Entre Roma e Nova Jerusalém

Josaías Jr.
Josaías Jr.

“Onde está na Bíblia que os evangélicos estão certos?”. A pergunta foi feita em uma dessas discussões sobre a sucessão papal, surpreendentemente por um evangélico. O tema em questão era a Igreja Católica Romana e a possibilidade de cristãos orarem sobre o Conclave.

Sobre esse tema específico não pretendo gastar muito tempo falando. Ore pelos bispos, pelo Vaticano, pelo Papa argentino e tudo mais. Mas ore por arrependimento, conversão e verdadeira fé. Não aja como se aquilo fosse meramente uma “tradição cristã” entre muitas, como se isso relativizasse os fatos e igualasse os erros de Roma a mero equívoco ou, pior, escolhas estéticas. Como disse P.T. Forsyth, “o catolicismo romano é o cristianismo do homem natural” e, como tal, é autônomo e rebelde em parte de suas raizes.¹

Mas eu me adianto.

Minha intenção é escrever uma série de textos sobre as diferenças entre protestantes e a Igreja Católica Romana. Aproveitando que o assunto logo morre, achei conveniente expor algumas das características que historicamente dividem Roma e Nova Jerusalém (alguns diriam Genebra). Como sou bastante desorganizado, duvido que conseguirei, mas aqui vão os primeiros pensamentos.

Quem, ou o que, são “evangélicos”?

Antes de pensarmos, talvez seja útil falar de identidade. É claro que, em um sentido, não podemos dizer que todos aqueles que se dizem evangélicos são salvos. Como nos lembra Carl Trueman, há muita gente debaixo desse nome para conseguirmos identificar bem o grupo como “os evangélicos”, “A Igreja Evangélica” ou “o evangelicalismo”.² Nesse ponto, concordo, a Bíblia não nos dá garantia de que todos os que se chamam de “evangélicos” são salvos ou estão corretos.

Por outro lado, neste texto, entenderemos “evangélicos” como aqueles que seguem de coração as doutrinas bíblicas da Escritura, identificam-se (ainda que inconsistentemente) com os cinco Solas da Reforma, foram regenerados e participam de uma igreja evangélica. Usarei o termo como sinônimo de protestante, embora eu creia que haja diferenças de ênfases e sentidos nos dois termos.

Nesse sentido, a Bíblia ensina sim que os evangélicos estão certos em suas convicções. Além disso, esse sentido não nega que existam salvos na Igreja Romana, mas, pelo fato de não participarem de uma igreja evangélica, estão errados. Alguém pode ser salvo com um má eclesiologia, no fim das contas. Essa não é a questão. O problema é quando todo o sistema aponta para uma falsa mensagem. E é sobre isso que gostaria de discutir. Não os casos individuais, mas os problemas gerais da igreja romana.

Voltando à pergunta do colega, chama a atenção o conhecimento (inconsciente?) de sua própria doutrina. Amigo, você já respondeu sua pergunta – ao menos em parte.

A pergunta que já foi respondida

O que não percebemos é que formular uma pergunta do tipo “Onde está na Bíblia…?” é (querendo ou não) admitir a Bíblia como autoridade suprema e posicionar-se. Você já criou uma distinção entre protestantes e católicos. Não digo que acontece em todos os casos, mas no contexto evangélico, geralmente é assim que funciona. A pergunta já partiu de um pressuposto: é preciso estar na Bíblia tal proposição para que tal proposição seja verdadeira. Esse é um raciocínio que reflete a sua posição quanto à autoridade do magistério e da tradição da Igreja – a saber, que elas são irrelevantes ou estão debaixo da Palavra. Sem perceber, o evangélico já revela sua “tradição” e descarta outra.

A doutrina católica da revelação envolve um “banco de três pernas”: a Escritura, o magistério e a tradição. A primeira você já conhece. A segunda envolve os ensinos dos intérpretes oficiais da Escritura. O magistério é “o encargo de interpretar autenticamente a Palavra de Deus, escrita ou transmitida, foi confiado exclusivamente ao Magistério vivo da Igreja, ao Papa e aos Bispos em comunhão com ele, cuja autoridade é exercida em nome de Jesus Cristo”. Esse ensino deve ser recebido com a mesma autoridade que a Escritura, é tão revelação quanto ela e precisa ser venerado da mesma forma que a Bíblia.

