Outubro é o mês em que tipicamente lembramos e celebramos a Reforma. Embora alguns protestantes tenham descrito a Reforma como uma tragédia, teria sido uma tragédia bem maior se ela nunca tivesse acontecido. Entretanto, existe no mundo evangélico contemporâneo uma tendência de romantizar Lutero, de refazê-lo como um evangélico moderno. Sim, é difícil para alguns de nós imaginarmos, mas tenho certeza de que existem alguns por aí que veem Dr. Martinho como o tipo de precursor daqueles que pensam que o segredo de um ministério de sucesso está em vestir jeans rasgado, visitar regularmente o bronzeamento artificial e lançar uma campanha internacional contra roupas nerds e antiquadas e a odontologia britânica.
Assim, em honra ao bom Doutor e a fim de salvá-lo da historiografia domesticada dos Jovens, Bonitões e Bacanas, aqui está uma série de teses sobre o Homem de Wittenberg, cuja força cumulativa deve provar que, no mundo evangélico de hoje, ele teria se saído um excelente taxista.
Tese Um: Martinho Lutero enxergava a liderança da igreja como primariamente marcada pelo serviço.
Para Lutero, a natureza servil do chamado ministerial não era um princípio abstrato, mas parte de sua prática cotidiana, ligando o seu entendimento do Deus revelado primariamente na carne crucificada de Cristo à atitude, perspectiva e expectativa necessárias aos ministros de Cristo. O ministro,como seu Salvador, deveria servir o pobre, o desprezado e as coisas que não são. É por isso que quando seu barbeiro, Pedro, expressou preocupação sobre quão difícil ele considerou a oração, Lutero foi para casa e lhe escreveu um tratado sobre oração. E ele não se esqueceu de Pedro depois. Quando o trágico barbeiro matou seu cunhado em uma briga de bêbados e foi sentenciado à morte, Lutero interviu para obter a sentença comutada para banimento pelo resto da vida. Embora fosse muito ocupado, Lutero nunca esqueceu a quem ele deveria estar servindo.
Tese Dois: Martinho Lutero entendia o culto como fundamentado no arrependimento.
Lutero não entendia a dialética lei/evangelho como oferecendo fundamento para o antinomismo ou como as bases conceituais de uma visão afeminada e distorcida de Deus como exclusivamente pai. Pelo contrário, ela expressava a tragédia profunda e aterrorizante da condição caída da humanidade e como somente o próprio Deus em Cristo é o único forte o bastante para nos proteger; e o culto, assim, não era uma resposta emocional, sentimental e boba, à maneira como Deus lida com nossas “feridas”. Na verdade, ele não considerava que o principal problema dos pecadores era estarem feridos. Pelo contrário. O principal problema deles era que estavam em deliberada rebelião contra Deus – e realmente gostando disso. Eles não precisavam ser confortados, mas feridos pela Lei. A verdadeira vida, portanto, deveria ser encontrada em contínua morte para si mesmo e ressurreição para Deus.
Assim, o culto era um constante lembrete dramático de quão terrivelmente próximos estamos do julgamento de Deus e de como Cristo é a única pessoa que pode nos proteger da fúria da tempestade. O culto, portanto, não era uma celebração superficial; é muito mais sério que isso, como se pode ver pelos seus frutos litúrgicos. Menos “Brilha, Jesus!” e mais “Paixão segundo São Mateus” de Bach.
Tese Três: Martinho Lutero não se importa com o mito da influência cultural, nem com a arrogância cultural necessária para atrair a atenção dos Grandes e dos Bons.
Lutero certamente chamou atenção dos Grandes e dos Bons. Mas não foi por gostar de cervejas artesanais (embora ele realmente gostasse), por suas tatuagens (não há registro de alguma), por seu amor pelas artes e música (pelo que era particularmente apaixonado) ou por sua habilidade de adaptar sua atitude e conquistar lugar na mesa da grande mídia. Pelo contrário, foi porque ele disse a verdade. Ele sabia que o mundo não se importa realmente com sutilezas ou com a amizade da igreja, e que as tentativas da igreja de fazer amizade com o mundo sempre são desastrosas para ela. Como aqueles que tentam acomodar-se no debate sobre homossexualidade logo descobrirão, são somente os que estão em posições de fraqueza política e social que se interessam por adaptações de pensamento; aqueles que têm poder sempre vivem em um mundo “preto-no-branco”, onde somente eles fazem as regras do jogo e somente eles as impõem. Lutero chamou atenção não porque dominava as regras do jogo, mas porque se recusava a jogar por elas.
Tese Quatro: Lutero via o sofrimento como uma marca da verdadeira igreja.
Para Lutero, a verdadeira igreja seria culturalmente desprezada pelos grandes. De fato, seu conceito do teólogo da cruz impulsionou uma teologia que evitava métodos e critérios de sucesso como o mundo os enxergava. Em sua obra de 1539, Sobre os Concílios da Igreja, Lutero via a cruz como uma das sete marcas da igreja saudável. Sofrer e ser considerado como escória por todo o mundo eram o esperado. Pode-se perguntar hoje quão cheias as megaigrejas estariam se o governo adicionasse um imposto de 10% sobre aqueles que professassem o cristianismo. De fato, quando alguns dos gigantes emblemáticos da nova onda evangélica nem mesmo tiveram cultos no último domingo do ano passado, 25 de dezembro, porque coincidia com o Natal, me pergunto o que compromisso, sofrimento e sacrifício significam nesses contextos, se é que alguma coisa.
Tese Cinco: Martinho Lutero era pastoralmente sensível quanto a práticas queridas de cristãos mais velhos.
