Depois de algum tempo tomando coragem, resolvi iniciar a leitura da famosa obra de Martinho Lutero, Da Vontade Cativa, em seu texto integral. Nesse trabalho, o reformador alemão responde a uma defesa da doutrina do livre-arbítrio feita pelo humanista Erasmo de Roterdã. Antes de entrar especificamente no assunto, o ex-monge trata de certas objeções que o filósofo católico levanta a respeito da necessidade dos mestres da igreja tratarem esse tema tão polêmico.
Para Erasmo, discussões que envolvem tópicos como livre-arbítrio, predestinação, contingência, necessidade e outras palavras complicadas não deveriam ser públicas, e essas questões não deveriam ser ensinadas ao povo. O reformador discorda de seu oponente e oferece algumas respostas para as objeções do humanista.
O curioso é que, apesar de ter escrito há quase 500 anos, os motivos que Erasmo levanta para que doutrinas mais complicadas não sejam discutidas é o mesmo argumento que muitos evangélicos brasileiros levantam hoje. E as resposta de Lutero são mais atuais que nunca.
A proposta desse artigo é aprendermos com o reformador e nos lembrarmos de que a Reforma Protestante surgiu não como tentativa de vencer controvérsias, mas como uma busca por um ensino doutrinário sadio e como fruto da preocupação de verdadeiros pastores. Nem todo aquele que entra em discussões complicadas o faz por amor à briga. Na verdade, em minha experiência, vejo que aqueles que se omitem em discussões sérias demonstram pouco amor pela igreja. Por isso, vejo que Lutero tem muito a nos ensinar hoje.
Sobre a dúvida
Uma das características marcantes de nosso tempo é a pouca atração por afirmações absolutas. Tomar uma posição clara a respeito de um assunto, ter certeza de respostas que os outros não ousam ter é um pecado capital. Claro, há exceções. Quando se trata de sentimentos – “tenho certeza de que estou feliz assim e vocês devem em respeitar” – ou de falta de certeza – “não há verdade absoluta”. Porém, sistemas abrangentes como a cosmovisão cristã são visto com desconfiança, uma vez que tendem a “oprimir” aqueles que não os aceitam.
Assim, pastores e teólogos temem tomar publicamente (ou mesmo privativamente) uma posição além do “feijão com arroz” do cristianismo. Ou eles já são influenciados pelo espírito da época, e creem de coração nas mentiras do nosso tempo ou simplesmente não querem parecer limitadores, tacanhos e extremistas, na busca pelos perdidos pós-modernos. Da mesma forma, as ovelhas são influenciadas e se comprometem apenas com a certeza da falta de certeza.
Veja, por exemplo, uma frase do popular livro A Cabana, pronunciada pelas pessoas da Trindade: “a fé não cresce na casa da certeza” e “gosto demais da incerteza”. Ou o que diz o pastor brasileiro Ricardo Gondim: “Quero manter viva dentro de mim a chama da Reforma Protestante que se opôs ao dogmatismo; reivindicarei a possibilidade da dúvida”¹. Gondim também escreveu um livro, chamado Eu Creio, mas Tenho Dúvidas, onde a necessidade da insegurança como situação normal do cristão é defendida. Jovens de sua igreja declararam em uma carta o seguinte: “Não temos medo de incertezas… Não temos medo de não saber. Temos medo das certezas que prendem Deus a um esquema”. Philip Yancey, outro escritor popular, nos diz uma frase muito repetida em púlpitos, textos e sabedoria de internet: “A dúvida sempre anda com a fé, afinal, na certeza, quem precisaria de fé?”.
Tal forma de pensar, ao contrário do que Gondim pensa, aproxima mais o pensamento evangélico de pensadores modernos que dos movimentos de Lutero, Calvino e aqueles que os seguiram.
