10 enganos acerca do Cânon (5)

Michael J. Kruger
Michael J. Kruger

5 – “Os cristãos primitivos discordavam amplamente acerca dos livros que entraram no cânon”

1934 foi um ano importante para a Alemanha. Foi o ano em que Adolf Hitler se tornou Führer e cabeça completo da nação alemã e do partido Nazista. E, como sabemos, não muito depois, a Alemanha invadiu a Polônia e deu início à Segunda Guerra Mundial.

Mas 1934 foi um ano significativo por uma outra razão. Por trás das cenas, de forma bastante quieta, foi publicado um livro que mudaria o panorama de todos os estudos acerca do cristianismo primitivo por anos a fio. Walter Bauer publicou sua agora famosa monografia “Ortodoxia e heresia no Cristianismo Primitivo”. Comparado com a ascensão de Hitler, isso não era muito midiático e, inicialmente, o livro de Bauer não teve um impacto tão grande. Mas, em 1971, ele foi traduzido para o inglês e, desde então, as coisas mudaram drasticamente na academia do mundo de língua inglesa.

Como é bastante conhecida agora, a tese principal de Bauer é que o cristianismo primitivo era bastante bagunçado. Era um pântano teológico. Ninguém conseguia se entender, ninguém conseguia concordar. Havia brigas e competições entre facções diferentes, todas competindo sobre o que realmente constituía o “Cristianismo”. Ademais, para Bauer, não havia algo como um Cristianismo (singular) durante esse tempo, mas apenas Cristianismos (plural). E cada um desses Cristianismos, segundo Bauer, tinha sua própria lista de livros. Cada um tinha seus próprios escritos que valoravam e consideravam como Escritura. E, depois que a poeira abaixou, um grupo particular, e seus livros, ganhou a guerra teológica. Mas porque devemos pensar que esses são os livros certos? Eles são apenas os livros dos ganhadores teológicos.

A tese de Bauer tem passado por um ressurgimento forte nos anos recentes, particularmente nos escritos de estudiosos como Elaine Pagels, Bart Erhman e Helmut Koester. E é a base para um engano muito freqüente acerca do cânon do NT que diz que havia pouco acordo acerca dos livros que entraram para o cânon até os Séculos IV ou V. Antes disso, nos dizem, o cristianismo primitivo era como um gênero literário aberto para todos. Ninguém era capaz concordar em muita coisa.

Mas esse era mesmo o caso? Algumas considerações:

1. Um cerne do cânon do NT existia desde muito cedo. Como notei em um post anterior dessa série (veja aqui), havia um centro do cânon do NT já bem estabelecido do início até o meio do segundo Século. Ele incluía os quatro evangelhos, as epístolas de Paulo (pelo menos 10, se não 13) e alguns outros livros. Embora a discussão acerca de livros menores tenha continuado por um tempo, os livros centrais não eram seriamente disputados. John Barton comenta: “Incrivelmente cedo, a grande maioria dos livros centrais do Novo Testamento atual já eram tratados como a principal fonte autoritária pelos cristãos. Há pouco sugerindo que havia controvérsias sérias acerca dos sinóticos, de João e da maioria das epístolas Paulinas” [1].

Se é assim, então a ideia de que os cristãos discordavam amplamente acerca dos livros canônicos simplesmente não é acurada. No máximo, isso ocorria apenas sobre poucos livros. 

2. O uso de livros apócrifos não é evidência de um desacordo generalizado. Uma das táticas mais populares na academia moderna é demonstrar que os pais da igreja primitiva usavam livros apócrifos e então, com base nisso, declarar que não havia acordo acerca dos livros canônicos. Por exemplo, Geoffrey Hahneman corretamente observa que “autores cristãos do segundo século se referiam a muitos outros evangelhos além dos quatro canônicos” [2]. Entretanto, Hahneman, então, retira uma conclusão inesperada desse fato: “Isso seria improvável se o cânon com os quatro evangelhos não tivesse sido estabelecido ainda” [3]. Mas como isso se dá? Hahneman nunca explica como o uso de meros livros não-canônicos é evidência de que um evangelho com quatro livros não estava estabelecido. Por que os dois são mutuamente excludentes? Aparentemente, Hahneman está operando sobre  a concepção de que a adoção de certos livros como canônicos (digamos, os quatro evangelhos) de alguma forma significaria que você não poderia nunca mais usar material que fosse além desses livros. Mas é incerto de onde vem essa concepção e Hahneman nunca oferece um argumento para tanto.

