“O evangelho é a mensagem, a proclamação que traz salvação, a respeito de Cristo que foi mandado por Deus Pai… para obter vida eterna. A lei está contida nos preceitos, ela ameaça, ela sobrecarrega e ela não promete boa vontade. O evangelho age sem ameaças, não é dirigido por preceitos, mas nos ensina sobre a suprema boa vontade de Deus para conosco.” – João Calvino
Lei e evangelho: as “duas palavras” da Escritura
A fim de recuperar a suficiência das Escrituras, precisamos, mais uma vez, aprender a distinguir a lei e o evangelho como as “duas palavras” da Escritura. Para os reformadores, isso não era o bastante para acreditar na sua inerrância. Roma também tinha uma boa visão das Escrituras, em teoria. Os reformadores não estavam criticando a igreja por negar seu caráter divino, e sim, argumentando que Roma subverteu a sua grande visão das Escrituras pela adição de outras palavras, e por falhar em ler e proclamar as Escrituras segundo o seu sentido mais óbvio.
No coração da hermenêutica reformada estava a distinção entre “lei” e “evangelho”. Para os reformadores, isso não era equivalente a “Velho Testamento” e “Novo Testamento”. O que significava, nas palavras de Theodore Beza, é que, “Nós dividimos essa Palavra em duas partes ou tipos principais: uma chamada ‘Lei’ e a outra ‘Evangelho’. Todo o resto pode ser reunido debaixo de uma ou outra dessas duas principais”. A Lei “está escrita naturalmente em nossos corações”, enquanto “o que nós chamamos de Evangelho (as boas novas) é a doutrina que não está totalmente em nós naturalmente, mas que é revelada do Céu” (Mt 16.17; Jo 1.13). A Lei nos leva a Cristo no Evangelho por meio da nossa condenação e criando em nós desesperança a respeito de nossa própria “retidão”. “A ignorância dessa distinção entre Lei e Evangelho”, Beza escreveu, “é a principal culpada pelos abusos que corromperam e continuam corrompendo o Cristianismo”.¹
O Evangelho não é uma Lei mais fácil
Lutero fez esta hermenêutica central, mas ambas as tradições da Reforma Protestante, em conjunto, afirmam essa distinção fundamental. Em grande parte das pregações medievais, a Lei e o Evangelho eram tão confundidos que as “Boas Novas” pareciam ser de que Jesus era um “Moisés mais amável e gentil”, que amoleceu a lei em exortações mais fáceis, como amar a Deus e ao próximo com o coração. Os reformadores viam Roma ensinando que o Evangelho era simplesmente uma “lei” mais fácil que a do Antigo Testamento que, ao invés de seguir um monte de regras, Deus espera só amor e a entrega do coração.
Calvino respondeu: “Como se pudéssemos pensar em algo mais difícil do que amar a Deus com todo nosso coração, toda a nossa alma, e toda a nossa força! Comparado com esta lei, tudo pode ser considerado fácil … A lei não pode fazer mais nada do que acusar e culpar tudo a um homem, para condenar, e, por assim dizer, apreendê-lo; para condená-los no julgamento de Deus: que só Deus pode justificar, que toda a carne deve manter silêncio diante dele”.² Assim, Calvino observa, Roma apenas via o Evangelho como aquilo que permite aos crentes tornarem-se justos pela obediência e que isso é ” uma compensação pela sua falta “, não percebendo que a Lei exige a perfeição, não aproximação.³
É claro que ninguém afirma já ter chegado à perfeição mas, no entanto, muitos afirmam “ter se rendido completamente a Deus, [dizendo que] eles têm mantido a lei em parte e são, no que diz respeito a essa parte, justos.”4 Apenas o terror da Lei pode abalar essa nossa auto-confiança. Assim, a lei condena e nos leva a Cristo, para que o Evangelho possa nos confortar sem ameaças ou exortações que possam levar à dúvida. Em um de seus primeiros escritos, Calvino defendeu esta distinção evangélica entre Lei e Evangelho:
Tudo isso vai ser rapidamente entendido pela descrição da Lei e do Evangelho e depois pela comparação deles. Portanto, o Evangelho é a mensagem, a proclamação da salvação, trazendo a respeito de Cristo que foi mandado por Deus Pai… para obter vida eterna. A lei está contida nos preceitos, ela ameaça, ela sobrecarrega e ela não promete boa vontade. O evangelho age sem ameaças, ele não é dirigido por preceitos, mas nos ensina sobre a suprema boa vontade de Deus para conosco. Assim, deixa aquele que deseja ter um entendimento claro e honesto do Evangelho, testar tudo pelas descrições da Lei e do Evangelho. Aqueles que não seguem este método de tratamento nunca serão devidamente versados na Filosofia da Cristo.5
