Se você acha que quadrinhos é coisa de criança, saiba que está enganado. Como qualquer outra manifestação artística, vemos em seus desenhos e roteiros a expressão (consciente ou não) dos pensamentos de certo autor. Prova disso é o recente lançamento do (suposto) primeiro personagem gay criado pelos estúdios de Mauricio de Sousa. A lição é: mesmo quando é feito para crianças, não há gibi ingênuo ou neutro. São adultos que os escrevem, desenham e publicam.
Gênesis, de Robert Crumb, é prova disso. O livro, lançado mundialmente há algumas semanas, e publicado no Brasil pela editora Conrad (R$ 49,90) tem como objetivo apresentar o primeiro livro da Bíblia da maneira mais fiel possível ao texto original. O autor, que não esconde suas posições anticristãs, e seu ódio à Bíblia, é conhecido por seus textos ácidos e subversivos, deixa clara sua intenção na introdução da obra: “no melhor da minha habilidade, reproduzi fielmente cada palavra do texto original… abordei isto como um trabalho de pura ilustração, sem intenção de ridicularizar ou fazer piadas visuais”.
Crumb conseguiu o que queria? Eu diria que parcialmente sim. Percebe-se claramente o respeito pelo livro de Moisés (pelo qual ele não tem qualquer reverência religiosa, mas reconhece ser uma obra magistral) em cada página, na representação física dos personagens e de seu ambiente. Alguns leitores, claro, ficarão incomodados pelas representações das cenas de nudez, sexo e violência – não há nada apelativo, mas acredito que a sensibilidade de alguns pode ser ferida. A habilidade de Crumb fica clara em quadros que representam as genealogias, onde diferentes cenas do cotidiano pré-israelita são usadas para dar vida a cada nome, situação e família listados. Esses trechos, infelizmente considerados cansativos pela maioria dos cristãos, ganham força nesse trabalho.
Mas é dando vida aos personagens mais famosos de Gênesis que Crumb mostra sua força como desenhista e narrador. É impossível não sentir certa tristeza pelas decisões erradas de Abraão. O patriarca hebreu é representado como um homem pecador, semelhante a nós, com suas fraquezas e astúcias – nada que a Bíblia não tenha dito, é verdade. Mas ao reler o texto, a graça de Deus se mostrou ainda mais maravilhosa, diante de tão grandes falhas que carregamos. Outro destaque, em minha opinião, é a história de José. Todo o sofrimento do filho de Jacó e sua ascensão ao poder mostram que, embora Deus pareça ausente (de fato, o personagem que representa Deus, praticamente desaparece no final do livro), é ele quem está por trás de tudo aquilo. O reencontro da família e os momentos em que José explode de emoção são ilustrado de maneira emocionante, culminando em uma das mais belas declarações de fé na soberania e providência de Deus: “o mal que pretendíeis contra mim, Deus transformou em bem” (Gn 50.20).
Isso significa que o texto bíblico, puro e simples, é inferior à obra em quadrinhos? Certamente, não. É muito superior. Talvez Crumb saiba disso, pois nada escrito vem dele, mas apenas do livro de Gênesis. A Palavra de Deus não precisa de alguma direção artística para se tornar mais viva e eficaz. Ela continuará cumprindo seu propósito, quer você leia ou não essa HQ, quer você, como Crumb, odeie a Bíblia. As imagens podem nos dar novos entendimentos sobre o texto, como faria um bom comentarista, mas a força que moveu e continuará movendo a Igreja será a Escritura – sem o auxílio de figuras.
