Eu gosto de séries de TV. E quem me conhece sabe que gosto não apenas de séries, mas de citar as séries, ganhar presentes relacionados a séries, imitar personagens e pior – usá-las de exemplo em sermões, palestras e textos (quando relevante, claro). Dito isso, há uma série inglesa que gosto muito. Chama-se Doctor Who e ela tem uma tradição de popularizar algumas frases marcantes. Uma dessas frases é Don’t Blink (“Não pisque”). A expressão ficou famosa devido a um episódio que apresenta certos personagens com uma habilidade estranha, mas interessante. (É meio viajante, mas por favor, continue lendo). Eles se tornam pedra se alguém estiver os observando. Ficam ali, parados, endurecidos, perdidos no meio do cenário… até que você pisca e eles correm em sua direção.
A frase ficou famosa entre os fãs da série porque o episódio é extremamente tenso. “Don’t Blink! Não pisque! Pisque e você está morto. Não olhe para os lados. Não dê as costas. E não pisque! Boa sorte.” São essas as instruções que o Doutor, o protagonista, dá a seus aliados. E ele sabe que é quase impossível escapar. (Até porque se eu falar para você não piscar, você provavelmente vai sentir vontade de piscar).
Em parte, isso me lembra da maneira como as tentações acontecem em nossa vida. Claro, isso é só uma ilustração. Você não precisa achar todos os pontos idênticos. Mas, o fato é que estamos o tempo todo sendo observados por seres eternos, especialistas em tentar, em mostrar aquilo que queremos, em nos fazer lutar contra a vontade de Deus. Logo, pisque e você está morto. Não olhe para o lado. Não dê as costas. Curioso é que os personagens que se tornam pedra são chamados de Anjos Lamentadores.
Sim, estou usando isso para falar de anjos caídos. Estou falando sobre o nosso inimigo e eu sei que responsabilidade terrível é falar sobre o assunto. Eu mesmo já caí sob o engano dele inúmeras vezes. Eu pisquei, olhei para o lado, dei as costas, perdi o foco, observei coisas mais interessantes, ou mesmo fingi que ele não estava lá. Imagino que você tenha passado por isso também. Algo importante nessa luta diária é conhecer nosso inimigo. Por isso, acho que o texto de Mateus 4.1-11 é apropriado para tratarmos desse assunto. Não será uma lista extensiva das maneiras como o inimigo nos tenta, mas ele nos apresenta algumas de suas estratégias básicas.
Nessa série, veremos como a tentação de Jesus nos auxilia a enxergar as tentações em nossas vidas e não nos esquecermos de que estamos continuamente em guerra.
Mateus 4.1-11
Então foi conduzido Jesus pelo Espírito ao deserto, para ser tentado pelo diabo. E, tendo jejuado quarenta dias e quarenta noites, depois teve fome; e, chegando-se a ele o tentador, disse: Se tu és o Filho de Deus, manda que estas pedras se tornem em pães. Ele, porém, respondendo, disse: Está escrito: Nem só de pão viverá o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus.
Então o diabo o transportou à cidade santa, e colocou-o sobre o pináculo do templo, e disse-lhe: Se tu és o Filho de Deus, lança-te de aqui abaixo; porque está escrito: Que aos seus anjos dará ordens a teu respeito, E tomar-te-ão nas mãos, Para que nunca tropeces em alguma pedra. Disse-lhe Jesus: Também está escrito: Não tentarás o Senhor teu Deus.
Novamente o transportou o diabo a um monte muito alto; e mostrou-lhe todos os reinos do mundo, e a glória deles. E disse-lhe: Tudo isto te darei se, prostrado, me adorares. Então disse-lhe Jesus: Vai-te, Satanás, porque está escrito: Ao Senhor teu Deus adorarás, e só a ele servirás. Então o diabo o deixou; e, eis que chegaram os anjos, e o serviam.
O Contexto
O evangelho de Mateus tem como característica especial ter sido escrito para judeus. O autor inicia seu livro dizendo que Jesus era filho de Abraão e filho de Davi. Ou seja, ele era tanto herdeiro da promessa para Abraão quanto herdeiro do trono. Ele era o Messias esperado, e aquele que traria cumprimento à promessa de que todos os reinos da terra seriam abençoados. Isso é importantíssimo na leitura do livro e, claro, do relato da tentação.
No capítulo 3, presenciamos o início do ministério de Cristo com seu batismo e a afirmação de Deus de que ele era “meu Filho, em quem me comprazo” (3.17). A seguir, Jesus é levado a um deserto, onde jejua por 40 dias e 40 noites. Existem alusões ao passado de Israel aqui – como Israel, ele foi chamado a permanecer no deserto. Ele é o novo Israel, a semente de Abraão. E agora ele deve mostrar que é superior ao Antigo povo. O que Jesus faz não é apenas uma questão de santidade pessoal, mas um passo adiante em sua missão e em seu propósito aqui na terra. Ele está cumprindo o que Israel não alcançou.
