David Hume em seus Diálogos sobre a Religião Natural. Ele é articulado em duas posições que, como muitos dirão, são contraditórias:

1 – Deus é onisciente, onipotente e completamente bom.

2 – O mal existe.

Há duas formas básicas de argumentar contra a inconsistência dessas duas proposições. A primeira, e a mais predominante historicamente, é argumentar que essas duas proposições são logicamente contraditórias. Esse argumento ainda é usado por alguns, mas tem dado espaço para o chamado argumento “evidencial” do mal, e é uma tentativa de mostrar que, dada a imensa quantidade de evidência do mal no mundo, Deus, provavelmente, não existe.

Em outras palavras, o argumento evidencial começa nos pedindo para olharmos ao redor e vermos se coisas ruins acontecem. Pessoas sãs dirão que sim. Então o argumento evidencial avança mais um passo. Ele até admite o ponto de que talvez seja o caso de que coisas ruins acontecem para o bem. Isso é, ele admite algum mérito à defesa do “Bem maior” – uma criança sendo vacinada ou um paciente de quimioterapia. Mas então ele faz outra pergunta. Ele nos pede para olharmos ao redor e vermos se há algum mal no mundo que acontece sem justificativa.

Há um livro recente sobre esse assunto, cujo título é God and the Inscrutable Evil (Deus e o Mal Inescrutável). O argumento evidencial depende não só da existência do mal, mas da existência do que ele chama de mal inescrutável. Esse é o mal, um autor nos explica, para o qual não há nenhuma razão divina que o justifique. Ele quer dizer que esse mal é inexplicável – não pode ser explicado mesmo que se apele para Deus.

Então, aqueles que afirmam o argumento evidencial primeiro propõe que o ma, e grande parte dele, é fundamentalmente inescrutável. Isso é, existe um tipo de mal para o qual não há uma “justificativa divina”. Por que pensamos que deve haver uma justificativa divina? Parte da resposta a essa questão está na linguagem que usamos para discutir o problema.

No século XVIII, um filósofo chamado Gottfried Wilhelm Von Leibniz escreveu uma obra chamada Teodiceia. A palavra em si carrega a noção de que o mal só pode ser suficientemente explicado se soubermos as razões de Deus para ele.

Mesmo o mais piedoso de nós, em nossos momentos de maior honestidade, quer alguma explicação para certos tipos de mal. E pedimos uma explicação não porque queremos saber tudo, mas porque sabemos que essas coisas não se encaixam naquilo que sabemos. Assim, o argumento evidencial pode parecer, em grande parte, plausível. E os que o afirmam vão mais longe e dizem que, a não ser que possamos mostrar a eles as justificativas divinas para o mal inescrutável, isso é, a não ser que nós, cristãos, possamos fazer o mal inescrutável “escrutável”, então eles tem que concluir que Deus provavelmente não existe, no fim das contas.

O problema, entretanto, é que a inescrutabilidade está localizada no lugar errado, inicialmente. É melhor, quando pensamos nesse problema, começar pensando não na Teodiceia, mas na Teofania.

O problema inicial com o problema do mal é que o próprio Deus é inescrutável. Pense por um minuto em alguém que é absolutamente independente. É de se surpreender que haja coisas que esse Deus inescrutável faça que as nossas mentes sejam incapazes de compreender? Paulo até mesmo nos diz que os caminhos e juízos de Deus estão além de nossa capacidade de sondar (Romanos 11.33).

Essa foi, claramente, a lição que Jó precisou aprender. Nós temos o privilégio de saber mais do que está acontecendo com Jó do que ele mesmo, então às vezes é muito fácil sermos duros com ele. Mas lembre-se de quando Jó quer uma resposta para o seu problema pessoal do mal. Como Deus responde Jó?

