O Evangelho nas cartas de Paulo

Josaías Jr.

Tive de preparar uma aula de uma hora sobre o Evangelho nas cartas paulinas e resolvi compartilhar aqui no iPródigo. É difícil fazer justiça a um tema tão glorioso e um autor tão grandioso. Paulo amava o Evangelho e o Evangelho era sua vida. Ele estava completamente imerso nessa mensagem e não podia pensar, agir ou falar sem levar em consideração isso. E nosso desafio é imitá-lo. O tema do curso em que apresentei essa aula é “O Evangelho na vida” e não consigo imaginar um pecador que conseguiu viver isso de maneira tão clara quanto Paulo.

Uma Nova Perspectiva

Porém, antes de estudarmos o Evangelho em Paulo, gostaria de citar algo que está acontecendo entre igrejas, faculdades e movimentos cristãos. Alguns teólogos e líderes proeminentes da igreja afirmam que entendemos o Evangelho errado. Paulo não queria falar de salvação dos pecados, justificação ou mesmo do sacrifício expiatório de Cristo.

Cito um importante e popular teólogo anglicano, NT Wright que admiro bastante por sua erudição e pela rara capacidade de ensinar seu conhecimento aos mais simples, mas que tem falhado ao interpretar Paulo*:

“O evangelho de Paulo aos pagãos não era uma filosofia de vida, nem mesmo uma doutrina sobre como ser salvo”.

“A minha proposta tem sido que ‘o evangelho’, para Paulo, não é uma mensagem sobre ‘como ser salvo’”.

NT Wright

‘O evangelho’ não é um relato de como as pessoas são salvas. Ele é […] a proclamação do senhorio de Jesus Cristo”.

“Quando o evangelho é proclamado, as pessoas chegam à fé e assim são consideradas por Deus membros do seu povo. Mas ‘o evangelho’ não é um relato de como as pessoas são salvas.”

O que é, então, o Evangelho para Paulo? Wright responde:

“‘O evangelho’ em si diz respeito à proclamação de que Jesus, o Messias crucificado e ressurreto, é o único e verdadeiro Senhor do mundo”.

“ Jesus de Nazaré crucificado tinha sido ressuscitado dos mortos; que, por meio disso, ele provou ser o Messias de Israel; que, por meio disso, foi empossado como Senhor do mundo”.

A resposta de Paulo

O melhor a fazer é vermos o que o próprio Apóstolo diz. Podemos concordar com NT Wright sobre o fato de que o senhorio de Cristo é parte essencial do Evangelho. Mas a salvação de pecadores é o motivo pelo qual Jesus veio e hoje pregamos.

Esta é uma palavra fiel, e digna de toda a aceitação, que Cristo Jesus veio ao mundo, para salvar os pecadores, dos quais eu sou o principal. (1 Tm 1.15)

Também vos notifico, irmãos, o evangelho que já vos tenho anunciado; o qual também recebestes, e no qual também permaneceis. Pelo qual também sois salvos se o retiverdes tal como vo-lo tenho anunciado; se não é que crestes em vão. (1 Co 15.1,2)

Porque não me envergonho do evangelho de Cristo, pois é o poder de Deus para salvação de todo aquele que crê; primeiro do judeu, e também do grego. (Rm 1.16)

Porque Deus não nos destinou para a ira, mas para a aquisição da salvação, por nosso Senhor Jesus Cristo. (1 Ts 5.9)

Em quem também vós estais, depois que ouvistes a palavra da verdade, o evangelho da vossa salvação; e, tendo nele também crido, fostes selados com o Espírito Santo da promessa. (Ef 1.13)

Respondendo a Wright, John Piper lembra que “Jesus é o Senhor” é uma grande notícia para aqueles que são salvos por ele. Se não especificarmos isso, ela pode ser uma notícia aterrorizadora – como alguns descobrirão no último dia, quando todo joelho (tanto de amigos quanto de inimigos de Jesus) se dobrará.

O que é o Evangelho para Paulo?

Como todas as cartas de Paulo são profundamente fundamentadas no Evangelho de Cristo, é difícil não deixar algo de fora. Minha humilde tentativa de resumir tudo é essa:

O Evangelho é a mensagem de que, nos últimos dias1, Jesus, o Messias, por nos amar² morreu na cruz, derramou seu sangue por nossos pecados³, pagou a dívida que era contra nós4 e recebeu o castigo que merecíamos5. Deus o ressuscitou para nossa justificação6, e por sua graça atribui a obediência perfeita de Cristo7, sua justiça, àqueles que Ele amou8 e que a recebem pela fé somente e sem mérito algum9.

