A visão que se encontra no sétimo capítulo de Daniel é central para o livro, e entendê-la é crucial para entender o significado de um número de passagens obscuras do Novo Testamento. Daniel recebeu essa visão no primeiro ano de Belsazar (v.1), então isso ocorreu um tempo depois dos eventos no capítulo 4, mas antes dos eventos do capítulo 5. Na visão, Daniel vê os ventos do céu agitando o mar (v. 2). Do mar, ele testemunhou 4 grandes animais surgindo, cada um diferente do outro (v. 3). O primeiro animal era como um leão com asas de águia (v. 4). Suas asas foram removidas e foi posto em dois pés como homem. O segundo animal era como um urso (v.5). Ele foi erguido sobre um dos seus lados e tinha três costelas em sua boca. O terceiro animal é como um leopardo (v. 6), mas ele tem 4 asas e 4 cabeças. O quarto animal é quase indescritível (v. 7). É terrível e forte. Ele devorava com os seus dentes de ferro e pisava o que sobrava com os seus pés. Ele também tinha 10 chifres. Ao observar os chifres, ele vê um pequeno chifre surgindo entre os 10 (v. 8). O pequeno chifre tinha os olhos de um homem e uma boca que falava com arrogância.
No restante da visão, Daniel testemunha uma cena de julgamento divino no trono de Deus. Enquanto ele observa, o Ancião de Dias toma o seu lugar no trono (v.9). Enquanto dezenas de milhares serviam a Deus, os livros são abertos e o tribunal se senta no julgamento (v. 10). Enquanto o pequeno chifre estava falando, o quarto animal é morto e o seu corpo entregue para ser queimado (v. 11). O domínio dos animais restantes é retirado, mas as suas vidas são prolongadas por um tempo (v. 12). Daniel, então, vê “um como o Filho do Homem” vindo com as nuvens do céu até o Ancião de Dias (v. 13). Aquele como o Filho do Homem foi levado até o Ancião de Dias e a ele é dado “domínio, e glória, e o reino, para que os povos, nações e homens de todas as línguas o servissem” (v. 14a). Seu é “domínio eterno, que não passará, e o seu reino jamais será destruído” (v. 14b). No restante do capítulo, um ser angélico interpreta a visão de Daniel dando atenção particular ao quarto animal (vv. 15-28).
Os paralelos entre a visão do capítulo 7 e o sonho do capítulo 2 são óbvios. Em ambos os casos, uma imagem simbólica é usada para revelar uma sucessão de quatro reinos da Terra, que são julgados e seguidos por um reino eterno estabelecido por Deus. Existe muito debate acerca da identidade dos quatro reinos. A visão tradicional é representada por João Calvino, que identifica os quatro animais como Babilônia, Medo-Pérsia, Grécia, e Império Romano, respectivamentei. Calvino identifica o “chifre pequeno” do versículo 8 como a linha de César, embora admitindo que essa interpretação do chifre pequeno não é universalmente aceitaii. De acordo com Calvino, então, o estabelecimento do reino de Deus ocorreu na primeira vinda de Cristoiii. O conservador do século XX E. J. Young, estudioso do Antigo Testamento, concorda com Calvino na identidade dos quatro reinos, mas ele identifica o “chifre pequeno” como um anticristo, cujo poder deve ser manifesto no final da era presenteiv. Uma variação da visão Romana é a interpretação dispensacionalista. De acordo com essa visão, o quarto animal, ou o Império Romano, deve ser revivido de alguma forma no final da era presente. De acordo com a interpretação dispensacionalista, a vinda daquele como o Filho do Homem para receber o reino eterno vai ocorrer na segunda vinda de Cristov.
Nem todos os estudiosos conservadores adotaram a visão Romana dos quatro reinos. Tanto Robert Gurney como John Walton, por exemplo, propuseram que os quatro animais deviam ser identificados como Babilônia, Média, Pérsia e Impérios Gregosvi. Gurney argumenta que os mais conservadores rejeitaram a visão grega porque a vinda de Cristo ocorreu durante o período do Império Romano (2:44). Ele observa, no entanto, que o Império Romano não acabou por mais de séculos depois da primeira vinda de Cristo. Em apoio de sua posição, ele nota que Cristo nasceu em torno de 6 A.C., “logo depois da eliminação total do império Grego em 27 A.C., quando o Egito foi feita uma província Romana” vii. Outros que defendem o ponto de vista grego apontam as similaridades entre o “chifre pequeno” no quarto animal (7:8) e o “chifre pequeno” no bode em Daniel 8:9viii. O “chifre pequeno” do capítulo 8 é universalmente identificado como o governante grego selêucida Antíoco IV Epífanes. Se os dois “chifres pequenos” são idênticos, ele adiciona peso ao argumento de que os quatro animais devem ser associados com o império gregoix.