A Lei nos guia, mas o Evangelho é sempre necessário
Enquanto a lei continua guiando o crente na vida cristã, Calvino insiste que isso nunca pode ser confundido com as Boas Novas. Mesmo depois da conversão, o crente se vê em uma desesperadora necessidade do Evangelho, porque ele lê os mandamentos, exortações, ameaças e avisos presentes na Lei e frequentemente oscila em sua autoconfiança, pois não vê em si mesmo a retidão necessária. Eu realmente me entreguei? Estou verdadeiramente progredindo em todas as áreas da minha vida? E se eu não estiver experimentado as mesmas coisas que os outros cristãos consideram como regra? Eu realmente possuo o Espírito Santo? E se cair em um pecado muito sério? Essas são questões que encaramos durante a nossa vida. O que irá restaurar nossa paz e esperança frente a esses questionamentos? Os Reformadores, assim como os profetas e apóstolos, estavam convencidos de que apenas o Evangelho pode trazer esse conforto ao cristão.
Sem essa ênfase na pregação, ninguém nunca poderá adorar a Deus verdadeiramente ou servi-lO em liberdade, e o seu olhar será sempre voltado para si mesmo – tanto em desesperança quanto em autojustiça – ao invés de voltar-se para Cristo. A Lei e o Evangelho, ambos, devem ser sempre pregados, para convicção e instrução, mas a consciência nunca irá descansar, diz Calvino, enquanto o Evangelho estiver misturado com a Lei. “Consequentemente, esse Evangelho nunca impõe nenhum mandamento, mas sim revela a bondade de Deus, Sua misericórdia e Seus benefícios.” 6 Essa distinção, Calvino diz, juntamente com Lutero e outros Reformadores, marca a diferença entre o Cristianismo e paganismo: “Todos que negam isso viram o Evangelho inteiro de cabeça para baixo, eles enterram Cristo totalmente e destroem a verdadeira adoração a Deus”. 7
Ursinus, autor primário do Catecismo de Heidelberg, disse que a distinção Lei-Evangelho “compreende a soma e a substância das Sagradas Escrituras”, são “as divisões principais e gerais das Sagradas Escrituras, e abrangem toda a doutrina nela compreendida.” 8 Enquanto a Lei deve ser pregada como divinas instruções para a vida cristã, nunca deve ser usada para abalar os crentes em relação a confiança de que Cristo é a sua “justiça, e santificação, e redenção” (1 Co. 1.30). O crente vai para a Lei e ama aquela Lei por ser sabedoria divina, pois ela revela a vontade dAquele com quem estamos agora reconciliados graças ao Evangelho. Mas o crente não pode encontrar perdão, misericórdia, vitória, ou até mesmo o poder para obedecê-la indo até a própria Lei, mais depois do que antes de sua conversão. Será sempre a Lei que ordena e o Evangelho que presenteia. É por isso que cada sermão deve abrangir cuidadosamente essa distinção fundamental.
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A necessidade de pregar o Evangelho e a Lei corretamente
Enquanto observava a Igreja Batista na Inglaterra dando lugar ao moralismo na chamada “controvérsia do declínio”, Charles Spurgeon declarou: “Não há nenhum ponto em que os homens cometem erros maiores do que sobre a relação que existe entre a lei e o evangelho. Alguns homens colocam a lei acima do evangelho, outros colocam o evangelho acima da lei. Algumas classes mantêm que o evangelho e a lei estão misturados… Esses homens não entenderam a verdade e não são professores autênticos.”10
Em nossos dias, essas categorias são novamente confundidas até mesmo nas igrejas mais conservadoras. Mesmo onde as categorias de psicologia, marketing e política não tomam o lugar da lei e do evangelho, muito da pregação evangélica hoje se amolece e a Lei é confundida com as exortações do Evangelho. Frequentemente, as pessoas ficam com a impressão de que Deus não espera a retidão perfeita descrita na Lei, mas sim um coração bom e generoso e uma atitude de abstenção da maioria dos pecados.