Após defender a liturgia na língua vernácula, levou cinco anos para Lutero realmente implementar uma em Wittenberg. Então, quando ele escreveu seus catecismos, deliberadamente usou vocabulário pré-Reforma para expressar sua nova teologia. Por quê? Simplesmente isto: ele era pastoralmente sensível. Ele sabia que sua tarefa como servo (ver Tese Um) significava que ele não poderia simplesmente impor sua vontade sobre o povo de uma maneira que lhes machucasse, ferisse e afligisse. O culto contemporâneo da juventude e da inovação teria lhe impressionado como completamente equivocado e insensível, uma rendição aos gostos e exigências da categoria de pessoas com menor probabilidade de ter algo útil ou sábio para contribuir sobre como a igreja deveria guiar seus trabalhos. E para aqueles que dizem que uma atitude assim nunca produziria um convite para aparecer na televisão ou alienaria os Jovens, Bonitões e Bacanas, ele simplesmente teria lhes indicado a Tese Três acima. Sua primeira prioridade era cuidar de todo o povo de Deus, não de uma faixa etária restritamente definida; na verdade, ele temia profundamente o emprego da energia e entusiasmo dos jovens em uma causa violentamente iconoclasta. Assim, ele retornou a Wittenberg, em 1522, a fim de colocar para correr aqueles que buscavam trazer uma reforma radical.
Tese Seis: Lutero não concordou em diferir sobre questões de importância e, assim, transformá-las em trivialidades práticas.
Em 1529, Lutero efetivamente destruiu uma aliança entre os príncipes luteranos e os cantões da Reforma Suíça devido à sua crença na Presença Real de Cristo na Ceia do Senhor. Para as mentes evangélicas modernas, isso provavelmente parece loucura; porém, como Machen salientou, era melhor que ele se apegasse apaixonadamente a uma posição errada em um tópico muito importante que se ele simplesmente deixasse a Ceia do Senhor de lado porque ela não era tão importante. Lutero não permitiu que os gostos de sua época nem a necessidade urgente de uma confederação ampla o levasse a desprezar o que ele estava convencido ser ensino da Escritura.
Tese Sete: Lutero via a existência do ministro ordenado como uma marca da igreja.
No início da Reforma, o escritor papal Prierias escreveu uma obra atacando a teologia de Lutero. Lutero era tão estúpido, afirmou Prierias, que ele tinha escrito sua refutação ao reformador em apenas três dias. Em resposta, Lutero republicou a obra com um prefácio escrito por ele mesmo, em que dizia que havia escrito sua refutação de Prierias em dois dias. Ao fazer isso, Lutero demonstrou uma compreensão instintiva de como a inovação tecnológica da impressão barata tinha mudado as regras do jogo polêmico: queimar livros era inútil como forma de controlar o conhecimento; subversão era muito melhor. Entretanto, apesar de toda a sua compreensão de quão importante era a tecnologia e quão crucial era a capacidade de usá-la, ele recusou-se a fazer dos tecnocratas uma marca da igreja. Após a catástrofe de 1525, Lutero rapidamente passou a perceber que os ministros ordenados, aqueles escolhidos pela igreja como detentores das capacidades morais e pedagógicas descritas por Paulo, eram aqueles a quem a igreja foi confiada. Há uma lição aqui para um mundo como o nosso, onde os Jovens, Bonitões e Bacanas com experiência computacional aspiram definir as prioridades das igrejas pela simples força da habilidade tecnológica. Lutero não era um ludita; mas ele sabia que mera experiência midiática não implicava que uma pessoa deveria ser colocada em posição de influência.
Tese Oito: Lutero viu o problema de uma liderança que só prestava contas a si mesma.
Parte do problema que Lutero enfrentou na Reforma foi a completa falta de prestação de contas por parte dos Chefões. O Papa e os Cardeais se policiavam e voluntariamente não respondiam a ninguém. Portanto, a única maneira que Lutero tinha de fazer-se ouvido era usando todas as ferramentas retóricas de sua caixa, da sátira à polêmica contundente. Ele foi feliz nisso, claro: naqueles dias, não havia a estética da “dor” e “ferida” pessoal, que permitiu aos cristãos contemporâneos evitar a crítica e, na verdade, virar a mesa moral sobre aqueles que os criticavam. O problema da liderança irresponsável e influente no evangelicalismo está vivo e bem. Oh Martinho! Deverias aqui estar neste instante: o evangelicalismo de ti precisa.
Tese Nove: Lutero tinha pouca consideração por sua própria contribuição literária ao Cristianismo.
Pouco antes de morrer, Lutero declarou que somente sua resposta a Erasmo, Da Vontade Cativa (1525), e seus catecismos eram dignos de preservação. Se ele estivesse vivo hoje, seria muito improvável que estaria administrando um site dedicado primariamente a promover seus próprios livros e panfletos. Assim, ele dificilmente seria um homem de sucesso no mundo evangélico moderno. Nem ele se permitira uma “propaganda descarada” de si mesmo chamando-a explicitamente por esse nome, como se a tentativa elaborada de ironia pós-moderna de alguma maneira tornasse aceitável a natureza autosserviente dessa vaidade mercenária. Suspeito que ele acharia que a deixa ainda pior, por adicionar o pecado do “insulto à inteligência do leitor” ao óbvio “propaganda descarada”. (O último ponto é provavelmente digno de apenas meia tese. Daí o 9,5).
O impacto integral dessas teses: se o Dr. Martinho estivesse hoje entre nós, não encontraria espaço fácil na igreja evangélica. Na verdade, dirigir táxi poderia muito bem ser uma ocupação muito melhor.