Porque eu vim pôr em dissensão o homem contra seu pai, e a filha contra sua mãe, e a nora contra sua sogra; E assim os inimigos do homem serão os seus familiares. Quem ama o pai ou a mãe mais do que a mim não é digno de mim; e quem ama o filho ou a filha mais do que a mim não é digno de mim. (Mateus 10.35-37)
Uma coisa fascinante em obras que têm como protagonista um bandido ou um anti-herói são as maneiras como os autores conseguem tornar seu personagem atraente ao público. Há algo na ambiguidade moral que nos atrai e nos faz identificar com essas pessoas não muito boas. Somos, como disse C.S. Lewis, “seres divididos”.
Pode ser o humor afiado, suas frases de efeitos, a capacidade de assustar todos os presentes na sala, ou um passado dramático. Os autores sabem usar várias ferramentas para nos aproximar dos “malvados”. Entre esses fatores, algo muito comum é a motivação do personagem. Se a considerarmos (de alguma forma) aceitável o que leva determinada pessoa a cometer certos crimes, podemos tolerar as atitudes que ele toma para alcançar seu objetivo. Talvez, imaginamos, não faríamos diferente na situação dele.
Recentemente, assisti duas obras que envolvem uma das motivações mais comuns – a família. Uma foi a conhecida trilogia O Poderoso Chefão,que gira em torno de Vito e Michael Corleone, pai e filho, mafiosos ítalo-americanos. Seguindo as tradições sicilianas, Michael assume o controle de sua famiglia, cuidando e providenciando que todos estejam bem – e normalmente isso envolve assustar ou dar um fim em quem ameaça seus “apadrinhados”. Entretanto, no último filme da série, Michael é confrontado por suas ações criminosas. E sua resposta é a seguinte:
– Eu passei minha vida protegendo meu filho. Passei minha vida protegendo minha família.
Também assisti todos os episódios da elogiada série Breaking Bad. Nela, seguimos a vida do professor de química Walter White, diagnosticado com câncer de pulmão. Precisando pagar o tratamento sem falir a família, e tentando garantir um futuro para esposa e filhos, Walt passa a produzir metanfetamina. Em um momento de dúvida, se prossegue ou não nesse caminho, ele é “aconselhado” por um do chefes do tráfico sobre o chamado da masculinidade.
Quando você tem filhos, você sempre terá família. Eles serão sempre sua prioridade, sua responsabilidade. E um homem… um homem provê. Ele faz mesmo quando não é reconhecido – ou respeitado… ou mesmo amado. Ele simplesmente aguenta e faz… porque ele é um homem.
Pela família
Não é necessário gastar muito tempo lendo as Escrituras para perceber que a família é uma unidade essencial no grande plano de Deus. Desde a criação de Eva até o casamento do Cordeiro, percebemos que, quando dois tornam-se um em santo matrimônio, o Senhor está sendo glorificado. Da mesma forma, os filhos são vistos com bênçãos e uma longa posteridade é sinônimo de bem-aventurança. O pacto que Deus faz com seu povo envolve toda a casa, não apenas um indivíduo, e a igreja é chamada a ajudar aqueles que não têm familiares, como viúvas e órfãos. A Bíblia diz que o cristão que não cuida de sua família é pior que um incrédulo e que os presbíteros devem governar bem a própria casa. Deus valoriza a família e devemos fazer o mesmo.
Entretanto, como seres caídos, temos a tendência de valorizar coisas boas acima do Criador. Essa é a essência da idolatria, e Paulo explica isso bem em Romanos 1. Ao nos afastarmos do Senhor, acabamos procurando outras coisas para nos satisfazer infinitamente. E como tudo o que não é Criador, é criação, podemos nos ajoelhar inclusive diante de algo tão abençoado quanto a família.
