O nono mandamento: “Não dirás falso testemunho contra o seu próximo”.
Nos termos mais simples possíveis, este mandamento está dizendo que não devemos apenas nos abster de dizer coisas que não são verdade, mas que nós devemos amar e promover a verdade.
Verdade é um importante tema nas Escrituras. A palavra aparece 252 vezes, 163 dessas no Novo Testamento. Cerca de metade dessas referências de “verdadeiro” ou “verdade” são dadas pelo próprio Jesus. Muitas vezes, quando Jesus falou, ele simplesmente precedia suas declarações dizendo que estava falando a verdade (Lucas 4.25; João 16.7). Às vezes, ele se referia a uma pessoa como quem “praticava a verdade” (João 3.21). Outras vezes, ele simplesmente afirmava que alguém disse a verdade (João 4.18). Outras vezes, ele usava a palavra “verdadeiro” antes de um substantivo, usando-a como um adjetivo – por exemplo:
“No entanto, está chegando a hora, e de fato já chegou, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade.” (João 4.23).
“Assim, se vocês não forem dignos de confiança em lidar com as riquezas deste mundo ímpio, quem lhes confiará as verdadeiras riquezas?” (Lucas 16.11)
“Pois a minha carne é verdadeira comida e o meu sangue é verdadeira bebida.” (João 6.55)
Muitas vezes, Jesus faz um teste de veracidade para saber se a pessoa está alinhada com o Diabo ou com o Senhor (leia João 8.44). Ele mesmo se chama de “a verdade” (João 14.6). Ele fala da incapacidade do mundo de receber “o Espírito da Verdade” (João 14.17). Ele fala da verdade como um meio pelo qual Deus santifica e purifica a igreja (João 17.17): “Santifica-os na verdade; a tua palavra é a verdade.”
Quando Jesus estava diante de Pilatos, ele disse “Todos os que são da verdade me ouvem”, a que Pilatos responde “Que é a verdade?”. De fato, essa é a pergunta que iremos discutir preliminarmente. Assim, eu quero discutir a santidade e a importância da verdade. Por que é que nosso Senhor falou tanto sobre verdade, e o que é a verdade que está de acordo com a vontade e o caráter de Deus?
Deus é Verdade
O ponto de partida para todos esses mandamentos é o caráter de Deus. O próprio Deus é verdade, e por causa disso, temos um padrão de verdade e de falsidade.
“Ó Soberano Senhor, tu és Deus! Tuas palavras são verdadeiras, e tu fizeste essa boa promessa a teu servo.” (2 Samuel 7.28)
“Este é o Deus cujo caminho é perfeito; a palavra do Senhor é comprovadamente genuína.” (2 Samuel 22.31)
“Toda palavra de Deus é pura” (Provérbios 30.5)
“Eu, o Senhor, falo a verdade; eu anuncio o que é certo.” (Isaías 45.19)
Observe, também, a estreita ligação entre a verdade de Deus e a sua confiabilidade. Porque Deus não pode negar a si mesmo, então Ele deve manter todas as Suas promessas. Isso deve ser um grande conforto prático aos cristãos, quando se encontram em situação de dúvida ou desânimo.
Chegando ao ponto mais profundo que significa Deus ser “a verdade”, Herman Bavinck relaciona as diferentes linhas filosóficas nas quais Deus é a “verdade”:
- No sentido metafísico. Deus é chamado de “Deus verdadeiro” em distinção aos ídolos. Nesse sentido, Deus é “verdadeiro, único, simples, imutável, e um ser eterno”. Deus é o ser supremo, a suprema verdade, e o bem. Ele é um ser puro. Ele não possui, mas É a verdade.
- No sentido ético. No caso de Deus, há uma completa correspondência entre o ser de Deus e a sua revelação. É impossível para Deus mentir ou negar a si mesmo.
- No sentido lógico. Deus é a verdade no sentido em que ele conhece as coisas como elas realmente são. Seu conhecimento é certo, imutável e compreensível. Não é adquirido através de investigação e reflexão, mas é inerente ao seu ser divino e precede a existência das coisas. O conhecimento de Deus é só uma parte da sua natureza e, portanto, substancialmente verdade. O ser de Deus compõe a realidade e faz a lógica e o conhecimento possíveis.
A oração de Agostinho resume muito bem neste capítulo filosófico:
Te invoco, ó Deus da Verdade, em quem, por quem e mediante quem é verdade tudo que é verdadeiro (Solilóquios I.1)
Acreditando na verdade
“Por essa razão Deus lhes envia um poder sedutor, a fim de que creiam na mentira, e sejam condenados todos os que não creram na verdade, mas tiveram prazer na injustiça.” (2 Tessalonicenses 2.11–12). Note que a conclusão desse verso é que aqueles que tem prazer na justiça vão acreditar na verdade.
“Todos os que são da verdade me ouvem” (João 18.37)
“Não lhes escrevo porque não conhecem a verdade, mas porque vocês a conhecem e porque nenhuma mentira procede da verdade” (1 João 2.21)
“Assim saberemos que somos da verdade; e tranquilizaremos o nosso coração diante dele” (1 João 3.19)
“Portanto, diga a eles: Esta é uma nação que não obedeceu ao Senhor, ao seu Deus, nem aceitou a correção. A verdade foi destruída e desapareceu dos seus lábios.” (Jeremias 7.28)
E assim vemos que é virtuoso acreditar na verdade. Isso significa que nós apenas não devemos aceitar as coisas que são condizentes com a realidade, mas que devemos buscar a verdade sobre tudo na vida – mas especialmente sobre Deus e nós mesmo – através de ensinamentos sólidos, através da razão e procurando melhor compreender as Escrituras. Lembre-se também que Romanos 1.18 fala daqueles que conhecem a verdade e ainda “suprimem a verdade pela injustiça”. A recusa em acreditar na verdade começa no coração.
