Uma música baiana popular deixou muito evangélico desconfiado na década de 90. Naquele tempo, as igrejas batistas (ao menos aqui em Brasília) começavam a viver a paranoia que muitos escritores populares provocam nos evangélicos quando falam de batalha espiritual. Tudo o que era popular corria um grande risco de ser fruto de um “pacto com o diabo”: Família Dinossauros, Jaspion, Fido Dido (um personagem que ninguém com menos de 25 anos conhece), Cavaleiros do Zodíaco, O Rei Leão e, claro, O Canto da Cidade, de Daniela Mercury.
Por que essa música atraía a atenção dos guerreiros da luz de plantão? Primeiro, por que estava na moda (como o Fido Dido). Segundo, por que na música Daniela Mercury praticamente personificava o carnaval dizendo: “Não diga que não me quer / Não diga que não quer mais / Eu sou o silêncio da noite / O sol da manhã… Mil voltas o mundo tem / Mas tem um ponto final / Eu sou o primeiro que canta / Eu sou o carnaval…”.
Não vou falar sobre pactos com o inimigo (enfim, não existe base bíblica e prefiro não ir além do que foi revelado), mas a letra realmente tem um tom sinistro. E, vista sob esse ângulo (seja ele verdadeiro ou uma viagem), ela lembra algo sobre o Carnaval. Muito dessa “festa popular” realmente tem por trás o inimigo do Senhor, que veio para matar, roubar e destruir. Não falo apenas da luxúria, do mau uso do dinheiro público ou da violência dessa época. Mas da própria essência do que se comemora.
Antes de falar do Carnaval, quero mencionar um episódio fantástico de uma série fantástica chamada Community. Em um episódio de fim de ano, Abed, um dos personagens da série, entra em uma busca para descobrir o sentido do Natal. Parece piegas, mas o episódio é justamente uma paródia do tipo de filme que você associou quando falei em “descobrir o sentido do Natal”. No fim, Abed descobre que o sentido do Natal é procurar o sentido do Natal.
O episódio é engraçado e genial¹. Mas há uma mensagem colateral. E ela diz que o dia 25 de dezembro foi tão esvaziado do seu significado que cabe a nós dar um jeito nele, impondo nossa própria versão do que é essa festa. Porém, como bons pós-modernos que somos, nossa resposta não satisfará, e sim a busca por ela. Resumindo: você está correndo atrás do vento porque tudo é vaidade. Mas continue correndo, que faz mais sentido que ficar parado.
E isso tem muito a ver com o Carnaval.
Todo carnaval tem seu fim?
A origem da festa é remota. Alguns a associam a rituais dedicados ao deus Baco, chamados de Bacanal. Pelo nome, já podemos saber que o que se passava nesse festival dispensa explicação e não recomenda imaginação. Outros ligam o carnaval à Saturnália², uma festa dedicada ao deus Saturno, que envolvia diversão, jogos, licenciosidade e por aí vai. Historiadores dizem que havia certa subversão da ordem social, com escravos sendo tratados de maneira semelhantes aos seus senhores por alguns dias.
A Quaresma (período entre a quarta-feira de cinzas e a Páscoa) também pode estar ligada ao surgimento do Carnaval. Por ser um período de jejum e contrição, representando os 40 dias de Jesus no deserto, diz-se que muitos cristãos consumiam as bebidas, guloseimas e alimentos nos dias que o precediam. Até falam que o nome da festa vem de “carne”, não daquela carne que Paulo menciona em seus textos, mas da carne que era consumida ou jogada fora nesses dias.
O carnaval de hoje é esquisito porque ele não parece comemorar nada. Não estou dizendo que os motivos para comemoração dos seguidores de Baco, Saturno e do Romanismo eram dignos. Mas eles eram motivos. Se pararmos para pensar, o que celebra hoje o carnaval?
Veja – no dia 25 de dezembro, celebra-se o nascimento de Jesus (em alguns lugares apenas na teoria, mas a questão é que há um motivo). Em junho, celebram-se os santos. Podemos não gostar e alguns podem apenas celebrar o fato de comerem comida de festa junina, mas sabemos que são os santos que são lembrados. Já em setembro, é a vez da independência do nosso país. Novamente – pode ter sido uma independência meio fajuta, mas é o que se comemora. Dia do trabalho, celebramos o trabalho. No dia das mães, agradecemos pelas nossas mães. No dia da secretária, pelas nossas secretárias. Nos aniversários, pelas nossas vidas. E por aí vai.
“No carnaval, o povo faz a maior festa popular do mundo”, alguém pode dizer. “É só alegria. É o ponto alto do ano”, uma chicleteira pode opinar. “É a festa onde não há pobre nem rico”, diz o iludido. De qualquer forma, a questão não é respondida. Não há um alvo para que o carnaval aponta. Não há um motivo. Baco foi esquecido, o calendário litúrgico não é mencionado pela maioria dos foliões e quem é Saturno?