Isso quer dizer que certa proposição poderia não estar na Bíblia, mas um bispo romano poderia dizer: “ora, pela autoridade do magistério, digo que é assim”. Se todos fôssemos católicos, meu amigo diria “onde na Bíblia diz que os católicos estão certos?”. O Papa poderia responder: “eu digo”. E ele aceitaria. Mas como ele é evangélico, só pergunta com base na Escritura. Você já se acusou.

Pode-se dizer que a tradição é o conhecimento guardado, transmitido e desenvolvido pelas gerações. É a “transmissão da mensagem de Cristo”, feita “mediante a pregação, o testemunho, as instituições, o culto e os escritos inspirados”. Da mesma forma, ela deve ser recebida como autoritativa e também poderia ser parte da pergunta ou da resposta sobre “quem está certo?”.³

Uma Diferença Fundamental

Assim, a diferença entre o protestante/evangélico e o católico é que essas três pernas têm a mesma autoridade para o segundo, enquanto o primeiro pode até respeitar magistério e tradição (por exemplo, no uso de credos e comentários bíblicos), mas os reconhece como regra regulada. Isto é, padrões que podem ser seguidos, mas que estão debaixo de um padrão superior (ou de uma qualidade completamente diferente), a Escritura.

Em um sentido, temos também uma qualidade tripla em nosso entendimento da revelação. Mas os três aspectos envolvem a Escritura. São eles:

  • Sola Scriptura – o princípio de que a Palavra tem a primazia sobre as outras regras, tais como tradição, magistério e credos. Somente ela é autoridade final.
  • Tota Scriptura – a ideia de que toda a Bíblia é inspirada e proveitosa para o crente. Antigo e Novo Testamento são igualmente divinos e os dois se interpretam.
  • Claritas Scriptura – Conhecido também como “perspicuidade”, ou clareza. É a doutrina de que o crente pode compreender a Bíblia. Normalmente nos esquecemos desse ponto, mas é pressuposto em tudo que dizemos sobre a Palavra. A pergunta do meu amigo envolvia a pressuposição de que ele entendeu ou entenderia a Bíblia (e que ela falaria ou não sobre evangélicos estarem certos).4

Esse último ponto é uma grande vitória da Reforma, pois retirou a exclusividade de compreensão da Escritura do magistério e da tradição, e a entregou aos sacerdotes – todo o povo de Deus. Ele não quer dizer que todas as coisas são igualmente claras e que não precisamos de mestres. Significa que as partes mais importantes são compreensíveis e mais óbvias.

O curioso é que os evangélicos que tentam mostrar-se tão perdidos quanto católicos às vezes usam a posição para demonstrar tolerância  e humildade em relação aos outros grupos. Não digo que é sempre este o caso, mas é um caso comum. A ideia é a seguinte: se eles observarem como nós somos amorosos ou se nós mostrarmos que somos tão ruins quanto eles, eles se unirão a nós.

Eu concordo que em nós mesmos nada temos a mais que qualquer outro grupo. Porém, se nenhuma posição é vindicada pela Bíblia, se nenhum grupo está mais certo que outro, por que desejaríamos que eles se unissem a nós? Ou pensamos que nossa posição é melhor, ou pensamos que não há diferença nenhuma entre as duas. Se for o caso, não deveríamos apelar para a Bíblia como autoridade suprema, afinal, isso nos identificaria com certo grupo cuja identidade fundamenta-se no famoso Sola Scriptura.

Há uma diferença. E ela é fundamental no sentido mais puro do termo. Onde está na Bíblia que os evangélicos estão certos? Tecnicamente, em lugar nenhum. Mas a Bíblia diz que somente ela é certa e somente ela define o que é certo. E cabe a nós sermos definidos por ela.

 


¹ Coloquei “em parte” por respeito aos antigos credos e a grandes homens como Agostinho e Anselmo. Mas hoje as coisas são um pouco piores.
² Às vezes, pensam que não gosto do nome porque tenho vergonha do título “evangélico”. Não é verdade. O termo está tão desprovido de sentido que eventualmente é preciso pensar duas vezes em usá-lo.
³ As definições podem ser encontradas facilmente na Wikipedia. Sei que não é a melhor das fontes, mas foram retiradas de documentos oficiais da Igreja Romana.
4 Esses três pontos foram enfatizados em uma aula de epistemologia com o Dr. Davi Charles Gomes. Eles são associados especialmente a João Calvino.