Um suave moralismo prevalece em muitas pregações evangélicas atualmente e raramente ouve-se a Lei sendo pregada como condenação e ira de Deus, mas como sugestões úteis para uma vida mais completa. No lugar da Lei de Deus, dicas úteis para uma vida prática são oferecidas. (Em uma das grandes igrejas conservadoras que preguei recentemente, o sermão foi identificado no programa como “Perspectivas de um estilo de vida”. Apenas foi o que, ocasionalmente, alguém me lembrava de que era uma igreja e não uma reunião de Rotary Club). A piedade e a fé das personagens bíblicas são frequentemente pregadas como um exemplo a ser imitado, junto com Thomas Jefferson e Ben Franklin. Como no liberalismo protestante, cuja pregação geralmente falha em manter Cristo como o divino salvador de pecadores, e sim como um técnico cujo livro de estratégias vai nos mostrar como conquistar a vitória.
Algumas vezes isso se deve menos à convicção que à falta de precisão. Por exemplo, frequentemente ouvimos as chamadas para “viver o evangelho”, e ainda em nenhum lugar das Escrituras somos chamados a “viver o evangelho”. Em vez disso, somos chamados para acreditar no evangelho e a obedecer a lei, recebendo o favor de Deus de um e a orientação dEle do outro. O evangelho – ou Boas Novas – não é que Deus vai nos ajudar a alcançar Seu favor com a Sua ajuda, mas que um outro alguém viveu a lei em nosso lugar e cumpriu toda a sua retidão.
Outros confundem a lei e o evangelho substituindo as exigências da lei pela simples ordem de “entregar tudo” ou “fazer de Jesus seu Senhor e Salvador”, como se uma pequena tarefa dessas fosse proporcionar vida eterna. No início desse século, J. Gresham Machen declarou, “De acordo com o liberalismo moderno, a fé é essencialmente o mesmo que ‘tornar Cristo o mestre’ da vida de alguém… Mas isso simplesmente significa que a salvação é pensada como sendo obtida pela nossa obediência aos mandamentos de Cristo. Tal forma de ensino é apenas uma forma sublimada de legalismo”. 11
Em outro trabalho, Machen adicionou, “Que bem me faz me falarem que o tipo de religião apresentada na Bíblia é um tipo muito bom de religião e que o que devo fazer é começar a praticar esse tipo de religião agora?… Vou te contar, meu amigo. Isso não me faz nem um ínfimo pouco de bem. O que eu preciso antes de tudo não é exortação, mas o evangelho. Não caminhos para eu mesmo me salvar, mas conhecimento de como Deus me salvou.Você tem alguma notícia boa? Essa é a pergunta que te faço. Eu sei que as suas exortações não irão me ajudar. Mas se alguma coisa foi feita para me salvar, você não irá me contar os fatos?” 12
Obediência não deve ser confundida com o evangelho
Isso significa que a Palavra de Deus não ordena a nossa obediência ou que tal obediência é opcional? Certamente, não! Mas isso significa que a obediência não pode ser confundida com o evangelho. Nossa melhor forma de obediência é corrompida, então, como podem ser boas novas? O evangelho é que Cristo foi crucificado por nossos pecados e ressuscitou para nossa justificação. O evangelho produz nova vida, novas experiências, e uma nova obediência, porém, muito frequentemente, seus frutos e efeitos são confundidos com o próprio evangelho. Nada que acontece dentro de nós é, propriamente falando, o “evangelho”, mas é o efeito dele. Paulo nos instrui, “Somente deveis portar-vos dignamente conforme o evangelho de Cristo…” (Fp 1.27). Enquanto o evangelho não contém comandos ou ameaças, a lei, de fato, possui e os cristãos ainda têm obrigações para com as duas “palavras” que ouviram da boca de Deus. Assim como a Trindade ou as duas naturezas de Cristo, não devemos separar nem confundir lei e evangelho.
Quando a lei é amolecida em suaves promessas e o evangelho é endurecido em condições e exortações, o crente se encontra, geralmente, em um estado deplorável. Para aqueles que conhecem seu próprio coração, a pregação que tenta suavizar a lei, assegurando-lhes que Deus vê o coração, aqui vem más notícias, não boas: “Enganoso é o coração, mais do que todas as coisas…” (Jr. 17.9).