Sobre asserções
No início de Da Vontade Cativa, Lutero luta com algo parecido. Erasmo diz que o crente não deve “deleitar-se em asserções”. O que é isso? O reformador explica: “apegar-se com constância, afirmar, confessar, defender e perseverar com firmeza”. Boa parte dos cristãos, às vezes, sem perceber, são mais afeitos a Erasmo que a Lutero. Para eles, convicção em afirmações doutrinárias nada tem a ver com o cristianismo. Já ouvi pessoas dizendo que não seguem dogmas, seguem Jesus. Tolice! “Suprimiste as asserções, e suprimiste o cristianismo”, diz o reformador.
Em seguida, alguém replicará dizendo que a vida cristã é mais que apego a declarações doutrinárias. Concordamos, mas lembramos que não é menos que isso.
A resposta do reformador deve ser abraçada por todos aqueles que compreenderam as verdades bíblicas a respeito da regeneração e da obra do Espírito Santo. Basicamente ela se firma em três proposições.
- O próprio Espírito Santo ordena que os cristãos façam asserções (Mt 10.32, 1 Pe 3.15) e Ele mesmo o faz.
- A incerteza é algo lamentável e é impossível ser cristão sem compreender e apegar-se às verdades da Escritura.
- O Espírito santo escreve em nossos corações assertivas “mais certas e firmes do que a própria vida e toda a experiência”.
Além disso, o reformador vai mais além e demonstra como Erasmo (e todos os que o seguem) mina o próprio pensamento ao negar aquilo que hoje conhecemos como perspicuidade da Escritura². O raciocínio do ex-monge alemão é simples. Se é impossível chegar a alguma conclusão a respeito da doutrina do livre-arbítrio (e aí você pode pensar em qualquer outra doutrina, como “quem é Deus”), como o humanista católico obteve essa informação? Isto é, dizer que não podemos chegar a qualquer conclusão a respeito da doutrina do livre-arbítrio já é, em si, certa conclusão.
Sim, existem doutrinas que são mais claras, outras que nos impedem de ter um conhecimento extensivo de todos os seus pontos e ainda aquelas que exigem maior cuidado do leitor da Bíblia. Alguns exemplos são as doutrinas da Trindade, Encarnação e as diversas posições quanto a Escatologia. Mas veja – isso é diferente de sugerir que tais assuntos não possam ser tratados, pesados e defendidos. Ou que todas as propostas sobre determinado assunto têm a mesma coerência. A doutrina da Trindade, por exemplo, é cheia de mistérios. No entanto, nem por isso os concílios do passado hesitaram em banir hereges e falsas doutrinas.
Para piorar, Erasmo usa como argumentos contrários à doutrina luterana da livre graça textos de pais da igreja e teólogos católicos. Para ele, só podemos entender tais doutrinas com o auxílio dos mestres da igreja romana. O reformador rapidamente questiona o que seu oponente quer dizer. Ele pede que Erasmo decida-se entre a obscuridade da Bíblia ou a capacidade dos mestres romanistas:
“Se crês que a opinião deles foi correta, por que não os imitas? (…) Eu não os teria honrado com meu desprezo privado da maneira como tu o fazes em teu elogio público (…) Pois é preciso que uma das duas afirmações seja falsa: ou tua afirmação de que eles foram admiráveis por seu conhecimento das Sagradas Letras, por sua vida e martírio, ou tua afirmação de que a Escritura não é clara. (…)Só resta concluir que foi por brincadeira ou por adulação que disseste que eles são extremamente peritos na Escritura.”
Evangélicos católicos
Um escritor que me ajudou a perceber mais claramente como nos distanciamos dos princípios da Reforma foi Carl Trueman, professor de teologia histórica e história eclesiástica no Westminster Theological Seminary. Seus ensaios me inspiraram a ler mais de Martinho Lutero e a perceber como muito do evangelicalismo hoje foge daquilo que é historicamente protestante. Em seu artigo Beyond the Limitations of Chick Lit³, o historiador apresenta alguns pontos em que protestantes podem aprender dos católicos. Em seguida, as maiores diferenças são apresentadas e uma delas diz respeito ao tema que estamos tratando.