Quando examinamos os pais da igreja mais detidamente, fica claro que alguns deles estavam tentando usar evangelhos apócrifos mas, ao mesmo tempo, que eles eram bastante claros sobre apenas os quatro evangelhos serem recebidos como canônicos. Clemente de Alexandria é um perfeito exemplo dessa prática. Ele se sentia confortável ao usar evangelhos apócrifos, mas é sempre muito claro de que eles não estão em par com os quatro canônicos.

3. Instâncias de desacordo acerca de livros canônicos não são necessariamente evidências de que esse desacordo era generalizado. Um segundo tipo de argumento usado por alguns estudiosos é apelar para instâncias de dissenso canônico ou desacordo e usar essas instâncias como evidência de que não há ampla unidade acerca do cânon. De fato, alguém pode ter a impressão de que seria necessária uma quantidade de acordo extremamente alta (se não unânime) sobre um livro antes dos estudiosos considerarem seu status canônico como decidido. Por exemplo, Hahneman rejeita a existência do cânon de quatro evangelhos apelando para o teólogo ortodoxo do Século III Gaios de Roma que, supostamente, rejeitou o evangelho de João como sendo um trabalho de Ceríntio. Mas a existência de um evangelho em quatro partes requer zero desacordo? A existência de algumas objeções ao evangelho de João se sobrepõe à evidência de que ele era largamente recebido nos outros lugares? Com esse tipo de padrão, não poderíamos dizer que temos um cânon nem mesmo hoje em dia. Sempre haverá algum desacordo.

Um outro exemplo onde os desacordos são superestimados está nos comentários de Orígenes sobre 2 e 3 João, onde ele reconhece que “nem todos dizem que esses são genuínos” [4]. Embora Hahneman use esse comentário para apontar que um acordo universal sobre essas epístolas ainda não havia sido alcançado, ele negligencia totalmente as implicações dos comentários de Orígenes na outra direção, nominalmente, que aparentemente a maioria dos cristão consideravam sim essas cartas como genuínas – incluindo o próprio Orígenes. A frase “nem todos dizem” indica que Orígenes simplesmente está notando que há expectativas de uma tendência estabelecida mais amplamente. Ademais, é enganoso usar essa passagem como evidência de que as cartas de João não eram vistas como canônicas. Isso é mais do que essa linguagem pode suportar. No máximo, ela revela que, em algumas partes da igreja, alguns desacordos acerca desses livros continuaram a ocorrer (o que, dificilmente, é surpreendente).

Em suma, há evidência impressionante para a propagação espalhada de acordo acerca do cerne dos livros canônicos desde bem cedo. A maioria dos desacordos lidava apenas com alguns poucos livros – 2 Pedro, 2-3 João, Judas e Apocalipse. Mas mesmo esses desacordos sobre um livro se dão pelo fato de que o seu status canônico ainda não está decidido. Do contrário, algumas vezes os desacordos não são muito acerca do que deve ser incluído no cânon, mas sobre os livros que já estão no cânon. Como David Trobisch observa: “As pontuações críticas dos pais da igreja podem ser interpretadas como uma reação crítica histórica a uma publicação existente” [5].


[1] Barton, Spirit and the Letter, 18.

[2] Hahneman, The Muratorian Fragment, 94.

[3] Hahneman, The Muratorian Fragment, 94.

[4] Eusebius, Hist. eccl. 6.25.10.

[5] Trobisch, The First Edition of the New Testament, 35 (ênfase minha).