Alguns cuidados
Gênesis (a história em quadrinhos) tem um dos melhores desenhistas da atualidade e o melhor texto de todos os tempos. Pode algo dar errado aqui? Crumb disse que tentou reproduzir fielmente o texto da Palavra, e eu disse que ele conseguiu, em parte. Acredito realmente que ele fez o possível, no melhor de sua habilidade, para ilustrar os escritos bíblicos. No entanto, isso não significa que, ao desenhar, Crumb não impôs, em especial nos desenhos, suas impressões sobre a Escritura. Cada quadro, mesmo o que parece mais imparcial ou “inofensivo”, é fruto das decisões artísticas de seu autor. Cada palavra num balão, quais ficam maiores ou não, por exemplo, é decisão dele também. Assim, é um pouco de ingenuidade pensar que a obra está destituída de qualquer traço da cosmovisão de seu autor.
Por exemplo, Crumb desenha Deus da maneira ocidental clássica (e não-bíblica): um velho barbudo de feições sempre cerradas. Seria isso o que texto bíblico quis passar? Claramente, não. Deus observa sua Criação, diz que tudo é muito bom, mas seu rosto expressa o mau humor de quem não está satisfeito com a própria obra. É evidente que, tentando manter-se fiel ao texto, o autor acaba transparecendo como ele enxerga o Deus da Bíblia – a velha caricatura do Deus irado. Seria assim que os autores originais da Escritura o entendiam? Certamente não é assim que muitos leitores da Bíblia, ontem e hoje, o enxergam¹.
Com isso, não quero dizer que Crumb não tenha o direito de expor seus pensamentos sobre Deus e a religião. Se é assim que ele enxerga o Criador, só podemos respeitá-lo e orar para que um dia ele o enxergue como o Pai amoroso que conhecemos. Estou apenas alertando para que não cheguemos ingenuamente na obra pensando “agora assim, um trabalho neutro sobre a Bíblia”.
A contracapa nos promete uma obra sem “interpretações teológicas e acadêmicas”, mas, a partir do momento em que você começa a falar do Deus da Bíblia, seja de maneira positiva ou não, você começou a interpretá-lo. O que me incomoda, portanto, não é que Crumb pense diferente de nós, mas que alguns pensem que ele está tomando uma posição livre de suas próprias pressuposições.
E, neste ponto, acredito que os editores brasileiros deixam mais a desejar que o próprio quadrinhista, ao levianamente criticar as traduções portuguesas da Escritura, como se fossem desonestas, por diminuírem parte da poética hebraica e pelas decisões sobre o texto que “facilitam” a conversão e a pregação. (É curioso que em determinados momentos a tradução usada pela própria Conrad acaba suprimindo parte das típicas repetições do texto hebraico, algo que é condenado por eles na introdução! :-D ). Se os editores não concordam com as decisões dos tradutores brasileiros, nada se pode fazer. Mas é preciso muito mais que ter editado a obra de Crumb para menosprezar o trabalho das várias comissões de tradução, tanto católicas, quanto protestantes, quanto judaicas, como se fossem apenas pastores em busca de fiéis.
Questões teológicas
Por fim, é óbvio que alguém fazendo um comentário sobre Gênesis precisará decidir que teoria de formação do Pentateuco usará para interpretar os livros de Moisés. Evidentemente, Crumb utilizará uma versão da hipótese documentária. Para ele, a versão final de Gênesis é apenas uma costura de várias obras, feitas por sacerdotes corruptos do século VI a.C. É evidente que isso influenciará na interpretação do autor.
É por isso que a obra apresenta a religião judaica como mera crença tribal, que várias vezes se mistura a costumes e deuses pagãos, sem que seus patriarcas sequer notem muita diferença entre Yahweh e as divindades cananéias. O sacerdote Melquisedeque (Gn 14), por exemplo, é apresentado como servidor de El-Elyon, que nada tem a ver com o Deus Altíssimo que cremos ser o Criador de tudo e Deus de Israel. É uma decisão do autor interpretar como veria esse trecho, mas é ingenuidade (ou arrogância) pensar que essa é a decisão fiel ao texto, enquanto a interpretação cristã normal não é.
Infelizmente, em nenhum momento qualquer alternativa à hipótese documentária é trazida pelo autor em suas notas. Mesmo sendo uma proposta antiga, revisada e mesmo descartada em alguns lugares, ela é apresentada quase como a verdade sobre o surgimento do Pentateuco. Para o leitor confuso, obras recentes² podem ser úteis a fim de conhecer posições mais ortodoxas.