Amando a verdade
“Por isso amem a verdade e a paz” (Zacarias 8.19)
“porquanto [os ímpios] rejeitaram o amor à verdade que os poderia salvar” (2 Tessalonicenses 2.10). Note nesse versículo a obstinação envolvida em não amar a verdade.
“Procurou também encontrar as palavras certas, e o que ele escreveu era reto e verdadeiro.” (Eclesiastes 12.10)
“Sei que desejas a verdade no íntimo; e no coração me ensinas a sabedoria” (Salmo 51.6)
Tal como acontece nos outros mandamentos, aqui este imperativo de que devemos amar a verdade está enraizado primeiramente no próprio amor de Deus para com a verdade. Deus se deleita na verdade. Nós estamos indo na contramão de Deus se não fazemos o mesmo. Muitos cristãos hoje em dia querem restringir a busca pela verdade aos nerds da teologia e os apologetas, mas se queremos ser discípulos de Jesus Cristo, devemos amar a verdade, ter prazer nas coisas verdadeiras.
Falando a verdade
“Eis o que devem fazer: Falem somente a verdade uns com os outros, e julguem retamente em seus tribunais” (Zacarias 8.16)
“Portanto, cada um de vocês deve abandonar a mentira e falar a verdade ao seu próximo, pois todos somos membros de um mesmo corpo” (Efésios 4.25)
Eu gosto da forma como Thomas Boston coloca isso: “nossa boca deve concordar com a nossa mente”. Vamos relembrar, mais uma vez, que Deus só fala o que é verdade, e isso deve ser ecoado em nosso próprio comportamento. Isso é o que as pessoas primariamente pensam que o nono mandamento está tratando, mas como podemos ver, o falar da verdade é apenas parte do que esse mandamento aborda. Primeiro, a verdade é para ser o primeiro contentamento e satisfação no interior do homem, e então ela procede de nós. Se não conhecemos a verdade, não podemos nos deleitar nela, e se não nos deleitamos nela ou não a amamos, é claro que não iremos falar sobre ela. De fato, nós falaremos contra a verdade, nesses casos, e poderemos até negar a possibilidade de conhecer quaisquer verdades. Este é o ambiente em que vivemos, infelizmente. Nossa época é aquela em que os falam que o que acreditam é verdade são chamados de arrogantes que não cansam de se exaltar. Falar a verdade, muitas vezes, custa bem caro.
Como devemos falar a verdade
“Antes, seguindo a verdade em amor, cresçamos em tudo naquele que é a cabeça, Cristo” (Efésios 4.15)
As pessoas, hoje em dia, acham que falar a verdade “em amor” significa um tom de voz doce, com a cabeça ligeiramente inclinada enquanto balança de leve mostrando preocupação, e uma falta de vontade de afirmar que o que se acredita é “verdadeiro” (pois isso pode ofender o coleguinha). Se as coisas fossem assim, então os Apóstolos e até mesmo o próprio Cristo seriam os convidados mais indesejáveis que se possa imaginar para um jantar. Se há uma convicção da qual o Velho e o Novo Testamentos frequentemente testificam é, provavelmente, a virtude de acreditar, amar e falar a verdade – mesmo que cause prejuízo social.
Então, se o conceito popular de “falar a verdade em amor” está errado, o que significa falar a verdade em amor? Os comentários de Calvino sobre esse verso são úteis:
Se cada indivíduo, em vez de atender exclusivamente aos seus próprios interesses, desejar a mútua edificação, haverá um agradável e generalizado progresso. Essa, o Apóstolo nos assegura, deve ser a natureza dessa harmonia, que os homens não devem sofrer para esquecer o clamor da verdade, ou, desconsiderando-o, enquadrar um consentimento de acordo com suas próprias opiniões.
Calvino está dizendo que o nosso falar a verdade não deve ser para a promoção dos nossos próprios fins, mas a edificação daqueles com quem estamos falando. Se fazer com que pareçamos melhores, ou até mesmo ganhar um argumento apenas para provar que somos grandes debatedores, é o nosso objetivo, então certamente não estamos falando a verdade de uma maneira bíblica. Nós devemos ser cautelosos, porque a pessoa com quem você está falando pode não gostar do que você tem a dizer. Isso não significa dizer, portanto, você não está falando a verdade em amor. Pode significar que você esta fazendo precisamente isso e eles não querem ouvir a verdade.
“Nós não devemos perder de vista o central e óbvio ensinamento do nono mandamento – ele ordena veracidade em todas as relações. Assim, a questão mais importante a ser feita a respeito da comunicação via Internet com relação ao nono mandamento é essa: “isso é verdade?”. Além disso, nós somos chamados, como Cristãos, para “falar a verdade em amor” (Efésios 4.15). Aqui também temos que reconhecer que “amor” não deve ser equiparado a “gentileza”, que o próprio relacionamento da verdade com o amor é, muitas vezes, complexo, e que o discernimento do próprio equilíbrio exige sabedoria e dependência do Espírito de Deus” – William Evans.
Tudo isso não significa que não deve haver cautela e atenção em nosso falar a verdade, e cada um de nós deve procurar em nossos corações e pedir ao Senhor que nos ajude a saber se cruzamos a linha e se o nosso discurso tem sido “em amor” e para o bem dos outros ou não. A coisa mais importante é que a Escritura deve ser nosso guia nesse assunto, uma vez que todos que conhecemos têm uma ideia diferente sobre o que e como devemos falar.