A graça barata é inimiga mortal de nossa Igreja. A nossa luta trava-se hoje em torno da graça preciosa.
A graça barata
Graça barata é graça como refugo, perdão malbaratado, consolo malbaratado, sacramento malbaratado; é graça como inesgotável tesouro da Igreja, distribuído diariamente com mãos levianas, sem pensar e sem limites; a graça sem preço, sem custo. A essência da graça seria justamente que a conta foi liquidada antecipadamente e para todos os tempos. Estando a conta paga, pode-se obter tudo gratuitamente. Por ser infinitamente grande o preço pago, são também infinitamente grandes as possibilidades de uso e dissipação. Que seria a graça se não fosse barata? (…)
Graça barata significa justificação do pecado, e não do pecador. Como a graça faz tudo sozinha, tudo também pode permanecer como antes. “Afinal, a minha força nada faz”. O mundo continua sendo mundo, e nós continuamos sendo pecadores “mesmo na vida mais piedosa”. Viva, pois, o crente como vive o mundo, coloque-se, em tudo, em pé de igualdade com o mundo, e não se atreva – sob pena de ser acusado de heresia entusiasta! – a ter, sob a graça, uma vida diferente da que tinha sob o pecado” Que se guarde encolerizar-se contra a graça, de envergonhar essa graça grande e barata, e de instituir um novo culto do literalismo tentando ter uma vida de obediência de acordo com os mandamentos de Jesus Cristo!
O mundo é justificado pela graça, e, por isso – por amor da seriedade dessa graça, para que não haja resistência a essa graça insubstituível! – que o cristão viva como o resto do mundo! E certo que ele gostaria de realizar algo de extraordinário, e constitui, sem dúvida, um grande sacrifício não poder fazê-lo, mas ter que viver mundanamente. Contudo, ele precisa fazer esse sacrifício, praticar a autonegação, renunciar a uma vida que se distinga da do mundo. Tem que deixar a graça ser realmente graça, para não destruir ao mundo a fé nessa graça barata. Todavia, que o crente, em seu mundanismo, nessa renúncia necessária que tem de fazer por amor do mundo – não, por amor da graça! – continue consolado e seguro (securus) na posse dessa graça, que tudo opera sozinha! Por isso, que o crente não seja discípulo, antes se console com a graça! Isto é graça barata como justificação do pecado, mas não justificação do pecador penitente, que abandona o pecado e se arrepende; não é o perdão que separa do pecado. A graça barata é a graça que nós dispensamos a nós próprios.
A graça barata é a pregação do perdão sem arrependimento, é o batismo sem a disciplina comunitária, é a Ceia do Senhor sem confissão dos pecados, é a absolvição sem confissão pessoal. A graça barata é a graça sem discipulado, a graça sem a cruz, a graça sem Jesus Cristo vivo, encarnado.
A graça preciosa
A graça preciosa é o tesouro oculto no campo, por amor do qual o ser humano sai e vende com alegria tudo quanto tem; a pérola preciosa, para cuja aquisição o comerciante se desfaz de todos os seus bens; o senhorio régio de Cristo, por amor do qual o ser humano arranca o olho que o faz tropeçar; o chamado de Jesus Cristo, pelo qual o discípulo larga suas redes e o segue.
A graça preciosa é o Evangelho que se deve procurar sempre de novo, o dom pelo qual se tem que orar, a porta à qual se tem que bater.
Essa graça é preciosa porque chama ao discipulado, e é graça por chamar ao discipulado de Jesus Cristo; é preciosa por custar a vida ao ser humano, e é graça por, assim, lhe dar a vida; é preciosa por condenar o pecado, e é graça por justificar o pecador. Essa graça é sobretudo preciosa por ter sido preciosa para Deus, por ter custado a Deus a vida de seu Filho – “vocês foram comprados por preço” – e porque não pode ser barato para nós aquilo que custou caro para Deus. A graça é preciosa sobretudo porque Deus não achou que seu Filho fosse preço demasiado caro para pagar pela nossa vida, antes o deu por nós. A graça preciosa é a encarnação de Deus.
A graça preciosa é a graça como santuário de Deus, que tem que ser preservado do mundo, não lançado aos cães; e por isso é graça como palavra viva, a Palavra de Deus que ele próprio pronuncia de acordo com seu beneplácito. Chega até nós como gracioso chamado ao discipulado de Jesus; vem como palavra de perdão ao espírito angustiado e ao coração esmagado. A graça é preciosa por obrigar o indivíduo a sujeitar-se ao jugo do discipulado de Jesus Cristo. As palavras de Jesus: “O meu jugo é suave e o meu fardo é leve” são expressão da graça.
Por duas vezes Pedro ouviu o chamado: “Segue-me!” Foi esta a primeira e a última palavra de Jesus a seu discípulo (Mc 1.17; Jo 21.22). Toda sua vida se situa entre esses dois chamados. Da primeira vez, Pedro, no Lago de Genesaré, ao ouvir o chamado de Jesus, largara as redes e abandonara a profissão, seguindo a Jesus em obediência cega. Da última vez, é o Ressurreto que o encontra em seu antigo ofício, novamente no Lago de Genesaré; e mais uma vez o chamado é: “Segue-me!” No espaço entre esses dois chamados, havia toda uma vida de discipulado de Cristo. No meio dela encontra-se a confissão de que Jesus é o Cristo de Deus. Por três vezes a mesma mensagem foi anunciada a Pedro, no início, no fim e em Cesaréia de Filipe, ou seja, a mensagem de que Cristo é seu Senhor e Deus. A graça de Cristo que chama: “Segue-me!” é a mesma que se revela a Pedro em sua confissão do Filho de Deus.
Houve, pois, uma intervenção tripla da graça no caminho de Pedro, a mesma graça proclamada em três ocasiões diferentes; ela era, assim, de fato a graça do próprio Cristo e não a graça que Pedro atribuía a si mesmo. Foi essa mesma graça de Cristo que venceu esse discípulo, levando-o a largar tudo por amor do discipulado; foi ela que o impeliu a uma confissão blasfema aos ouvidos do mundo; foi ela que chamou o infiel Pedro à comunhão derradeira, a do martírio, pelo que lhe foram perdoados todos os pecados. A graça e o discipulado permanecem indissoluvelmente ligados na vida de Pedro. Ele havia recebido graça preciosa.(…)
Felizes aqueles que se encontram já no fim do caminho que pretendemos percorrer e que, com espanto, compreendem o que de fato parece incompreensível: que a graça é preciosa justamente por ser graça pura, por ser a graça de Deus em Jesus Cristo! Felizes aqueles que, no singelo discipulado de Jesus, se encontram possuídos por essa graça, podendo, humildes em espírito, louvar a graça de Cristo que tudo opera! Felizes aqueles que, no conhecimento desta graça, podem viver no mundo sem para ele se perderem, e para os quais, no discipulado de Cristo, a pátria celestial é uma certeza tal que estão verdadeiramente livres para a vida neste mundo! Felizes aqueles para os quais o discipulado de Jesus Cristo nada mais é senão a vida baseada na graça, e para os quais a graça nada mais é senão o discipulado! Felizes aqueles que, neste sentido, se tornaram cristãos para os quais a mensagem da graça foi misericórdia!
Trecho do livro Discipulado – compre aqui