Introdução
Em vários momentos da história, diferentes doutrinas estiveram no centro da atenção da igreja. Nos primeiros séculos depois da morte e ressurreição de Cristo, por exemplo, a igreja teve grande dificuldade em formular com precisão o ensinamento bíblico acerca da Trindade e da Pessoa de Cristo. O fruto dessa dificuldade é achada nos escritos de inúmeros pais da igreja, no Credo Niceno e na Definição de Fé do Concílio de Calcedônia. Muitos séculos depois, durante a Reforma, soteriologia e eclesiologia se tornaram o foco central de grande parte da atenção da igreja. Debates em torno dessas doutrinas continuam nesses dias. Escatologia, por outro lado, embora não tenha sido ignorada nos primeiros séculos, realmente mudou-se para o centro da atenção da igreja nos séculos dezenove e vinte. Desde a emergência do dispensacionalismo popular no final do século XIX até os escritos influentes de Schweitzer, Dodd, Moltmann e outros no século XX, é claro que a escatologia surgiu para um lugar de proeminência bíblica, teológica e de estudos históricos.
Definindo escatologia
O que queremos dizer quando falamos de “escatologia”? A palavra é baseada na combinação de duas palavras gregas: eschatos (último) e logos (palavra). Tradicionalmente, escatologia foi definida como a “doutrina das últimas coisas” em relação a história individual (ex.: morte e estado intermediário) e cósmica (ex.: o retorno de Cristo, a ressurreição geral, o julgamento final, céu e inferno)¹. Por causa dessa definição, muitos dos estudos de escatologia se limitaram a uma discussão de eventos que ainda tinham de ocorrer – eventos no final da vida individual ou eventos no final da história².
Escatologia num sentido mais amplo, entretanto, se preocupa com o que as Escrituras ensinam sobre o propósito de Deus em Cristo na história. Como tal, a escatologia inclui um estudo da consumação dos propósitos no fim da história, mas também inclui um estudo dos estágios no desdobramento dos seus propósitos³. Se, por exemplo, a primeira vinda de Cristo inaugurasse os “últimos dias,” então um estudo da escatologia bíblica deve incluir um estudo da primeira vinda de Cristo como também da segunda. Deve também incluir um estudo da preparação de Deus na história para a primeira vinda escatológica de Cristo. Em outras palavras, escatologia deve envolver um estudo histórico-redentivo de toda a Bíblia. Vamos embarcar em tal estudo durante as próximas semanas.
A promessa a Abraão: a chave para Gênesis e um importante ponto na história redentiva
O chamado de Abrão em Gênesis 12.1-9 é um ponto importante na história rednetiva. De acordo com Gordon Wenham, nenhuma parte de Gênesis é mais significante do que 11.27 – 12.9. i Ela é, como Bruce Waltke observa, “o centro temático do Pentateuco”.ii Enquanto os primeiros onze capítulos de Gênesis focam primariamente nas consequências terríveis do pecado, as promessas de Deus a Abrão em Gênesis 12 focam na esperança da redenção, na benção restauradora e reconciliação com Deus. Deus está lidando com o problema do pecado e do mal, e ele está estabelecendo seu reino na Terra. Como ele fará isso começa a ser revelado em suas promessas a Abrão. iii Os capítulos restantes de Gênesis seguem os estágios iniciais no cumprimento dessas promessas. Assim, Gênesis 12.1-9 define o cenário para o restante de Gênesis e o restante para a Bíblia.iv
A parte mais importante de Gênesis 12.1-9 é o chamado explícito de Deus a Abrão localizado nos versos 1-3.
Ora, disse o Senhor a Abrão: Sai da tua terra, da tua parentela e da casa de teu pai e vai para a terra que te mostrarei; de ti farei uma grande nação, e te abençoarei, e te engrandecerei o nome. Sê tu uma benção! Abençoarei os que te abençoarem e amaldiçoarei os que te amaldiçoarem; em ti serão benditas todas as famílias da terra.
O tema do chamado de Deus a Abrão está evidente nas cinco repetições dos termos-chave “abençoar” e “benção.” Também importante é a repetição da palavra “tu” (te e ti) e “teu e tua.” O pecado do homem resultou na maldição de Deus (Gn 3.14, 17; 4.11; 5.29; 9.25), mas aqui Deus promete formar um povo para si e restaurar seus propósitos originais de abençoar a humanidade (Gn 1.28).v Abrão de alguma forma será o mediador dessa benção restauradora.
Quatro promessas
Dentro do chamado de Deus a Abrão existem 4 promessas básicas: (1) descendência, (2) terra, (3) a benção ao próprio Abrão, e (4) a benção das nações através de Abrão. vi No versículo 1, Deus ordena Abrão a sair de sua casa e ir para a terra que ele lhe mostrará. A promessa da terra não é explícita nessa ordem inicial. Ela somente se torna explícita quando Abrão chega a terra de Canaã. Nesse ponto, Deus promete a Abrão, “Darei à tua descendência esta terra” (12.7). Essa promessa da terra se torna um tema chave em todo o restante do Velho Testamento. vii Ela é especialmente importante no restante do Pentateuco e nos livros referidos no cânon Hebraico como os “Profetas Anteriores” (Josué, Juízes, Samuel e Reis). Nos termos do propósito do reino de Deus, a promessa da terra indica que Deus não abandonou o seu plano de estabelecer o seu reino na terra. A promessa da terra teria sido certamente importante para Israel no tempo que o Pentateuco foi originalmente composto. Como Israel estava nas planícies de Moabe, eles foram assegurados de que a terra que eles estavam prestes a entrar foi prometida a Abraão e à sua descendência pelo próprio Deus.