1 Romanos 3.21, Gálatas 4.4, Efésios 3.9,10   ² Gálatas 2.20; ³ Romanos 3.25; 4 Colossenses 2.14; 5 Gálatas 3.13, 2 Coríntios 5.21; 6 Romanos 4.25; 7 Romanos 4.3-8; 8 Romanos 8.28-30; 9 Efésios 2.7-10, Filipenses 3.8,9

O que a mensagem do Evangelho produz?

1) Salvação e reconciliação com Deus: Como vimos, Paulo nos diz que o Evangelho traz salvação. Isto é, ele nos livra da ira vindoura, que foi provocada pela nossa rebelião. Ele nos reconcilia com Deus, pois as transgressões que nos separavam dele foram atribuídas a Cristo, enquanto a justiça de Cristo foi atribuída a nós.

Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo, não imputando aos homens as suas transgressões, e nos confiou a palavra da reconciliação. De sorte que somos embaixadores em nome de Cristo, como se Deus exortasse por nosso intermédio. Em nome de Cristo, pois, rogamos que vos reconcilieis com Deus. Aquele que não conheceu pecado, ele o fez pecado por nós; para que, nele, fôssemos feitos justiça de Deus. (2 Co 5.19-21)

2) União com Cristo e com os irmãos: Essa reconciliação é pela graça, por meio do sangue de Cristo, o que resulta em uma nova humanidade unida em Cristo e reconciliada com o próximo. Deus aproximou-se dos gentios, unindo-os aos judeus por meio de Cristo:

Que naquele tempo estáveis sem Cristo, separados da comunidade de Israel, e estranhos às alianças da promessa, não tendo esperança, e sem Deus no mundo. Mas agora em Cristo Jesus, vós, que antes estáveis longe, já pelo sangue de Cristo chegastes perto. Porque ele é a nossa paz, o qual de ambos os povos fez um; e, derrubando a parede de separação que estava no meio, Na sua carne desfez a inimizade, isto é, a lei dos mandamentos, que consistia em ordenanças, para criar em si mesmo dos dois um novo homem, fazendo a paz, E pela cruz reconciliar ambos com Deus em um corpo, matando com ela as inimizades. E, vindo, ele evangelizou a paz, a vós que estáveis longe, e aos que estavam perto. (Efésios 2.12-17)

3) A presença do Espírito: Somente aqueles que abençoados pela morte e ressurreição de Cristo recebem o Espírito de Cristo e podem confessar o senhorio de Jesus.

E, porque sois filhos, Deus enviou aos vossos corações o Espírito de seu Filho, que clama: Aba, Pai. (Gálatas 4.6)

E, se o Espírito daquele que dentre os mortos ressuscitou a Jesus habita em vós, aquele que dentre os mortos ressuscitou a Cristo também vivificará os vossos corpos mortais, pelo seu Espírito que em vós habita. (Romanos 8.11)

4) O início da Nova Criação: Recentemente, estudiosos perceberam que os três temas citados acima fazem parte de um entendimento escatológico do Apóstolo Paulo. Herman Ridderbos, um teólogo reformado, entende a mensagem de Paulo dessa forma. Deus, na morte e ressurreição de Cristo, estava inaugurando a nova era prometida pelos profetas, em que o pecado seria vencido e o Messias reinaria sobre o povo escolhido.

Ora, àquele que é poderoso para vos confirmar segundo o meu evangelho e a pregação de Jesus Cristo, conforme a revelação do mistério que desde tempos eternos esteve oculto, mas que se manifestou agora, e se notificou pelas Escrituras dos profetas, segundo o mandamento do Deus eterno, a todas as nações para obediência da fé. (Romanos 16.25,26)

Mas, como está escrito: As coisas que o olho não viu, e o ouvido não ouviu, E não subiram ao coração do homem, São as que Deus preparou para os que o amam.Mas Deus no-las revelou pelo seu Espírito; porque o Espírito penetra todas as coisas, ainda as profundezas de Deus. (1 Coríntios 2.9,10)

Portanto, se alguém está em Cristo, é nova criação. As coisas antigas já passaram; eis que surgiram coisas novas! (2 Coríntios 5.17, NVI)

Mas de fato Cristo ressuscitou dentre os mortos, e foi feito as primícias dos que dormem. (1 Coríntios 15.20)