Esse é um dos motivos do duro alerta de Jesus em Mateus 10. Ele sabia que a decisão de segui-lo poderia colocar o discípulo contra sua própria casa. Uma vez que o crente se tornasse pedra de tropeço para seus parentes, ele deveria fazer a terrível escolha entre continuar nos passos do Senhor e romper com seus familiares ou negar a Cristo e manter-se em paz com seus parentes. Não podeis seguir a dois senhores – mesmo que um seja sua própria casa. Lembre-se que a sociedade judaica do primeiro século valorizava muito mais suas tradições familiares que fazemos hoje e aqui está uma das afirmações mais escandalosas de Jesus.
Quando o crente se torna mafioso
Talvez essa seja a aplicação mais clara do ensino de Jesus em relação à família como um deus rival. Mas, e quando já nascemos em um lar cristão, ou formamos uma grande família na igreja, em que todos amam o Salvador e aparentemente ninguém jamais impedira o próprio parente de adorar a Deus? É possível cair nesse pecado quando todos somos crentes na casa?
A resposta infelizmente é sim. Somos regenerados, mas ainda não alcançamos a santificação. Podemos colocar a família – tanto os nossos parentes, como um conceito abstrato de “A Família” – acima do Senhor. Embora eu não posso listar todas as situações práticas em que fazemos isso (nem conseguiria – Romanos 1 nos chama de “inventores de males”), penso que alguns exemplos podem nos levar a perceber essa tendência em nós, ainda que a expressemos de outra forma.¹
Por trás da idolatria pela família, há um desejo de protegê-la de qualquer custo. Em certo sentido, isso é bom. O erro está quando tentamos proteger a família do próprio Deus. Como um pai que não quer ver a filha missionária com medo de perdê-la ou um filho que não aceita jamais que o Senhor possa tomar providencialmente a vida de um pai. Sim, podemos chorar e até sentir temor em situações assim. Mas se amamos a Cristo mais que todos, ele será nosso refúgio em momentos difíceis, não nossos parentes. A família é nosso suporte, mas ela também deve se abrigar no grande Protetor. Se queremos lutar contra o Senhor, é porque nos consideramos melhor e mais poderosos que ele.
Não apenas a família sofre quando a colocamos acima do Criador, mas a igreja do Senhor também padece. Ao protegermos a família, talvez podemos atacar a comunidade que tem como objetivo proclamar o nome de Deus. Por exemplo, na área da disciplina. Quantos pais impedem, de alguma forma, que seus filhos sejam disciplinados? E quantas igrejas, tentando não chatear famílias importantes simplesmente relevam os erros de membros tradicionais da comunidade? Podemos citar também o problema que alguns pastores terão em pregar certos assuntos porque incomoda as mães que seus filhos o ouçam ou impediria suas filhas de fazer o que querem.²
Há também o outro lado da moeda, não tão comum hoje, mas ainda presente: pais que punem de maneira exagerada suas crianças pecadoras. Castigar o filho não é errado em si, mas há problema quando se faz isso mais pela vergonha diante da igreja e da sociedade, e menos pela desonra a Deus. O aspecto corretivo da graça não é enfatizado, apenas o castigo da Lei. O Senhor não é ofendido, mas o bom nome da casa.
Também idolatramos a família, quando pecamos para protegê-la. Walter White começou a produzir drogas. Michael Corleone assassinou homens. Pais mentem para professores. Esposas aumentam o salário dos maridos quando conversam com amigas. Homens poderosos subornam mídia e governo para “limpar a barra” de sua casa. Novamente, nos colocamos no lugar de Deus, agora tentando ser Legisladores – recriando e quebrando regras que honrem nossa família ao invés do nome de Cristo.
Há ainda a tendência de realmente agir como uma Máfia, uma verdadeira famiglia, entre membros tradicionais, quando se tenta manter o poder ou a influência de parentes na igreja. Ao invés de escolher pastores, oficiais e líderes com base em 1 Timóteo 3, o fundamento das decisões é, novamente, o sobrenome. Há casos de pessoas que, depois de meses, aparecem em uma sessão apenas para eleger um primo ou tio. Ou familiares revezando-se em conselhos e cargos.³ Talvez acostumados com a maneira como o mundo age, alguns veem a comunidade da Aliança como mais uma oportunidade de expandir seus impérios pessoais. Esquecem-se que a igreja demonstra o poder de Deus na fraqueza e governar entre os pobres de espíritos é fazer-se pobre como Cristo.