Em Gênesis 12.2, Deus promete que vai fazer de Abrão “uma grande nação”. Essa promessa será cumprida inicialmente no nascimento da nação de Israel. viii Essa promessa necessariamente implica que Abrão vai ter uma descendência, mas como a promessa da terra, a promessa da descendência só é feita explicitamente quando Abrão chega a Canaã (12.7). A promessa da descendência também é relacionada com os propósitos finais do reino. Assim como a promessa da terra provê uma área para o reino de Deus no meio de sua criação, a promessa da descendência antecipa um povo para o seu reino. Deus então promete abençoar Abrão e fazer seu nome grande para que ele seja uma benção. ix O quarto elemento da promessa de Deus é que em Abrão “serão benditas todas as famílias da terra” (12.3). Abraão será o cabeça de “uma família pela qual todas as outras famílias da tera serão abençoadas”.x Na verdade, a benção a todas as famílias da terra é o propósito primário por trás do chamado de Deus. O seu chamado e as promessas que ele dá não terminam em si mesmas. A Abrão é prometido uma descendência, uma terra, uma benção pessoal para que ele possa ser o mediador da benção de Deus a todas as famílias da terra.xi À medida que avançamos, o significado escatológico das promessas de Deus a Abrão e sua determinação em abençoar todas as famílias da terra vão se tornar mais claras. Como veremos, essa benção vai se tornar o estabelecimento do reino de Deus. Desse ponto em diante em Gênesis, “a principal preocupação do escritor é traçar o desenvolvimento da resolução de Deus em abençoar”. xii
Traduzido por Pedro Vilela | iPródigo.com | originais aqui e aqui
Notas
¹Anthony Hoekema, A Bíblia e o Futuro.
² E.x.: William Hendriksen, A VidaFutura segundo a Bíblia; Paul Hesm, TheLastThings.
³ Stephen S. Smalley, John: Evangelist & Interpreter.
i Gordon Wenham, Genesis 1-15 (Waco: Word Books, 1987), 281.
ii Bruce Waltke,Bruce Waltke, Genesis: A Commentary (Grand Rapids: Zondervan, 2001), 208.
iii Paul R. Williamson, Sealed With An Oath: Covenant in God’s Unfolding Purpose, NSBT 23 (Downers Grove,IL: InterVarsity, 2007), 77; William J. Dumbrell, Covenant and Creation: A Theology of Old Testament Covenants (Nashville: Thomas Nelson, 1984), 47.
iv Bruce Waltke (Genesis, 209) elabora nesse importante ponto, “ O chamado de Deus a Abraão é a sorrateira previsão para o resto da Bíblia. É uma história de Deus trazendo salvação para todas as tribos a nações através da sua nação santa, administrada primeiramente pelo pacto Mosaico e depois pelo Senhor Jesus Cristo através do novo pacto. Os elementos do chamado de Abraão são reafirmados a Abraão (12:7; 15:5-21; 17:4-8; 18:18-19; 22:17-18), a Isaque (26:24), a Jacó (28:13-15; 35:11-12; 46:3), a Judá (49:8-12), a Moisés (Êx.3:6-8; Dt. 34:4), e às dez tribos de Israel (Dt. 33). Eles são reafirmados por José (Gn. 50:24), por Pedro aos Judeus (Atos 3:25), e por Paulo aos gentios (Gl. 3:8).”
v See Thomas E. McComiskey, The Covenants of Promise: A Theology of the Old Testament Covenants (Grand Rapids: Baker, 1985), 15–58.
vi Como Willem VanGemeren observa, Abraão (22:17-18), Isaque (26:3-4), e Jacó (28:13-15) cada um recebeu a promessa quádrupla de Deus. Veja The Progress of Redemption (Grand Rapids: Zondervan, 1988), 108.
vii Veja Philip Johnston and Peter Walker, eds. The Land of Promise (Downers Grove, IL: InterVarsity, 2000).
viii Dumbrell, Covenant and Creation 66–67.
ix Williamson (Sealed With An Oath, 78–79) argumenta que as palavras weheyeh berakah no fim do verso 2 deveria ser traduzido como uma ordem secundária, “Seja uma benção,” mais do que um consequência certa “você vai ser uma benção” por causa da forma imperativa do verbo. Essa é uma tradução possível, e a ASV traduz as palavras desse jeito, mas não é obrigatório. Nesse tipo de sentença, o verbo no imperativo pode expressar uma consequência (Veja GKC, § 110i; cf. also Joüon, § 116h).
x NIDOTTE, 4:665.
xi T. D. Alexander, From Paradise to the Promised Land: An Introduction to the Pentateuch, 2d ed. (Grand Rapids: Baker Academic, 2002), 85–86. Alusões a essa promessa são achadas nos textos proféticos como Isaias 19:24 e Jeremias 4:2.
xii Allen P. Ross, Creation and Blessing (Grand Rapids: Baker Academic, 1988), 253.