As duas interpretações dos quatro animais, então, são (1) a visão Romana tradicional, que identifica os quatro animais como Babilônia, Medo-Pérsia, Grécia, e Toma, e (2) a visão Grega, que identifica os quatro animais como Babilônia, Média, Pérsia e Gréciax. Cada uma tem seus pontos fortes e fracos. Um ponto forte da visão Grega é a similaridade entre os “chifres pequenos” dos capítulos 7 e 8. Um ponto forte da visão Romana é o uso no capítulo 8 de um simples animal simbólico pra representar o Império Medo-Persa (8:3-4, 20). Um ponto fraco da visão Grega é a falta de explicação por Daniel ao nada dizer aqui sobre o Império que estava no poder na primeira vinda de Cristo. Um ponto fraco da visão Romana é a continuação do Império Romano por séculos após a primeira vinda de Cristoxi. Embora não sem dificuldades, a visão Romana é a mais fortexii.
A vinda de um como o Filho do Homem ao Ancião de Dias (vv; 13-14) é a seção climática dessa visão, e é de crucial importância. Muita confusão tem sido causada pela suposição que esse texto é uma profecia da Segunda Vinda de Cristo. O contexto se opõe a essa interpretação. Quando essa seção da visão começa, Daniel vê o Ancião de Dias tomar o seu assento no seu trono (v. 9). O Ancião de Dias é Deus, e a cena ocorre em sua sala do trono celestial. Enquanto o próprio Daniel experimenta essa visão da Terra em sua cama (7:1), a própria visão é uma visão da sala do trono celestialxiii. Depois de Deus estar assentado no seu trono, o tribunal senta em julgamento e os livros são abertos (v. 10). O quarto animal é, então, julgado e destruído, enquanto ao restante dos animais é dado um adiamento temporário (vv. 11-12). Isso prepara a cena para a visão de Daniel daquele como o Filho do Homem.
No versículo 13, Daniel testemunha “um como o Filho do Homem” vindo com as nuvens do céu ao Ancião de Dias, para chegar até elexiv. A frase aramaica bar ‘enash, literalmente traduzida “filho do homem”, é um Semitismo que simplesmente significa “ser humano”xv. O que Daniel vê, então, é um “como um ser humano,” o oposto de qualquer animal “como um urso” ou “como um leopardo.” Esse como o Filho do Homem dirige-se ao Ancião de Dias e chega até ele (v. 13). A “vinda” que é vista nessa visão, então, não é uma vinda de Deus ou uma vinda daquele como o Filho do Homem do céu à Terra. É a vinda daquele como o Filho do Homem a Deus, sentado no céu, em seu tronoxvi. A direção da “vinda” não é do céu, mas em direção ao céu. É por essa razão que essa visão não é uma profecia da Segunda Vinda de Cristo do céu para a Terra. Pelo contrário, como Calvino há muito tempo havia explicado, é melhor entendida como uma profecia da ascensão de Cristo para a destra de Deus depois da sua ressurreição (Atos 1:9-11; 2:33; 5:31)xvii.
Aquele como o Filho d Homem é apresentado ante ao Ancião de Dias com o propósito da sua investiduraxviii. Quando ele se apresenta ante ao Ancião de Dias, ele recebe um domínio e um reino em que todos devem servi-lo (v.14a). Parece ser uma alusão ao evento descrito em Gênesis 1.26, quando ao primeiro homem foi dado domínio sobre todas as criaturas (Salmo 8.4-8)xix. O estabelecimento do reino vai restaurar os propósitos da criação de Deus. Esse reino dado àquele como o Filho do Homem deve ser eterno (v.14b). Como na visão de Daniel 2, vemos aqui uma descrição de quatro reinos humanos seguidos pelo estabelecimento do reino eterno de Deus. Ambos os textos parecem indicar que o reino de Deus vai ser estabelecido em algum momento perto do fim do quarto reino humano.
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Notas:
i Calvin, Commentaries (Grand Rapids: Baker, 2003), 13:11–25.
ii Calvin, Commentaries, 13:26–31.
iii Calvin, Commentaries, 13:31–34.
iv Edward J. Young, Daniel (Grand Rapids: Eerdmans, 1949), 150, 163; cf. Joyce G. Baldwin, Daniel(Downers Grove, IL: InterVarsity, 1978), 161–62, que também defende a visão romana.
v Kenneth L. Barker, “Evidence from Daniel,” in The Coming Millennial Kingdom, eds. Donald K. Campbell and Jeffrey L. Townsend (Grand Rapids: Kregel, 1997), 139–43.
vi Robert Gurney, “The Four Kingdoms of Daniel 2 and 7,” Themelios, 2 (1977), 39–45; John H. Walton, “The Four Kingdoms of Daniel,” JETS, 29, no. 1 (1986), 25–36. Ambos defendem essa posição na base da pressuposição crítica que Daniel é uma composição do segundo século. Ambos argumentam que a profecia é uma profecia genuína do sexto século.
vii Gurney, “The Four Kingdoms,” 39.
viii Ernest Lucas, Daniel (Downers Grove, IL: InterVarsity, 2002), 188; cf. also John E. Goldingay, Daniel(Dallas: Word Books, 1989), 174–75.
