Estranhos em uma terra estranha

Josaías Jr.

Uma posição sempre enfatizada em livros que falam sobre o relacionamento entre cristianismo e cultura é que os cristãos “devem estar no mundo sem ser do mundo”. Alguns talvez pensem que esse é apenas um clichê, mas o apóstolo João parece compreender bem esse conceito. Embora esse texto não trate especificamente sobre cristianismo e cultura, veremos que não é sem motivo que usamos esses termos. O livro de Apocalipse usa uma curiosa expressão para falar sobre idólatras, ímpios ou pessoas que não conhecem a Deus. Observe:

“E adoraram-na [a Besta] todos os que habitam sobre a terra, esses cujos nomes não estão escritos no livro da vida do Cordeiro que foi morto desde a fundação do mundo.” (13.8)

“Como guardaste a palavra de minha paciência, também eu te guardarei da hora da tentação que há de vir sobre todo o mundo, para tentar os que habitam na terra.” (3.10)

“E clamavam com grande voz, dizendo: Até quando, ó verdadeiro e santo Dominador, não julgas e vingas o nosso sangue dos que habitam sobre a terra?” (6.10)

“A besta que viste foi e já não é, e há de subir do abismo, e irá à perdição; e os que habitam na terra (cujos nomes não estão escritos no livro da vida, desde a fundação do mundo) se admirarão, vendo a besta que era e já não é, ainda que é.” (17.8)

Existem outras passagens, mas essas já nos ajudam a observar um padrão: existem “os que habitam na terra” e esses “habitantes da terra” são vistos de maneira negativa, como pessoas que recebem juízo, maldição e castigos. O estranho nisso tudo é que os cristãos também habitam sobre a terra. Jesus habitou sobre a terra. Podemos forçar um pouquinho e dizer que o próprio Deus chegou a ter habitações por aqui. O que isso quer dizer? O autor G.K. Beale nos explica.

Essa expressão é reservada para as pessoas que não podem ver além dessa terra como sua segurança, o que significa que elas confiam em alguma parte da criação, ao invés do Criador, como fonte de seu supremo bem-estar. Portanto, essas pessoas são chamadas de “habitantes da terra” porque isso expressa o objeto de sua confiança e, talvez, de seu próprio ser¹.

Isso nos ensina algumas coisas importantes sobre nossa vida cristã nessa era passageira.

Não somos habitantes da terra.

A Bíblia ensina que somos peregrinos e forasteiros (1 Pe 2.11), que este não é nosso lugar. Somos estranhos em terra estranha. É claro que moraremos na Nova Terra futuramente, mas ela será nosso lar quando se tornar o lar de nosso Senhor. Por enquanto, devemos ter olhos para outro lugar. Como Abraão, esperamos a “cidade que tem fundamentos, da qual o artífice e construtor é Deus” (Hb 11.10) e como Paulo dizemos que “nossa pátria está nos céus” (Fp 3.20).

Isso significa que nossa identidade primariamente não vem de onde nascemos, do que fazemos, das coisas que aprendemos ou do quanto temos. É muito fácil acharmos que o que nos define são coisas tão importantes quanto o local de nascimento e a igreja que frequentamos ou coisas pequenas, como uma “tribo” ou um time de futebol. Para os jovens, por exemplo, os gostos culturais tornam-se fator de união e separação. A maioria de nós já foi (ou ainda é) assim, respeitando ou desprezando pessoas pelo fato de eles gostarem de certa banda, certo diretor, certo autor.

Um sinal de que estamos “habitando na terra” é sentir-se confortável demais com padrões e gostos da nossa cultura. Veja: sem problemas assistir filmes, seriados, ler quadrinhos e ouvir música (falando de uma maneira geral). Mas será que, às vezes, não fica cansativo ver tanta mensagem humanista, tanta irreligião, tamanho desprezo pelas coisas celestiais em obras de qualidade (e em obras sem qualidade também)? É como ser brasileiro e não se incomodar com um comentarista que passa o jogo todo elogiando a seleção da Argentina, a torcida hermana e até a própria nação platina. Uma hora cansa. Se não cansa ou ofende, más notícias: você provavelmente é argentino.

Já reparou que habitar tem o mesmo radical de hábito e habitat? E aí está o problema. Talvez essa terra estranha tenha se tornado nossa casa.

Nossa segurança não encontra-se nessa terra.

G.K. Beale explica que Apocalipse fala dos “habitantes da terra” dez vezes e, em sete delas, há referência à idolatria. A associação não é casual. No final das contas, idolatria é justamente isso – tomar para si um elemento da criação, algo que existe aqui na terra, e confiar plenamente nisso. Seja uma estátua de barro, seja seu emprego, aquilo que ocupa o lugar de Deus como fonte suprema de alegria e provisão é um ídolo. Esse é basicamente o argumento de Paulo em Romanos 1.18-23.

