Lá vêm os marciões

Quando alguém pergunta quem são os pensadores com mais influência na igreja evangélica moderna, pode-se pensar em nomes como J. I. Packer, John Stott e D. A. Carson.

Eu gostaria de sugerir, entretanto, que há uma influência que talvez seja muito maior do que percebemos, mas cujo pensamento permeia quase tudo na igreja evangélica moderna: Marcião.

Esse é o homem que ganharia o meu voto de influência mais profunda no evangelicalismo, desde o cânon, passando pela teologia até as práticas de louvor e adoração. Você nunca vê os livros dele nas prateleiras da sua livraria cristã preferida; você nunca vê avisos de pregações dele em alguma igreja da sua cidade; mas, sabia disso, o seu espírito paira sobre as livrarias e os púlpitos.

Marcião é – ou melhor, era – uma figura um tanto quanto obscura, com a maioria do que sabemos sobre ele vindo dos retratos hostis feitos por Tertuliano. Aparentemente, ele era da região de Pontus (atualmente a área próxima ao Mar Negro), surgiu no meio do século II e morreu por volta do ano 160. Sua marca foi a insistência de que o evangelho cristão era exclusivamente sobre o amor, ao ponto de rejeitar completamente o Antigo Testamento e aceitar, com algumas ressalvas inclusive, apenas algumas partes do Novo Testamento que eles considerava consistentes com sua tese central (as cartas de Paulo e uma adaptação do evangelho de Lucas).

Como Marcião influencia o evangelicalismo moderno então? Bem, eu acredito que o evangelicalismo se tornou praticamente marcionita em vários aspectos.

Exclusivamente amor

Primeiro, a ênfase no amor de Deus ao ponto de excluir completamente todo o resto se tornou lugar comum. Vemos isso no colapso da noção da substituição penal nas doutrinas evangélicas. Agora, talvez eu esteja generalizando, mas, de todas as coisas ensinadas na Bíblia, a terrível ira de Deus está entre as mais evidentes de todas.

Assim, quando ouço afirmações de teólogos evangélicos dizendo algo como “a ira de Deus é sempre restauradora”, meu pensamento vai direto para várias passagens do AT, para o ensinamento da Bíblia sobre Satanás e alguns personagens do NT como Ananias e Safira. Não houve muita restauração para essas pessoas – ou ser engolido vivo pela terra, consumido por fogo santo e ser fulminado por enganar a igreja na verdade são técnicas terapêuticas para restaurar os indivíduos atingidos?

E quando líderes evangélicos me dizem que a substituição penal é quase um exemplo de abuso infantil cósmico (não ria – isso realmente é afirmado por alguns teólogos evangélicos), fico me perguntando se eu deveria me sentar e explicar a ele o que a doutrina significa, ou apenas mandá-los crescer e amadurecer. Eles realmente esperam que a igreja leve a sério esse tipo de reflexão teológica?

O Novo é sempre melhor

Seguindo, há também a constante tendência de negligenciar o Antigo Testamento, especialmente em nossas reflexões teológicas, e nossas vidas devocionais precisam levar em conta todo o Antigo Testamento. Precisamos ler a Bíblia como um todo, entender cada passagem, cada verso, dentro da estrutura teológica e narrativa do cânon completo.

Nós evangélicos às vezes erramos por focar demais nos ensinamentos puramente doutrinários das cartas do NT e as grandes passagens do evangelho de João. Um estudioso do NT, meu amigo, certa vez me disse pensar que a vida do evangélico comum seria praticamente a mesma se toda a Bíblia, exceto o evangelho de João e a carta aos Romanos, simplesmente desaparecesse. Um exagero, talvez, mas nem tanto. Precisamos de uma teologia bíblica sólida – não uma que resume tudo à economia, deixando de lado a ontologia, mas uma que leva em conta toda a narrativa central da Bíblia e busca fazer justiça até àquelas partes da Bíblia que não gostamos.

As canções de Deus

Assim, na nossa prática eclesiástica, precisamos levar o Antigo Testamento mais a sério. Muito me surpreende, dado o uso massivo dos Salmos como elemento central da adoração comunitária dos primeiros quatro séculos, a absoluta importância dada pelas igrejas reformadas à salmodia nos primeiros dois séculos após a Reforma e o fato de que o livro dos Salmos é o único hinário que pode afirmar ser universal em sua aceitação em todo o cristianismo e completamente inspirado em todas as suas afirmações – muito me surpreende, repito, que tão poucos salmos são cantados nos nossos serviços de culto atualmente.

Mais ainda, nada parece ser mais motivo de piada do que a sugestão de que mais salmos deveriam ser cantados nos cultos. De fato, os últimos anos viram um sem-número de autores escreverem contra a salmodia. Como a vida é muito curta para perder tempo com polêmicas inúteis, fico me perguntando de qual universo paralelo essas pessoas vieram, um universo em que a questão mais emergencial e perigosa em relação à adoração é que as pessoas cantam demais a Bíblia em seus cultos. Que coisa terrível de se imaginar! Imagine: pessoas realmente cantando músicas que expressam todo o espectro das emoções humanas em seus cultos, usando palavras que Deus explicitamente disse “Essas são minhas!”. De volta aqui ao Planeta Terra, entretanto, há, geralmente, pouca chance de sobrecarregar de sã doutrina as músicas da maioria das igrejas evangélicas, já que a invasão marcionita é praticamente completa e recebida na esfera da adoração. Eu prefiro Atanásio a Marcião entre os pensadores daquela época e, em uma carta, ele dá um dos mais bonitos e comoventes argumentos em favor dos salmos no louvor (aqui, em inglês). É uma pena que poucos pensem como ele.

Obscurecendo Deus

Quais serão, então, as consequências a longo prazo dessa abordagem Marcionita da Bíblia? Em última instância, penso que vai relegar “o Deus que intervém” de volta ao reino do desconhecido e fazer nosso deus uma mera projeção de nossa própria psicologia e nossa adoração apenas sessões de terapia coletiva onde todos nos reunimos e fingimos estar sentido bem. Deus é o Deus de Abraão, Isaque e Jacó – deixe essa identidade e o que sobra? Como o AT é o contexto para o NT, a rejeição do AT deixa o NT, de certa forma, sem sentido. Conforme nossas leituras, sermões e tempo de reunião em adoração coletiva negligenciam e, às vezes, simplesmente ignoram, o Antigo Testamento, podemos esperar um empobrecimento generalizado da vida da igreja e, finalmente, um colapso total do cristianismo evangélico.

De fato, há manhãs em que acordo e penso que tudo já acabou e que a igreja do Ocidente sobrevive mais por força de personalidade, pela modinha e pelos esquemas de marketing do que qualquer outro poder superior. Precisamos, novamente, nos agarrar a Deus em sua plenitude; precisamos entender quem somos em relação a ele; precisamos de ensino e adoração que expresse completamente essas coisas – e isso só vai acontecer quando nós do Ocidente crescermos, amadurecermos, deixarmos os deuses que nós mesmos fabricamos a partir de nossa bíblia fast-food onde o consumidor, não o Criador, é o rei, e darmos à Bíblia inteira o lugar devido em nossas vidas, nosso pensamento e nossa adoração. Pense pensamentos truncados sobre Deus e você terá um Deus truncado; leia uma Bíblia retalhada e você terá uma teologia retalhada; cante porcarias superficiais sem pensar, ao invés de louvores profundos e verdadeiramente emocionais, e você eventualmente se tornará o que você canta.