10 enganos acerca do Cânon (4)

Michael J. Kruger
Michael J. Kruger

4 – “Os livros não eram considerados como Escritura até por volta de 200 dC”

A data do cânon do NT é uma das questões mais controversas nos estudos bíblicos atuais. Como um post anterior indicou, parte da resposta para a questão da data depende da visão que uma pessoa tem da definição de “cânon”. Mas, mesmo que tomemos a definição funcional do cânon ­– livros são canônicos quando são usados como Escritura – ainda há um debate acerca de quão cedo isso se deu. Nos anos recentes, entretanto, algo como um quase-consenso começou a ser construído em torno da ideia de que o cânon foi primeiramente considerado como Escritura no fim do segundo século (c. 200). Mcdonald é um representante dessa visão: “documentos [do NT] não foram reconhecidos completamente até o fim do segundo século d.C.”1

O motivo para esse foco no fim do segundo século não é difícil de ser achado. É nesse ponto que a importante figura de Irineu, bispo de Lyon, oferece algumas das declarações mais claras e compreensivas acerca da data do cânon. A mais notável é a sua afirmação de que os quatro evangelhos eram tão seguros que sua existência estava enraizada na própria estrutura da criação: “não é possível que os evangelhos fossem em maior ou menor número do que são”. Por causa da linguagem confiante de Irineu sobre o cânon do NT, estudiosos tem colocado Irineu como um inovador. Até esse ponto, supostamente, ninguém estava preocupado com essas coisas. Irineu abriu um novo caminho e, em essência, criou o cânon do NT sozinho.

Mas estava Irineu realmente sozinho? Ele foi o inovador que os estudiosos o fizeram ser? Vamos considerar algumas fontes históricas que nos mostram que outras pessoas durante esse mesmo espaço de tempo (e até antes) também consideravam os livros do NT como Escritura. Ao examinamos por alto essas fontes, devemos nos lembrar de que  não estamos preocupados com a extensão do cânon, mas com a existência do cânon. Embora os limites do cânon não estivessem solidificados nesse ponto, fica claro que muitos desses livros eram vistos enquanto Escritura bem antes de 200 dC.

Em termos dos contemporâneos de Irineu, duas fontes chave nos dizem que ele não estava sozinho. O fragmento Muratoriano (c. 180) é a nossa lista canônica mais primitiva, e afirma aproximadamente 22 dos 27 livros do NT, número notavelmente próximo da própria posição de Irineu. Ademais, escrevendo pouco depois de Irineu estava Clemente de Alexandria (c.198), que tinha uma posição bastante similar, afirmando os 4 evangelhos, 13 epístolas de Paulo, Hebreus, Atos, 1 Pedro, 1 e 2 João, Judas e o Apocalipse. Tamanha afirmação desse livros não pode ter ocorrido do dia para a noite (algo como uma teoria do “big bang” do cânon), mas deve ter requerido predecessores. Examinemos quem foram alguns desses predecessores:

1. Justino Mártir (c. 150): Ele se refere aos “evangelhos” no plural e, em dado momento, provê uma indicação de quantos ele tem em mente quando descreve esses evangelhos como “desenvolvidos por Seus apóstolos e aqueles que os seguiam”. Já que essa linguagem indica (ao menos) dois evangelhos escritos pelos apóstolos e (ao menos) dois companheiros apostólicos, isso é naturalmente entendido como uma referência aos quatro evangelhos canônicos. O fato dele fazer citações aos Sinóticos e à João demonstra que ele tinha quatro evangelhos em mente.

2. Papias (c. 125): Papias nos diz que a igreja primitiva recebeu e validou os evangelhos de Marcos e Mateus por seu status apostólico. Na verdade, Papias chega a afirmar que Marcos recebeu sua informação do próprio Pedro – uma antiga tradição da igreja. Embora Papias escreva no ano de 125, ele se refere a um tempo anterior (c. 90), quando ele recebeu essa informação do “Ancião” (que é, sem dúvida, João, o Ancião, um dos discípulos de Jesus). Papias também conhecia 1 Pedro, 1 João, o Apocalipse e algumas cartas paulinas.

3. Barnabé (c. 130). A Espístola de Barnabé (4.14) claramente cita Mateus 22.14: “Muitos são chamados mas poucos escolhidos”. Barnabé explicitamente considera Mateus como parte da Escritura porque inicia sua citação com “Está escrito” (a mesma linguagem que ele usa ao citar os livros do AT).

4. 1 Clemente (c. 95). 1 Clemente desafia a igreja a “Considerar a epístola daquele abençoado apóstolo, Paulo… Estando seguros, ele enviou essa carta no Espírito a respeito dele próprio e de Cefas e Apolo”. Estudiosos concordam que Clemente está se referindo aqui à carta de 1 Coríntios onde Paulo escreve “no Espírito”, sem dúvida demonstrando a alta autoridade que ele deu a esse livro. 1 Clemente também faz  alusões plausíveis a outras epístolas de Paulo, incluindo Romanos, Gálatas, Filipenses, Efésios e, também, Hebreus.

5. 2 Pedro 3:16 (c. 65). Um dos exemplos mais antigos vem da passagem muito conhecida de 2 Pedro 3.16 onde as cartas de Paulo são consideradas do nível das “outras Escrituras” do Antigo Testamento. Mais notavelmente, essa passagem não se refere a apenas uma carta de Paulo, mas a uma coletânea das cartas de Paulo (quantas é incerto) que já tinham começado a circular entre as igrejas – tanto que o autor pode se referir a “todas as suas [de Paulo] epístolas” e esperar que sua audiência entenda a quem ele se referia.

Essa é um pequena amostra do uso dos livros do NT como Escritura nos séculos primeiro e segundo. Mas é suficiente para mostrar que o cânon do NT não passou a surgir no fim do segundo século como em um tipo de “big bang”. Em vez disso, temos sólidas evidências de que os livros do NT eram usados enquanto Escritura desde cedo (de acordo com 2 Pedro, até mesmo no próprio século primeiro). Apesar do fato das fronteiras do cânon não serem solidificadas até um período posterior, é claro que um “cerne” do cânon estava presente desde o início.

Se é assim, então há duas implicações significativas que podemos retirar disso. Primeiro, isso significa que a maioria dos debates e desacordos acerca dos livros canônicos no cristianismo primitivo apenas envolvem um grupo restrito de livros. Livros como 2-3 João, Judas, 2 Pedro, etc. O Cristianismo primitivo não era um gênero literário aberto a todos, onde não havia acordo em quase nada. Em vez disso, havia um centro onde todos concordavam que não era tão disputado. Segundo, se há uma coleção central dos livros do NT, então a trajetória do cristianismo primitivo já havia sido determinada antes dos debates acerca dos livros periféricos terem sido resolvidos. Assim, independentemente da solução para as discussões acerca de livros como 2 Pedro ou Judas, as doutrinas centrais acerca da pessoa de Cristo, sua obra, os meios de salvação, etc, já estavam em seus lugares e já haviam sido estabelecidas. A aceitação ou rejeição de livros como 2 Pedro não muda esse fato.

 


1 L.M. McDonald, The Biblical Canon: Its Orgin, Transmission, and Authority (Peabody, MA: Hendrickson, 2007), 359.