Por fim, um problema grave nas interpretações de Crumb é sua visão da guerra entre patriarcado e matriarcado, que ele expõe nas notas finais (felizmente, só ali). Usando apenas uma obra feminista como referência, o autor tece comentários polêmicos e questionáveis sobre todo o relacionamento entre Sara, Rebeca, Raquel, Lia e seus respectivos esposos. Para o quadrinhista, essa é uma grande história da batalha entre culturas patriarcais e matriarcais, que os sacerdotes judeus não conseguiram esconder bem. Parece que Crumb acreditou demais nesse trabalho, o que tira um pouquinho de credibilidade de toda sua pesquisa.
Veredicto
Embora tenha me concentrado mais nos motivos de cuidado que nos pontos positivos, reitero que o trabalho de Robert Crumb nesse livro é impressionante, tanto por sua pesquisa (há realismo em rostos, roupas, construções e paisagens), quanto pela beleza de sua arte. Existem muitos perigos teológicos, mas tecnicamente é uma obra muito bem feita.
Mas, afinal, por que gastar tempo pensando numa história em quadrinhos? Talvez o pastor ou líder de jovens não tenha tempo (ou dinheiro) para gastar com essa obra. Não parece que fará falta em sua biblioteca. Se você não se interessa por HQs, está certíssimo. Mas muitas das suas ovelhas podem entrar em contato com essa bela publicação, seja por meio de colegas, seja por aquisição própria. E algumas questões podem se levantar. Estaria Crumb certo? Seria o Gênesis uma obra manipulada por sacerdotes? É bom estarmos alertas a essas possíveis perguntas.
Como disse no início, histórias em quadrinhos não são coisa de criança. E o que esse livro nos mostra é que o Gênesis também não é. Com isso, não quero dizer que as crianças devem ficar longe das histórias da Bíblia. Estou dizendo que talvez estejamos tão familiarizados com o primeiro livro da Bíblia que nos esqueçamos que ele também faz parte da história do Criador em busca do homem rebelde. E Gênesis de Crumb mostra (para desgosto de seu autor) quão amados por Deus somos, pois vemos quão baixo podemos descer se a graça de Deus não nos sustentar. Gênesis (de Moisés, não de Crumb) é um livro curioso. Essa história tem serpente, arca de bichos, milagres e anjos, mas não é nada infantil.
“Trata-se de um livro grande, repleto de grandes histórias e grandes personagens. Eles fazem grandes planos (não apenas para si mesmos) e cometem grandes erros. É um livro que fala de Deus, de cobiça e de graça; fala de vida e desejo, de riso e solidão. E fala sobre nascimentos, começos e traições; sobre irmãos, brigas e sexo; sobre poder e oração, prisão e paixão. Tudo isso apenas em Gênesis.” (N.T. Wright)³
Notas
¹ Existe aqui a questão da representação de Deus, que é proibida pela Lei. Não me deterei no assunto, apenas direi que é um pecado menosprezado por muitos cristãos, mesmo sinceros. Não sou a favor de representações divinas – mesmo em peças teatrais na igreja ou materiais infantis, considerados inofensivos por muitos. De qualquer forma, esperava um pouco mais de Crumb em suas escolhas para a figura divina.
² Por exemplo, An Old Testament Theology, de Bruce K. Waltke; Como Ler o Gênesis, de Tremper Longman III; a obra clássica de Umberto Cassuto, The Documentary Hypothesis and the composition of the Pentateuch. Sugira mais nos comentários :-)
³Simplesmente Cristão, Ed. Ultimato, p.185.
– Todas as imagens foram retiradas da versão francesa
– Para uma análise menos positiva, veja o texto de Al Mohler (embora me pareça que ele não leu a obra, o que empobrece um pouco seu tratamento).