Muitos cristãos têm experimentado a confusão entre lei e evangelho em suas dietas, onde o evangelho é livre e incondicional quando eles se tornam crentes, mas agora é empurrado para o fundo para dar lugar a uma ênfase quase exclusiva nas exortações. Novamente, não são as exortações que não têm seu lugar, mas elas nunca devem ser confundidas com o evangelho e aquele evangelho do divino perdão é tão importante para crentes pecadores ouvirem quanto para não crentes. Também não podemos assumir que os crentes avançam para além do estágio em que precisam ouvir o evangelho, como se as Boas Novas acabassem na conversão. Pois, como Calvino disse, “Somos todos parcialmente descrentes por toda a nossa vida”. Nós devemos constantemente ouvir a promessa de Deus a fim de combater as dúvidas e medos que são naturais para nós.
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O perigo de não conhecer o lugar da lei
Mas existem muitos, especialmente na nossa era narcisista, cuja ignorância da lei os leva a uma segurança carnal. Assim, as pessoas frequentemente concluem que estão “seguras e protegidas de todos alarmes” porque vieram à frente, fizeram uma oração ou assinaram um cartão, ainda que elas mesmas nunca tiveram que desistir de suas folhas de figueira para serem vestidas com a justiça do Filho de Deus. Ou talvez, mesmo elas não tendo amado perfeitamente a Deus e ao próximo, elas podem concluir que, pelo menos, elas “se renderam”, ou “permitem que o Espírito agisse”; que elas estão “vivendo em vitória sobre todo pecado conhecido” e desfrutando de uma “vida melhor”. Iludindo a outros e a elas mesmas, precisam ser despojadas de suas folhas de figueira, a fim de vestirem as peles do Cordeiro de Deus. Assim, Machen escreve,
Uma nova e mais poderosa proclamação da lei é talvez a necessidade mais urgente do momento, os homens têm uma pequena dificuldade com o evangelho se eles aprenderam apenas a lição da lei. Eles estão se desviando do caminho cristão; estão se virando para a vila do moralismo e para a casa da Sra. Legalismos, que dizem ser muito hábil em aliviar os homens de suas cargas… ‘Tornando Cristo mestre’ de suas vidas, colocando em prática ‘os princípios de Cristo’ pelos seus próprios esforços – estas são apenas novas formas de ganhar a salvação pela obediência de alguém pelos mandamentos de Deus. E eles estão comprometidos por causa de uma perspectiva vaga sobre o que esses mandamentos são. Por isso, sempre é assim: uma visão inferior da lei sempre traz legalismo à religião; uma visão superior da lei faz com que o homem busque a graça. 13
Conclusão
Temos, portanto, que recuperar a lei e o evangelho com esse tipo de pregação, a mensagem cristocêntrica das Escrituras, ou nada de bom virá do nosso trabalho, independentemente de como estamos comprometidos com a inerrância. Não podemos dizer que estamos pregando a Palavra de Deus, a menos que, distinta e claramente, proclamemos ambos, o julgamento de Deus e a justificação como uma dieta regular em nossas congregações. Para recuperar a suficiência das Escrituras devemos, portanto, assim como os Reformadores, recuperar as distinções entre lei e evangelho.
NOTAS
1 Theodore Beza, The Christian Faith, trans. de James Clark (Focus Christian Ministries Trust, 1992), 40-1. Publicado pirmeiramente em Geneva e, 1558 como a Confession de foi du chretien.
2 Calvin, 2.7.5 -1536 Institutas, trans. de F. L. Battles (Eerdmans, 1975), 30-1; cf. 1559 Institutas2.11.10.
3 Calvin, 1559 Institutas, 3.14.13.
4 Ibid.
5 Battles edition da edição de 1536, op. cit., 365. Entregue por Nicolas Cop em sua assenção à reitoria da Universidade de Paris; onde há um amplo consenso entre os estudiosos de Calvino de que Calvino que era o autor.
6 Ibid., p. 366.
7 Ibid., p. 369.
8 Ursinus, Commentary on the Heidelberg Catechism (Presbiteriano e Reformado, da Segunda Edição Americana, 1852), p. 2.
9 Ibid, p. 2.
10 Charles Spurgeon, New Park Street Pulpit, vol.1 (Pilgrim Publications, 1975), p. 285.
11 J. Gresham Machen, Christianity & Liberalism (Eerdmans, 1923), p. 143.
12 J. Gresham Machen, Christian Faith in the Modern World (Macmillan, 1936), p. 57.
13 J. Gresham Machen, What is Faith? (Macmillan, 1925), pp. 137, 139, 152.