Ser menos que humano

Josaías Jr.

Uma coisa que muito fascina no estudo da Escritura é a maneira como aparentes antíteses são comuns. Jesus gostava de expressar algumas: “todo aquele que se humilha será exaltado”, “os últimos serão os primeiros”, “felizes os que choram” – todas são exemplos de pequenos paradoxos ditos pelo Salvador. São afirmações que nos levam a pensar um pouco mais, e nos dão um aviso de que a maneira como Deus enxerga o mundo é totalmente diferente de como pensa o homem caído.

Entre esses paradoxos, algo que nunca é explicitamente dito, mas que se encontra por toda a Palavra é a noção de que quanto mais nos aproximamos de Deus, mais humanos somos.

Como assim? Quer dizer que aproximamos do Deus Santo e nos tornamos fracos e pecadores? Certamente não! Essa é a humanidade pós-Queda. Quero dizer que quanto mais nos aproximamos de nosso Criador, melhor nos conformamos ao propósito para o qual a humanidade foi criada. Isto é, o homem é valorizado e alcança sua dignidade original não quando ele está no centro– como os humanistas seculares propõem – mas quando Deus está no centro de tudo, de sua vida, suas relações, seu pensar, agir e falar. Aí a humanidade é verdadeiramente humana.

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Repare o que acontece nos primeiros capítulos de Gênesis. Adão e Eva foram criados para um propósito específico – glorificar a Deus por meio de sua obediência, e isto incluiria o domínio sobre a Criação, a formação de famílias, o dia de descanso e o desfrutar piedoso de tudo aquilo que Yahweh tinha criado. Eles eram imagem de Deus e, assim, o refletiriam.

Porém, havia certa exceção nas maravilhas que o Senhor entregou a Adão e Eva – a árvore do conhecimento. Não podiam prová-la, ou isto significaria a degeneração deles mesmos à morte. Provavelmente Adão e Eva tinham alguma noção do que isso se tratava (uma ameaça de castigo deve ameaçar, afinal de contas). Eles voltariam ao pó.

A serpente, astuta como é, sugere aos nossos pais que provem do fruto desta árvore. “Vocês serão como Deus”, ela diz. Adão e Eva creram naquilo que o Inimigo falou, buscaram ser como Deus – e o que aconteceu? Condenaram as futuras gerações a uma vida inferior, uma vida caída, uma vida que não reflete o Criador, uma vida menos que humana.

Já reparou que quando vemos alguém cometer uma atrocidade chamamos aquilo de “desumano”? Talvez esse seja um eco, uma lembrança, da nossa dignidade perdida há milhares de anos.

Tudo isso me leva a pensar sobre Romanos 9, quando Paulo fala sobre Criador e criatura:

Mas quem é você, ó homem, para questionar a Deus? Acaso aquilo que é formado pode dizer ao que o formou: ‘Por que me fizeste assim?’ Ou não tem o oleiro poder sobre o barro, para da mesma massa fazer um vaso para honra e outro para desonra? (v.20,21)

Temos de levar em consideração que somos vasos feitos por um Oleiro. A resposta de Paulo para a pergunta “há injustiça da parte de Deus em escolher alguns e reprovar outros?” é “assim como um oleiro sabe mais sobre a argila do que o vaso, Deus sabe muito mais sobre como se governa os homens do que nós mesmos”. Ou seja, Paulo admite que há um mistério, mas ele tem certeza de uma coisa – há uma diferença muito grande entre Deus e o homem. E certamente Deus sabe mais sobre sua obra que a própria obra sabe sobre si.

Para mantermos nossa comunhão com Deus, é necessário termos uma visão correta sobre quem é Deus e quem somos nós. Não há lugar para autoilusão quando se sabe a diferença substancial entre o Criador e as criaturas. Quando nos reconhecemos como vaso, sabemos para quem fomos feitos. A palavra ali traduzida como vaso pode significar qualquer instrumento ou utensílio. E alguém já viu um vaso dando ordens para os moradores de uma casa?

O pecado de Adão está relacionado a isso. Ele não seguiu o propósito que o Oleiro tinha para vida dele. Achou que sabia mais sobre a argila do que o Oleiro. Pensou que ele mesmo poderia moldar-se. Ele foi formado à imagem de Deus, e tentou formar-se de forma diferente. E o que acontece quando o homem tenta se moldar a algo diferente da imagem de Deus? Ele se torna menos do que um homem. E é por isso que nessa mesma carta de Romanos Paulo nos diz:

Porque, tendo conhecido a Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe renderam graças, mas os seus pensamentos tornaram-se fúteis e o coração insensato deles obscureceu-se. Dizendo-se sábios, tornaram-se loucos e trocaram a glória do Deus imortal por imagens feitas segundo a semelhança do homem mortal, bem como de pássaros, quadrúpedes e répteis. (Romanos 1.21-23)

O homem que não se reconhece como um vaso dependente da mão do Oleiro para moldá-lo conforme a sua boa, perfeita e agradável vontade, torna-se um adorador de imagens inferiores. Ao invés dele ser imagem de Deus e dominar sobre os animais, ele é dominado por imagens de criaturas caídas ou seres irracionais. Por exemplo:

  • Deuses pagãos: a maioria (ou, possivelmente, todos) tem figura de homens e/ou animais ou são personificados em elementos da criação (chuva, sol, lua, etc);
  • Bebida e comida: o trabalho das mãos dos homens, feitas de animais e plantas dominando sobre a coroa da criação;
  • Sexo: Paulo claramente liga a perversão sexual à falsa adoração, porque o casamento é imagem de Cristo e da igreja. Se não vemos o sexo dessa forma, o veremos como imagem de algo que não é Cristo – em outras palavras, idolatria;
  • Dinheiro: Jesus comparou a paixão pelo dinheiro à idolatria. (Curiosamente, as nossas notas de Real, tão valiosas, são cheias de figuras de bichos…)
  • E por aí vai… alguns posts do iPródigo te ajudarão nisso: esse, esse e esse

A lista acima não é uma alegoria ou tentativa de minimizar a idolatria a objetos que tenha certas figuras. Ela serve mais como lembrete de que estamos sendo dominados por elementos da criação, como Eva e Adão foram enganados por uma serpente e uma fruta. A idolatria nasce, em primeiro lugar, do coração que tirou Deus de seu lugar de direito. E a Bíblia é clara quando diz que o adorador se torna semelhante àquilo que ele adora:

Os ídolos deles, de prata e ouro, são feitos por mãos humanas. Têm boca, mas não podem falar, olhos, mas não podem ver; têm ouvidos, mas não podem ouvir, nariz, mas não podem sentir cheiro; têm mãos, mas nada podem apalpar, pés, mas não podem andar; e não emitem som algum com a garganta. Tornem-se como eles aqueles que os fazem e todos os que neles confiam.(Sl 115.4-8)

Todo aquele que se esquece que é vaso criado pelo Oleiro, todo aquele que acha que sabe mais que o Oleiro, todo aquele que se nega a cumprir a função de vaso – deixa de ser um vaso útil. Tanto agora quanto no mundo vindouro. A morte é o oposto de Deus, que é vida.

Como um animal selvagem, o ser humano que deixa de ser imagem de Deus passa a seguir seus próprios “instintos”, a satisfazer suas necessidades imediatas, a simplesmente defender seu território, reproduzir e morrer. Ou, na melhor (?) das hipóteses, torna-se como animal domesticado, seguindo regras, aprendendo o horário certo de comer e fazer cocô, esperando a recompensa por cada botão apertado corretamente. Como disse Salomão, sob o Sol “o que sucede aos filhos dos homens, isso mesmo também sucede aos animais, e lhes sucede a mesma coisa; como morre um, assim morre o outro” (Ec 3.19)¹.

Há alguns séculos, Thomas Watson escreveu²:

Não existe criatura capaz de envergonhar-se, senão o homem. As bestas brutas sentem medo e dor – mas não se envergonham. Não podes fazer uma besta ruborizar. Aqueles que não coram pelo pecado, em muito lembram as bestas… Um pecador é um suíno com cabeça de homem.. Aquele que uma vez foi menor que os anjos em dignidade – tornou-se agora como as bestas! Os ímpios estão – de certa forma – totalmente brutificados! Eles não agem racionalmente, mas são levados pela violência de seus desejos e paixões. Nossos pecados tomaram aquele espírito nobre e santo, que uma vez tivemos. A coroa caiu de nossas cabeças. A imagem de Deus está desfigurada, a razão eclipsada , a consciência entorpecida!

Felizmente, a história não termina aqui. Em Cristo, Deus se fez homem. Ele viveu a vida de obediência, agiu como vaso de honra, refletiu o seu Criador. Verdadeiramente, ele é a imagem de Deus, tanto em sua divindade quanto em sua humanidade. Em Cristo, homens e mulheres podem reviver, podem retornar ao seu papel original, e conformar-se (amoldar-se) novamente à figura do Redentor. Glória a Deus por seu Filho amado!

Porque os que dantes conheceu também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos. (Romanos 8.29)

E vos vestistes do novo, que se renova para o conhecimento, segundo a imagem daquele que o criou. (Colossenses 3.10)

E, assim como trouxemos a imagem do terreno, assim traremos também a imagem do celestial. (1 Coríntios 15.49)

Novamente, então, a coroa é nossa. A humanidade volta a seu posto por meio do Rei Jesus, que “assentou-se à destra da majestade nas alturas; feito tanto mais excelente do que os anjos, herdou mais excelente nome do que eles” (Hb 1.3,4). Somos humanos novamente.

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¹ É claro que Deus refreia o pecado do homem, o que impede de vermos toda a brutalidade da nossa depravação. Mas, entregue aos seus desejos egocêntricos e carnais é isso o que acontece com cada pessoa. Além disso, é óbvio que a humanidade guarda em si dons e habilidades que nenhum animal tem. A questão é como e para que eles são usados.
² No livro The Doctrine of Repentance