Outros casos poderiam ser mencionados, mas há um último problema. Ele acontece quando amamos mais o conceito de Família que amamos Deus, a igreja e as pessoas em geral. Como isso funciona? Isso acontece porque imaginamos certos padrões de como o crente deveria viver em família e como a família deveria funcionar, e os usamos para diminuir ou nos afastar daqueles que não o seguem. Até Paulo é marginalizado em púlpitos e EBDs!
Digo isso por um caso extremo que observei. Certo professor desconsiderava os textos de Paulo sobre seu celibato, porque a igreja deveria honrar os valores “da Pátria e da Família”. Observe que não estamos falando aqui de um teólogo adepto da alta crítica ou relativista, mas de um cristão sincero (e ingênuo) que colocou a “Família” acima da revelação de Deus.
Mas é possível cometer erros parecidos quando a igreja marginaliza e despreza uma mãe solteira ou um homem divorciado, sem oferecer conselho e comunhão, sem conhecer a história dessa pessoa ou observar frutos do arrependimento. Podemos nos esquecer que temos entre nós órfãos, viúvos e estrangeiros – pessoas sem família – ao mesmo tempo em que defendemos os valores da Família. Até mesmo a boa intenção dos membros casamenteiros, tentando juntar todo homem solteiro com qualquer solteira, pode provocar a ira dos jovens. Amamos a “Família”, mas nos podemos nos preocupar muito pouco com nossos irmãos da fé que não seguem o que esperamos da “Família”.4
Nome sobre todo sobrenome
É claro que há um padrão saudável e comum (no sentido de “ordinário”, “normatizado”) na Escritura para a família. Ela deve iniciar com homem e mulher (sim, é necessário esclarecer isso hoje em dia), e os dois devem casar-se, multiplicar-se, ser fieis a aliança que fizeram. O leito matrimonial deve ser honrado (Hb 13.4) na igreja.
Porém, precisamos entender que nem todos, por próprio pecado, por pecado dos outros, pela providência, por um chamado especial ou por escolha própria, seguirão esse padrão. E ainda assim, a igreja deve cuidar graciosamente de cada caso, observando se houve arrependimento ou mesmo se há um chamado para o celibato.
Uma família feliz e saudável não é motivo para nos gloriarmos em nós mesmos, mas apenas no Senhor, pois ela também é fruto da graça – e não das nossas habilidades naturais. A família não é o fim supremo, mas existe para o verdadeiro alvo, Cristo. Nossos nomes são importantes (a Bíblia valoriza linhagens!), mas são infinitamente inferiores Àquele de quem recebe nome toda família nos céus e na terra. Nossos sobrenomes são valiosos, mas eles existem para glória de Jesus Cristo.
A Palavra ensina que, no fim das contas, se o Senhor não edifica uma casa, em vão buscamos cuidar dela (Sl 127). Se somos indefesos quando temos Deus ao nosso lado, quanto mais seremos quando nos colocamos como inimigos do próprio Criador para defender nossos parentes! Como alguém disse para Walter White, enquanto ele se dizia protetor de sua casa, “alguém terá de proteger a família do homem que protege a família”. Irmão, tema se o Deus vingador de seu povo tomar essa responsabilidade para si!
¹ Apenas para constar: o pecado de colocar a igreja ou um ministério acima dos familiares também é comum, mas não focarei isso aqui. É outro tipo de idolatria.
² Exemplo: pregar contra dança litúrgica e enfrentar a liga das mães furiosas.
³ É claro que há casos positivos, claro. Por exemplo, um filho que passou anos aprendendo com o pai certo ofício, até mesmo o pastorado. O problema não é a troca de parentes em si, mas o que está por trás disso.
4 Isso não impede que exortemos as pessoas que se encontram em risco de saírem do padrão normal de Deus. Por exemplo, é importante que adultos puxem a orelha de jovens homens que enrolam suas namoradas.