Nessa situação de debilidade, o diabo surge para tentá-lo e usa três provocações. Temos muito a aprender sobre elas, porque a Bíblia ensina que Jesus foi tentado da mesma maneira que nós (Hb 4.15). Mas pelo fato dele ser tentado, temos a quem recorrer confiantemente.Vejamos então como ele foi provado.
Crise de identidade: “Se és o Filho de Deus…”
O título “Filho de Deus” não faz apenas referência ao fato de Jesus ser Deus Filho. Ele também remete a personagens bíblicos que ocuparam esse papel de “Filho de Deus”. Primeiro, a Adão, cujo único pai era Deus. Lucas enfatiza isso ao incluir “Deus” como descendente de Adão em sua genealogia (Lc 3.38). Segundo, remete a Israel, que é chamado de filho várias vezes durante o Antigo Testamento – “Quando Israel era menino, eu o amei; e do Egito chamei a meu filho” (Oséias 11.1). Terceiro, remete a Davi e aos reis de Israel, que eram chamados filhos de Deus (como o Salmo 2, ensina por exemplo). O leitor judeu sabia o que significava o Senhor Deus chamar alguém de “meu Filho”. E o diabo também.
Segundo Russell Moore, a tentação do diabo questionava a identidade de Jesus. Ele deveria mostrar quem ele era realizando um milagre e satisfazendo sua fome. Já Octavius Winslow enfatiza a falta de confiança na providência divina. Podemos dizer que os dois estão certos – em última análise, você é quem você é e está onde está pela providência de Deus.
Note que, em si, não há nada de errado com aquilo que o diabo pede. Jesus era o Filho de Deus, Jesus realizou milagres e Jesus até foi chamado de glutão. A questão não era realizar o milagre ou comer – mas fazer isso naquela situação e por motivações erradas. Usar sua autoridade, seu nome, sua posição para sair do propósito de Deus.
Enquanto o propósito do jejum era humilhar Jesus e torná-lo totalmente dependente da providência divina, o propósito do milagre proposto pelo diabo era exaltar-se e depender somente da própria força. Basicamente dizia: “Se és Filho de Deus, demonstra sua filiação, negando que depende do seu Pai”.
Boa parte dos nossos pecados envolvem uma crise de identidade e falta de confiança na providência divina. Não aceitamos ser quem Deus diz quem somos ou não queremos o lugar em que ele nos colocou. Pecamos porque (1) desejamos ser quem não somos (como um garoto que fantasia com a garota que não é sua esposa ou Israel querendo voltar para o Egito ou Adão desejando ser igual a Deus); (2) porque negamos quem somos (Pedro é o exemplo clássico ao negar ser discípulo de Cristo ou uma menina que mente sobre sua posição social ou um pai que não assume responsabilidade).
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O pecado acontece em nossas vidas quando negamos que somos imagem de Deus, feitos para refletir a glória dele, quando não desejamos ser filhos de Deus, adotados para sermos santos como ele é santo e quando abusamos da graça de Deus, sabendo que Cristo pagou o preço por nossos pecados.
Jesus lembrou Satanás que um filho não deveria ser dependente apenas de pão, mas do alimento espiritual que vem de Deus. Jesus era Filho, era Rei, mas estava debaixo de uma autoridade maior naquele momento. E ele não desejava nada além daquilo. Ele não seria como Adão que tentou ser Deus, Ele não seria como Israel que negou ser Israel e queria ser Egito, Ele não seria como Davi que não aceitou as esposas que já tinha e foi atrás de Bate-Seba.
E conosco? Em quem está nossa identidade? Quem é nosso provedor? Quem desejamos ser? Em que posição desejamos estar? Veja – esta não é uma palavra contra objetivos ou contra aspirações. É uma palavra sobre enganar a si mesmo a respeito de quem somos, de onde estamos, e em quem confiamos. É uma palavra contra ingratidão, contra a falta de confiança, contra a mentira. Não somos nós que realizamos milagres, não somos nós que nem mesmo colocamos comida em nossas mesas. É o nosso Pai. O quanto confiamos nele? Ou a Palavra que vem dele não é o suficiente? Quando pecamos, temos a insolência de ser como a serpente e dizer “É assim que Deus disse?” (Gênesis 3.1). Negamos o pão e a providência do Senhor.
O mais irônico é que se Jesus provasse ser filho de Deus nos termos de Satanás, ele provaria ser, na verdade, filho do diabo. Ele nada teria a ver com Deus. Que o Espírito Santo nos livre desse caminho.
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