As 28 Teses de Martinho Lutero

“So many times, it happens too fast
You change your passion for glory”
(Survivor – Eye of theTiger, 1982)

Embora as 95 teses de Lutero tradicionalmente recebam atenção no dia 31 de outubro, eu gostaria de propor uma pequena mudança no roteiro: examinar parcial e rapidamente as 28 teses teológicas de Lutero na Disputa de Heidelberg (Abril de 1518), onde o Reformador defendeu sua “nova” teologia diante dos agostinianos alemães. Aqui, Lutero não somente apresentou seu “método cruciforme de teologizar”[1] (Timothy F. Lull), como propôs uma “nova” forma de vida cristã. Essa nova forma de vida surge, explica Robert Kolb, porque “a teologia da cruz não pode ser ensinada e confessada sem suas implicações para toda a comunidade humana tornarem-se claras”.[2]

Evidentemente, Lutero não é inerrante, mas, na medida em que suas teses são uma exposição e aplicação fiel de textos bíblicos como 1 Coríntios 1-2 (uma passagem que claramente influencia esse discurso), tenho certeza que podemos aproveitar bastante do que ele ensina. Sua teologia não é nova (daí as aspas do parágrafo anterior), a não ser que estejamos tão mergulhados na teologia da glória que a mensagem bíblica se tornou uma assustadora inovação.

Já que falamos tanto de glória e cruz, o melhor é começar pelos pontos que parecem ser o coração e o resumo da Disputa de Heidelberg, as teses 19-21:

19. Não merece ser chamado de teólogo aquele que enxerga as coisas invisíveis de Deus como se elas fossem claramente perceptíveis nas coisas que são criadas;

20. Antes, merece ser chamado de teólogo aquele que compreende as coisas visíveis e manifestas [posteriores] de Deus por intermédio do sofrimento e da cruz;

21. O teólogo da glória chama o mau de bom e o bom de mau. O teólogo da cruz chama as coisas pelo que elas são.

Essas afirmações são notáveis em si mesmas, mas, afinal, o que elas nos ensinam hoje?

A belíssima citação que abre nosso texto pode ilustrar bem a mensagem. Para Lutero, muitos dos teólogos da igreja haviam trocado a paixão pela glória. Eles haviam abandonado a paixão de Cristo, isto é, os sofrimentos do Senhor e as implicações que elas têm para a vida cristã e substituído tudo por uma pecaminosa mentalidade de glória. Em outras palavras, aquilo que era bom (o Deus encarnado morrendo numa cruz) havia se tornado mau. O que era mau (por exemplo, tese 3: “as obras dos seres humanos, ainda que sejam sempre belas e pareçam boas”) era considerado bom.

Isso era muito mais do que seguir um certo método ou afirmar certo conteúdo: os próprios doutores da igreja poderiam tornar-se teólogos da glória. Comentando essas teses, Trueman explica que “teologia é pensada por pessoas reais e corpóreas, e, portanto, é parte do que o torna quem eles são”.[3] Teologia não é algo desassociado da vida e mesmo o nosso discurso pode ser cheio de cruz, cruz sem nele haver cruz.

O que significa ser um teólogo da glória?

Como, então, nosso discurso e nossa vida revela se somos teólogos da glória? Infelizmente, não há como desenvolvermos todas as teses, mas podemos seguir algumas das ideias de Lutero em alguns pontos:

  1. Epistemologicamente, o teólogo da glória não é capaz de conhecer Deus porque ele busca compreendê-lo por meio das coisas visíveis do mundo, utilizando o poder da razão autônoma. A sabedoria e a experiência humana o guiarão em seu discurso sobre Deus, a revelação e o homem (tese 22). Para Lutero, a intrusão de sistemas humanos distorceria nossa teologia, encaminhando-nos para uma visão distorcida de Deus. Erasmo, por exemplo, cuja teologia era “demasiadamente humana”, tinha dificuldade em crer que Deus estaria em lugares repugnantes como o “buraco de um escaravelho”.[4] A fonte dessa dificuldade era mais especulação filosófica que exegese da Palavra (afinal, a Bíblia ensina que Deus está em todos os lugares, mesmo os que nos parecem mais impróprios). O teólogo da glória não consegue compreender que a cruz de Cristo (e, aqui, Lutero inclui a obra completa do Salvador) é a base para entendermos Deus, sua Palavra e nossos atos. Deus esteve em um útero e pregado no madeiro – isso é o que ensina a Bíblia, não a especulação humana.
  1. Soteriologicamente, como o teólogo da glória acha que pode alcançar Deus por meio de seu conhecimento, ele também crê que chega até os céus por meio de suas obras. Isso não quer dizer que não haja lugar para a graça de Deus no pensamento do teólogo da glória (assim ele pensa, pelo menos). Alguns teólogos medievais sabiam que nossas obras não podiam alcançar mérito diante de Deus. Porém, eles também criam que Deus, em sua condescendência, decidiu que favoreceria o ser humano que fizesse “o que está em si” (tese 16) ou, em nossos termos, o seu melhor. Em outras palavras, “eu sou justo diante de Deus não porque minhas obras são, em si mesmas, dignas de seu favor, mas porque ele decidiu considera-las assim”.[5] O teólogo da glória é aquele que tenta justificar-se pois ele pensa que o amor de Deus “surge a partir do objeto que lhe agrada” (tese 28).
  1. Eticamente, essa visão distorcida de que o favor de Deus deve ser acompanhado do “nosso melhor” gera um entendimento de que as obras justificadoras são boas. Mesmo os elementos que transmitiam a graça divina, como os sacramentos e as indulgências, exigem que o pecador realize “o que está si”. É por isso que Lutero ataca as boas obras e afirma que o teólogo da glória chama o mal de bem e o bem de mal. As “boas” obras aparentam ser um caminho para o céu, mas, na realidade, são obstáculos para Deus e a verdadeira justiça. Mesmo a Lei de Deus, se entendida desta forma, “não pode avançar o ser humano no caminho da justiça” (tese 1).
  1. Antropologicamente, o conceito de livre-arbítrio “após a queda, é meramente um título” (tese 13). Lutero não estava apenas acusando o método escolástico medieval, mas todo sistema religioso que tenta apresentar um caminho para justiça pavimentado pelo esforço humano. Na tese 14, ele explica que o a vontade humana apenas tem “potência para fazer o bem somente em uma capacidade passiva”, isto é, somente se algo externo agir sobre ele.
  1. Esteticamente, o teólogo da glória se afasta da cruz porque ela lhe é desagradável. Lutero diz que enquanto as obras humanas são “atraentes” (tese 3), as obras de Deus são “repulsivas e parecem más” (tese 4). Do que ele está falando aqui? Essas obras más, ele prossegue, são “méritos eternos”. Lutero está falando da cruz de Cristo, uma ideia que é naturalmente repugnante para seres humanos fascinados por suas próprias conquistas e apaixonados por manifestações de poder. Ele explica: “Porque os homens não conhecem a cruz e a odeiam, eles necessariamente amam o oposto, a saber, sabedoria, glória, poder e assim por diante” (explicação da tese 22). A ideia de que Deus tornou-se homem e sangrou até a morte numa cruz porque somos incapazes de nos salvar não é tão agradável quanto um Jesus empreendedor nos dando conselhos de liderança e auto-aperfeiçoamento.

As manifestações da teologia da glória não se esgotam nessas áreas e exemplos, no entanto.[6] Hoje, como na época de Lutero, nossas igrejas correm o risco de trocar sua identidade reformada na cruz de Cristo pela humana falsa glória medieval. Faltando um ano para as comemorações de 500 anos da Reforma, é hora de questionarmos o que nos dirige – os sofrimentos do Redentor ou nossos planos de conquista e promoção pessoal. Estar em reforma é entender, como Lutero, que a mensagem da cruz é loucura para os que se perdem, mas sabedoria para aqueles que veem Deus na face do Messias que foi morto, mas ressuscitou. Soli Deo Gloria.

Notas

[1] Ibid., 14.

[2] Robert Kolb, “Luther on the Theology of the Cross,” Lutheran Quarterly 16, no. 1 (March 1, 2002): 443.

[3] Carl R. Trueman, Luther on the Christian Life: Cross and Freedom (Wheaton, IL: Crossway, 2015), 216.

[4] Aaron Denlinger, “Pensas de modo demasiadamente humano a respeito de Deus”, http://reforma21.org/artigos/pensas-de-modo-demasiadamente-humano-a-respeito-de-deus.html

[5] Trueman, 36.

[6] Eu espero desenvolver aplicações mais contemporêaneas e práticas da teologia da cruz em um futuro texto.