A Nova Vida em Cristo

Por ter essa consciência escatológica de estarmos vivendo no esperado Reino de Cristo, Paulo entendia que o Evangelho deveria ser o motivador para tudo na vida dos cristãos. Ele estava debaixo do senhorio de Cristo, o que lhe dava um novo coração, uma nova cidadania, uma nova mente, uma nova vida – produzidas pelo Espírito Santo. Assim, diferente de muitos cristãos, Paulo não conseguia dissociar o Evangelho de Cristo de suas ações, seus objetivos, seus relacionamentos, e mesmo das questões básicas do cotidiano. Tudo deveria ser feito para glória de Deus:

  • Os relacionamentos: Filipenses 2.3,5
  • O Casamento: Efésios 5.24,25
  • A família: Efésios 6.1,4
  • Os relacionamentos profissionais: 1 Timóteo 6.1,2
  • A relação com o Estado: Romanos 13.1
  • As palavras: Efésios 5.29
  • As ações: Filipenses 1.27
  • A pregação: 1 Coríntios 2.2

Resumindo: Portanto, quer comais quer bebais, ou façais outra qualquer coisa, fazei tudo para glória de Deus. (1 Coríntios 10.31)

O Evangelho na vida de Paulo e em nossas vidas

O Evangelho e suas repercussões – a obra de Cristo, a ressurreição de Cristo, a manifestação escatológica do Espírito e a nova vida – guiaram Paulo em sua pregação, suas ações e na maneira como ele enxergava a realidade. A partir de agora, ele podia ver que não fazia mais parte da era passada, mas do Reino de Cristo.

Com isso, tudo aquilo que antes era valioso como forma de autojustificação, como fonte de identidade, como alvo, tornava-se irrelevante diante da suprema graça manifestada em Cristo Jesus. Sua justiça agora vem de Cristo, sua identidade vem de Cristo e seu alvo é Cristo (Fp 3.1-12).

Para muitos, a vida cristã é apenas uma questão de fazer certas coisas, de abandonar certas atitudes e falar certas palavras. A verdade é que a vida cristã deve ser guiada pelo Evangelho em todas as suas áreas. Não é uma questão de fazer ou não fazer, mas de viver de maneira digna do Evangelho, com a consciência de que Cristo morreu por nossas transgressões, mas ressuscitou para nossa justificação. É entender que a batalha contra a carne não vem de nossos esforços, mas é fruto da vida produzida pelo Espírito. Que esse mundo passageiro precisa ouvir que o Rei Jesus venceu na cruz, e um dia se manifestará, revelando plenamente seu Reino eterno.

Acredito que a visão missionária de Paulo era profundamente baseada nisso – ele sabia que a era passada, “as coisas antigas”, estavam ficando para trás, e, com ela, aqueles que estavam vivendo nesse reino de morte. A única forma de salvar essas pessoas é por meio da pregação que vivifica e nos leva ao reino eterno. Paulo tinha consciência de que o mundo antigo estava se desvanecendo, sendo destruído, e ele precisava alcançar todos os eleitos do Senhor.

Temo que não sejamos motivados por isso. Algo que tento sempre me lembrar (mas convenientemente vivo esquecendo) é que Jesus ressuscitou. Como posso viver de maneira tão medíocre, pequena e tímida quando tenho a consciência de que o Senhor Jesus morreu, mas ressuscitou? Como posso me agradar tanto com essa era vida passageira se o meu Deus inaugurou a Nova Criação em Cristo? Como podemos comer, beber, falar, nos relacionar, pregar, orar, trabalhar sem levar em consideração o Evangelho do Reino?

A resposta é: quando intencionalmente esquecemos que o Evangelho é verdade, que Cristo ressuscitou, que o Espírito está em nós e que Deus nos ama.

Devemos viver de maneira digna do Evangelho de Cristo, como Paulo viveu. Mas, para isso, precisamos ser saturados do Evangelho como ele foi. Que Deus nos conceda esse privilégio.

Porque para mim o viver é Cristo, e o morrer é lucro. (Filipenses 1.21)

 

* Essa “Nova Perspectiva sobre Paulo” é muito mais que apenas uma questão de salvação, e NT Wright é apenas um de seus representantes. Sei que meu comentário acima pode ser considerado superficial por aqueles que admiram Wright. Reitero meu respeito por seu trabalho e já fiz uso de sua contribuição aos estudos neotestamentários, mas li também suas obras sobre a teologia de Paulo e infelizmente não creio que ele foi convincente nesse ponto. Caso haja interesse, posso enviar minha monografia sobre a NPP, onde dou atenção a Wright, com o espaço que ele merece. Como a intenção da aula não era se aprofundar muito nesse assunto, acabei dando um pequeno tratamento a essa questão aqui. Recomendo também a leitura do texto do Rev. Augustus Nicodemus sobre o assunto.