A respeito da clareza da Escritura, vemos claramente que, como Erasmo, a igreja evangélica afirma agora que a presença de mestres é imprescindível para a leitura da Escritura, uma vez que o crente comum não pode entender sozinho a Palavra de Deus. Além disso, ela concorda com o filósofo católico em sua falta de certeza e no pouco interesse pelo tratamento de doutrinas difíceis.
É claro que os mestres, o estudo, as confissões de fé e os comentários bíblicos são importantes para o protestante. Mas eles não eram vistos como pilares em que toda interpretação deveria se fundamentar. Embora nem todos alcançassem conhecimento de todos os pontos doutrinários, o leitor simples era considerado apto para compreender a Palavra.
Hoje, porém, percebemos que, em muitas igrejas, as suposições de Erasmo são aquelas que dominam: Não podemos entender boa parte das doutrinas. Não podemos “encaixotar” Deus. Não podemos tomar uma posição apenas. Não é possível entender a Palavra sem fazermos uso de todas as ferramentas disponíveis no mercado, como filosofia existencialista, planejamento estratégico, psicanálise, história das religiões, os manuscritos do Mar Morto e por aí vai. Generalizando um pouco, esse é o lado mais acadêmico da igreja evangélica.
Seguindo os mesmos princípios, sem perceber, estão as igrejas pentecostais e neopentecostais em que a palavra e a interpretação do líder são supremas. Ou as revelações que ele tem moldam a cosmovisão da comunidade tanto (ou mais) que a Escritura. Aqui a certeza parece ganhar da dúvida, mas ela se baseia numa patética versão “protestante” do Magistério católico4.
Assim, perdida entre igrejas que perderam suas identidades, há ainda aquele pequeno grupo que ainda entende suas raízes e as reconhece como claras na Palavra de Deus. A igreja reformada não é perfeita, e a mera aceitação da necessidade do que Lutero chama de asserções não garante uma comunidade saudável. Ainda assim, em meio ao caos evangélico, pastores e professores protestantes devem reforçar o ensino da Palavra, como algo claro, acessível e que produz segurança na vida do crente. E esses mesmos líderes não devem temer discordâncias e perguntas honestas sobre doutrina. Como disse o historiador Johannes Schulthess, “Protestantismo é a verdade em todas as circunstâncias”.
Há algum tempo, conversei com um jovem que, com alguma oposição do “apóstolo” de sua igreja, acabara de deixar o neopentecostalismo. Ao tornar-se membro de uma igreja protestante, foi recebido com a típica e estranha hospitalidade dos seguidores da Reforma – diversos livros, sugestões de sites, convites para cursos, treinamentos, etc. Impressionado, ele me disse: “engraçado que o pessoal aqui não tem medo de passar informação, né?”. De fato, o legado da Reforma Protestante é o amor pela verdade e o desejo de transmiti-la.
Que a igreja evangélica brasileira lembre-se disso.
¹ É curioso que Ricardo Gondim se considere (ou, pelo menos, se considerava) representante dos princípios da Reforma quando a frase acima, como veremos, pouca relação tem com a Reforma.
² A palavra é complicada, mas o significado é tranquilo: quer dizer que a Bíblia é clara e pode ser compreendida sem dificuldades.
³ Você pode ler em inglês as duas partes aqui e aqui. Esse artigo também foi reproduzido nos dois excelentes livros de Trueman – Minority Report e Fools Rush in Where Monkeys Fear to Tread.
4 Alguém pode questionar também o valor que o eixo reformado dá às suas confissões. É claro que sempre há o risco de elevá-las acima da Escritura, mas isso seria feito em contradição, uma vez que as próprias confissões declaram-se falíveis.