ix Outra interpretação conservadora dos quatro reinos é sugerida por Tremper Longman, que propõe que a visão nunca foi destinada a providenciar identificação histórica definitiva dos três últimos animais. Ao invés da visão simplesmente indicar que um número não específico de reinos do mal vão continuar até o fim dos tempos [cf. Longman, Daniel (Grand Rapids: Zondervan, 1999), 184, 190]. Essa visão seria menos difícil de aceitar se o primeiro animal não fosse especificamente identificado com o império concreto histórico da Babilônia. Embora que a verdade é que o imaginário que descreve o final dos três animais é quase sempre ambíguo e os números no livro podem ser certamente simbólicos, mas algum tipo de referência histórica definitiva para o final dos três animais dessa visão parece ser exigido pela referência histórica definitiva do primeiro animal de forma autêntica. Também parece ser exigido pelas referências históricas concretas dos animais nas visões relatadas no capítulo 8, que são universalmente conhecidos serem Medo-Pérsia e Grécia (8:20-21).
x A visão despensacionalista, que postula um futuro Império Romano renovado não parece ter alguma justificação no texto. Não há algo no próprio texto que dá uma identificação de duas incarnações dos mesmos quatro animais/reino separados por um intervalo de milhares de anos. Um quarto animal revivido é posto pelos dispensacionalistas somente porque é assumido que a vinda daquele como o Filho do Homem ao Ancião de Dias (7:13) é uma referência profética à segunda vinda de Jesus. [cf. John F. Walvoord, The Millennial Kingdom(Grand Rapids: Zondervan, 1959), 267]. Claro que, se é uma referência à segunda vinda de Cristo, e se ocorresse nos dias do quarto animal, e se a segunda vinda ainda não ocorreu, então o quarto animal deve existir de alguma forma no tempo da futura segunda vinda. Não é necessário, no entanto, assumir que a vinda daquele que é como o Filho do Homem ao Ancião de Dias em 7:13 é uma referência profética a segunda vinda de Cristo. Se ao invés fosse uma referência profética a algo que ocorreu em conexão com o primeiro advento de Cristo, então não há necessidade de postular um Império Romano revivido.
xi A vinda de Cristo “nos dias destes reis” é compatível com qualquer visão. Se o quarto animal for o Império Grego, seu primeiro advento ocorreu depois do seu colapso, que é similar com a cronologia implícita em Daniel 7:12-14. Se o quarto animal é o Império Romano, seu primeiro advento ocorreu pouco tempo antes do seu colapso, que é similar com a cronologia implicada de Daniel em Daniel 2:44. As cronologias implícitas, no entanto, não devem ser consideradas tão literalmente, no entanto, por causa da natureza da linguagem simbólica.
xii Essa visão parece ser confirmada pelo entendimento de João acerca de Daniel como foi expresso em Apocalipse.
xiii Contra Goldingay (Daniel, 167), que afirma que “O tribunal está assentado na Terra…” para um explicação de um problema com a visão de Goldingay, veja Lucas, Daniel, 181.
xiv Veja Michael Shepherd, “Daniel 7:13 e o Novo Testamento Filho do Homem,” WTJ, 68 (2006), 99 para o argumento que aquele como o Filho do Homem é único.
xv Goldingay, Daniel, 167. O termo no hebraico equivalente é ben ‘adam. Ezequiel escreveu mais de 90 vezes “filho do homem” no livro de Ezequiel. Antes pode se achar em Salmos 8:4 e 80:17.
xvi Cf. R. T. France, Jesus and the Old Testament (Grand Rapids: Baker, 1982), 169. Beasley-Murray [Jesus and the Kingdom of God (Grand Rapids: Eerdmans, 1986), 28–9] argumenta que a visão é uma teofania na qual Deus é visto montando as nuvens a terra, onde os animais/reinos serão julgados. Goldingay (Daniel, 167) concorda. O problema com essa interpretação é que a visão não é uma de Deus vindo com as nuvens a terra, mas uma do Filho do Homem vindo com as nuvens a Deus. O Ancião de Dias (Deus) está assentado no seu santo trono. É aquele como Filho do Homem que vem com as nuvens a ele.
xvii Calvin, Commentaries, 13:44. Aqueles que objetivam a ideia de que Cristo foi dado ao reino em sua primeira vinda porque o Império Romano continuou a existir deve manter em mente os paralelos tipológicos possíveis entre a unção de Davi como rei e a unção de Jesus como rei. O estabelecimento do reino de Davi ocorreu em estágios. Ele foi ungido o verdadeiro rei por Samuel mesque Saul não tinha sido ainda removido do trono físico imediatamente. (1 Sam. 16:1, 12-13). Ele foi depois ungido rei sobre Judá (2 Sam. 2:4). Foi só depois de uma longa guerra (2 Sam. 3:1) que ele foi ungido rei sobre todo Israel (2 Sam. 5:3-4).
xviii Lucas, Daniel, 185; O. Palmer Robertson, The Christ of the Prophets (Phillipsburg, NJ: P&R, 2004), 334.
xix Baldwin, Daniel, 143.