Na igreja e no cotidiano, acabamos abaixando a cabeça para muitos ídolos da nossa cultura. Quantos não procuram fazer do culto o espetáculo que a mídia nos apresenta diariamente? Em um mundo onde o cool é o padrão, será que não estamos buscando o “legal” em primeiro lugar, e todas as coisas (amigos, dinheiro, membresia, fama…) serão acrescentadas? Outros elevaram a moralidade e os “valores familiares” a marca do que torna alguém aceitável ou não a Deus – bons valores não são bons quando ocupam um papel mediatório que só pertence a Jesus.

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Por trás da maioria de nossos ídolos, há o ídolo do eu. Seja moralidade, seja popularidade – o que está em primeiro lugar é nossa necessidade de ter proeminência, de sermos nossos próprios salvadores, de buscarmos além da Palavra as soluções e realizações da nossa vida. Quando a igreja prega os benefícios (mesmo os melhores benefícios – “sua melhor vida agora”) e não Cristo, é no altar do eu que Deus está sendo “sacrificado”.

Durante o processo de escrita desse texto, assisti ao filme (argentino) O Segredo de seus Olhos. Uma frase me chamou a atenção e nos ajuda a entender a idolatria. Certo personagem diz o seguinte:

Um homem pode mudar tudo. Seu rosto, sua casa, sua família, sua namorada, sua religião, seu deus. Mas há uma coisa que ele não pode mudar. Ele não pode mudar sua paixão.

A verdade é que nós, idólatras natos, podemos até “confessar” Cristo, mas nossa paixão pode ser algum benefício que ele traz, alguma coisa criada, como nós mesmos. E nenhum homem pode mudar isso. Somente Deus.

Os habitantes da terra serão reduzidos a nada.

Quando lemos a definição dos habitantes da terra como pessoas que reduzem a realidade apenas a esse mundo visível, não é difícil se lembrar de Salomão e sua busca no livro de Eclesiastes. Somos apresentados a um homem que procurou na criação (debaixo do sol) um sentido para sua existência. O resultado: “Vaidade de vaidade”, diz o pregador, ao observar que, “debaixo do sol”, nada parece ser permanente ou caminhar para algum lugar.

O pastor Matt Chandler diz que a história de Jó é a história do homem que perdeu tudo, enquanto Eclesiastes é a história do homem que teve tudo. Ele está certo. E no fim de cada história, a resposta está acima do Sol, não habitando na terra. Jó perdeu tudo, menos Deus. O sábio de Eclesiastes percebeu que tudo era nada, sem Deus.

Peter Leithart², explicando os versos iniciais de Eclesiastes, explica que a palavra que conhecemos como “vaidade” (hebel, 1.2, 12.8) significa literalmente vapor. Não por acaso esse é o nome de Abel, um personagem que viveu pouco, vítima de um crime absurdo e injusto. “´Vapor de vapores´ significa que a humanidade é menos substancial que uma névoa… porque é impermanente , porque mudamos e, por fim, morremos”.

Uma das palavras usadas para falar dos ídolos no Antigo Testamento é essa hebel. Veja, por exemplo, 2 Reis 17.15: “Seguiram ídolos inúteis [ uma adaptação para hebel ], tornando-se eles mesmos inúteis [novamente, hebel]. Imitaram as nações ao seu redor, embora o Senhor tivesse lhes ordenado: ‘Não as imitem’.

Não é por acaso que Paulo nos chama a imitar a Cristo. Aqueles que seguem ídolos tornam-se como eles. Aqueles que habitam na terra, trocam o Criador pela criatura e seguem a vaidade, tornam-se nada. E quanto mais confortáveis nos encontramos com esse “agora” que é habitar na terra, mais insensíveis tornamos para o “porvir” dos novos céus e nova terra.

Lembre-se do que ensina o Salmo 115.8: “Semelhantes aos ídolos sejam os que fazem, e todos os que neles confiam”. E essa semelhança inclui tanto a incapacidade espiritual (vv.4-7) desses ídolos, quanto a destruição deles (Sl 106.40-42).

Por outro lado, aqueles que seguem a Cristo tornam-se semelhantes a ele. Ao invés de nos vermos como habitantes da terra, somos agora tratados como moradores da cidade celestial. Somos nascidos do alto, como Cristo veio do alto. Em vez de adorarmos imagens feitas por mãos humanas, adoramos a verdadeira imagem de Deus – e nos tornamos como ela. Por fim, não seremos reduzidos a nada e feitos inúteis. Pelo contrário, nos tornamos vasos de honra, úteis para a obra. E teremos a ressurreição e o dom da vida eterna, porque Jesus ressuscitou e vive para sempre.

Por enquanto, porém, jamais nos esqueçamos – somos estranhos em uma terra estranha.

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¹no livro We Become What We Worship
² no livro Solomon among the postmoderns