Disse ainda o Senhor a Jó: “Aquele que contende com o Todo-poderoso poderá repreendê-lo? Que responda a Deus aquele que o acusa!” Então Jó respondeu ao Senhor: “Sou indigno; como posso responder-te? Ponho a mão sobre a minha boca.     Falei uma vez, mas não tenho resposta; sim, duas vezes, mas não direi mais nada”. Depois, o Senhor falou a Jó do meio da tempestade: “Prepare-se como simples homem que é; eu lhe farei perguntas, e você me responderá. “Você vai pôr em dúvida a minha justiça? Vai condenar-me para justificar-se? Seu braço é como o de Deus, e sua voz pode trovejar como a dele? Adorne-se, então, de esplendor e glória, e vista-se de majestade e honra” (Jó 40.1-10)

Em meio ao sofrimento, Jó decidiu que era hora de toda essa inescrutabilidade acabar. Então ele diz a Deus que é hora de dar respostas. É preciso haver uma justificativa divina para o que está acontecendo com Jó, e com o mundo em geral.

E como Deus responde Jó? “Jó, você se esqueceu de algo crucial – Eu sou Deus, e além de mim, não há nenhum outro”. A inescrutabilidade está aos pés do Deus Todo-Poderoso e, assim, há coisas que nós simplesmente não iremos entender – coisas, como Jó diz, “que eu não entendia, tão maravilhosas que eu não poderia saber” (Jó 42.3).

Esse é o primeiro fato inescrutável. Mas há um segundo que nós encontramos nas páginas da Escritura que nos dão alguns vislumbres sobre a perspectiva de Deus sobre o problema do mal.

A maravilha desse Deus, o EU SOU, é que ele se anuncia como um Deus pactual, de alianças – o Deus de Abraão, Isaque e Jacó – e da igreja.

O que há de mais desconcertante na afirmação de Antony Flew não é que a teologia não faz sentido a não ser que seja ‘falsificável’, ou que Deus foi qualificado pelos cristãos a não-existência. O mais perturbador na afirmação de Flew está na sua razão para pensar como ele pensa: que Deus, nosso Pai Celestial, “não demonstra sinais de preocupação”.

Será que Deus realmente não revelou nenhum sinal de preocupação? Não só ele revelou sim, mas ele entrou no mundo e se identificou, da forma mais excruciantemente imaginável, com o problema – porque ele veio. E Aquele que era a própria imagem de Deus não considerou a igualdade com Deus ser algo a se apegar, mas esvaziou-se de si mesmo, tomou a forma de um servo e se tornou obediente, até a morte na cruz (Filipenses 2.5-11).

Esse Deus, que é o grande EU SOU, enviou Seu Filho, Seu Único Filho, para morrer por nós. Esse Deus, o EU SOU, tornou aquele que não conheceu o mal em mal, para o nosso bem, para que pudéssemos ser feitos justos perante Deus, nele.

Você quer saber sobre o inescrutável supremo? Isaías nos diz (em 53.10) que aprouve ao Grante EU SOU esmagar Seu único Filho – para que quando Seu Único Filho clamasse lá da cruz “Meu Deus, Meu Deus, porque me abandonaste?”, a resposta inescrutável fosse que Seu povo pecador, finito e sofrido pudesse viver.

Em Romanos 8.32, Paulo nos lembra do inescrutável supremo – nos lembra que Deus não poupou seu único Filho. Você se lembra do que Stuart Hine colocou em seu hino “Grandioso és tu”?

“Quando percebo que na cruz maldita / Por teu amor Jesus morreu por mim / E me livrou do jugo do pecado / Ali vertendo sangue carmesim”

Assim, nossa resposta para a parábola de Antony Flew, e a outros que Deus se curve perante suas inquisições, é simplesmente essa: quaisquer que sejam as razões de Deus para o mal nesse mundo, longe de não estar preocupado, ele veio até nós, e pagando o preço mais alto imaginável, sendo o único inocente que jamais viveu, foi posto em uma cruz para morrer. Assim, aqueles que colocam nele sua confiança podem dizer, com o apóstolo Paulo, que quaisquer que sejam as razões de Deus, apesar da inescrutabilidade de Seus caminhos, “considero que os nossos sofrimentos atuais não podem ser comparados com a glória que em nós será revelada.” (Romanos 8.18). Porque aquele que não conheceu o mal desceu até nós e se tornou mal por nós. Assim, pela Teofania, ele, pessoal e dolorosamente, resolveu o problema do mal eternamente. Nós realmente precisamos saber mais do que isso?