O carnaval é uma festa curiosa por isso – não há propósito, não há motivo de comemoração. Celebra-se simplesmente o fato de se estar celebrando. A “alegria” não tem causa nem objeto pra se alegrar. É uma festa que existe voltada para si mesma. É carnaval porque é tempo de carnaval e por isso comemoro o carnaval. Todo carnaval tem seu fim, mas o carnaval mesmo não tem qualquer fim.
Por que eu sou o carnaval
A Bíblia ensina que o homem deliberadamente suprime o conhecimento de Deus, na tentativa rebelde de tornar-se autônomo e enxergar o universo por seus próprios olhos. Tentando tornar-se sábio, ele esvazia a vida de seu significado e torna-se louco. Ao tirar Deus do centro de tudo, precisa preencher com o que mais se parece com ele – a criação. Ele acaba adorando outros homens, animais e coisas inanimadas. Mas, no fim, é a si mesmo que ele tenta satisfazer.
Podemos nos curvar a homens, animais, dinheiro, sexo ou fortuna, mas, quando caem as máscaras dos ídolos, é a nós mesmos que nos ajoelhamos. Achamos que certo “redentor” nos tirará da insatisfação. Às vezes, podemos até dar a ele o nome de “Deus” ou “Jesus” e continuarmos no centro do nosso mundo. É por isso que creio que não há nada mais parecido com o carnaval que a idolatria.
Como já disse, o carnaval é o único feriado que celebra o próprio feriado. Ou seja, nada é comemorado ou lembrado. É idólatra e vazio por natureza. Como Abed tentou fazer com o Natal, cabe a cada um procurar um sentido nessa festa da vaidade. E já que não conseguimos, o jeito é entrar num estado de euforia que dura alguns dias. Sacrificamos nossos bens peregrinando até Salvador ou na cidade do Cristo Redentor (que ironia), vestimos seus trajes sagrados e participamos da celebração do nada.
Um amigo meu brincou: “se o carnaval é vazio, então enche de novo o copo”. Nada mais verdadeiro.
Com isso, não quero levantar o ódio ou desprezo por conhecidos, amigos e parentes que veem essa festa como o auge do ano. Quero que nos lembremos deles e oremos por eles. Que, ao recebê-los na quarta-feira de cinzas nos lembremos de que, como Salomão, eles procuravam a alegria:
Disse eu no meu coração: Ora vem, eu te provarei com alegria; portanto goza o prazer; mas eis que também isso era vaidade. Ao riso disse: Está doido; e da alegria: De que serve esta?
Busquei no meu coração como estimular com vinho a minha carne (regendo porém o meu coração com sabedoria), e entregar-me à loucura, até ver o que seria melhor que os filhos dos homens fizessem debaixo do céu durante o número dos dias de sua vida. E tudo quanto desejaram os meus olhos não lhes neguei, nem privei o meu coração de alegria alguma; mas o meu coração se alegrou por todo o meu trabalho, e esta foi a minha porção de todo o meu trabalho.
E olhei eu para todas as obras que fizeram as minhas mãos, como também para o trabalho que eu, trabalhando, tinha feito, e eis que tudo era vaidade e aflição de espírito, e que proveito nenhum havia debaixo do sol. Eclesiastes 2.1-3,10-11
Que nos lembremos de que por trás da máscara dos ídolos, há um coração vazio como o carnaval, em busca de um sentido, do fim da injustiça, da alegria eterna e duradoura, de algo que está além do sol.
Que nos lembremos outro ser também se esconde por trás de Baco, Saturno, das imagens de santos, do Sexo, do Vício, e dos falsos salvadores/redentores – o pai da mentira, da autonomia e dos ídolos.
Nesse carnaval, dediquemos nossos corações a voltar-se para aquele que é o princípio e o fim de tudo o que há. Aquele que promete verdadeira alegria, que promete encher-nos verdadeiramente com seu Espírito, que nos dá um sentido para comemorar tanto o passado, quanto o futuro. E que essa mensagem esteja em nossas mentes ao encontrarmos os foliões que retornam das festas.
Se antes, o povo comia e bebia porque os dias tristes estavam chegando, que hoje comamos e bebamos para a glória de Deus. A verdadeira festa vem. E o alvo de é o Pai.
Neste monte o Senhor dos Exércitos preparará um farto banquete para todos os povos, um banquete de vinho envelhecido, com carnes suculentas e o melhor vinho.
Neste monte ele destruirá o véu que envolve todos os povos, a cortina que cobre todas as nações; destruirá a morte para sempre. O Soberano Senhor enxugará as lágrimas de todo o rosto e retirará de toda a terra a zombaria do seu povo. Foi o Senhor quem disse!
Naquele dia dirão: “Esse é o nosso Deus; nós confiamos nele, e ele nos salvou. Esse é o Senhor, nós confiamos nele; exultemos e alegremo-nos, pois ele nos salvou”. Isaías 25.6-9 (NVI)
¹ Community está quase sendo cancelada. Você deveria assistir.
² Alguns também dizem que o Natal surge da Saturnália, mas isso é assunto pra outra época do ano.