Nossa cultura inunda-nos constantemente com novas informações, contudo, nosso cérebro consegue captar muito pouco delas. Antigamente, lembrar era tudo na vida. Conta uma lenda que no Quinto século AC, um terremoto destruiu o lugar em que o poeta Simonides banqueteava com centenas de convivas. Ele sobreviveu, tendo saído instantes antes do palácio, e consolou os familiares tomando pela mão a cada parente entutado e levando-o ao exato local onde seu morto, momentos antes, estivera conversando. Sua lembrança foi detalhada e confortadora.(1)
A história do mundo, das idéias, das pessoas, era transmitida oralmente, de pai a filho, de mãe a filha, de mestre a aluno. Apesar de termos indícios do uso da escrita desde antes da época de Hamurabi (contemporâneo de Abraão), grande parte do conhecimento era passado através de memórias compartilhadas. Uma geração falava à outra, e era bom que os ouvintes prestassem atenção, porque, por sua vez, teriam de passar adiante aos filhos e netos as lembranças do povo quando seus antepassados já não existissem.
Moisés foi instruído em toda a ciência do Egito (At 7.22), mas teve a memória da identidade de seu povo inculcada por sua mãe, paga pela filha do Faraó para cuidar dele. Ao escrever a Torá, já homem maduro, começa lembrando quem é Deus e o que ele fez, e repete constantemente a admoestação de lembrar a história passada, os grandes feitos do Senhor bem como a terrível escravidão de onde o povo foi retirado, dando os detalhes do tabernáculo e da lei, passando os mandamentos e as promessas para a próxima geração: “guarda-te, para que não esqueças o Senhor, que te tirou da terra do Egito, da casa da servidão”.
Toda essa memória inicia com uma declaração teológica que norteia a vida toda: “Ouve, Israel, o Senhor, nosso Deus, é o único Senhor. Amarás, pois, o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de toda a tua força”. Ela é afetiva (estarão no teu coração, v 6), diretiva (tu as inculcarás a teus filhos, v 7), constante e em todo lugar (delas falarás assentado em tua casa, e andando pelo caminho, e ao deitar-te, e ao levantar-te; visível em tudo que fazem, no modo como enxergam, na habitação entrando, saindo ou ficando. Também as atarás como sinal na tua mão, e te serão por frontal entre os olhos. E as escreverás nos umbrais de tua casa e nas tuas portas” (vv. 7-9).
A instrução bíblica desde o Antigo Testamento e perpassando o Novo trata de guardar a Palavra de Deus na mente e no coração. O jovem aprendia a Lei do Senhor memorizando – tinha de ser praticada em cada detalhe de sua vida. Quando chegava ao Bar Mitzvá, o rapaz não só sabia ler a Escritura (tarefa que exigia bastante do leitor, pois o texto se encontrava em pesado rolo de escrita corrente, sem pontuação, pausas e marcações vocálicas). Assim, junto à leitura criteriosa, tinha de haver uma memória prodigiosa para lembrar exatamente como ler o que se lia. Isso não se limitava aos homens. O Magnificat de Maria mostra que ela tinha na memória o cântico de Ana (1 Samuel 2.1-10) e a promessa a toda mulher em Israel que poderia abrigar no ventre seu próprio Salvador!
A memória entre o povo judeu nasceu com as primeiras histórias narradas em Gênesis, e continuou se desenvolvendo em toda a história do povo de Deus. Quando o povo se esquecia da Palavra de Deus e corria após outros deuses, os profetas tinham a tarefa de lembrar aquilo que eles haviam esquecido – e isso muitas vezes ficava marcado pelo sofrimento e disciplina do Senhor. Quando Deus restaurava a sorte de Sião, era por sua lei que isso ocorria (Sl 19.7). O relato da restauração do templo iniciada por Esdras está pontilhada de comentários tais como “assim está escrito na Lei de Moisés”. A Palavra, e a lembrança do que ela ensinava, era a tônica para toda a ação corporativa bem como individual diante de Deus.
De “Quero trazer à memória o que me pode dar esperança… Grande é a tua fidelidade” (Lm 3.21-23) até “Conheço as tuas obras… Tenho, porém, contra ti que abandonaste o teu primeiro amor. Lembra-te, pois, de onde caíste, arrepende-te e volta à prática das primeiras obras; e, se não, venho a ti e moverei do seu lugar o teu candeeiro, caso não te arrependas” (Ap 2.2-5) a Palavra estimula, adverte e promete quanto à lembranças. “Me lembro de ti nas minhas orações, noite e dia. Lembrado das tuas lágrimas, estou ansioso por ver-te, para que eu transborde de alegria pela recordação que guardo de tua fé sem fingimento, a mesma que, primeiramente, habitou em tua avó Lóide e em tua mãe Eunice, e estou certo de que também, em ti” (2Tm 1.3-5).
A tentação de Jesus começa com o diabo citando as Escrituras – e Jesus refutando a tentação também citando a Palavra, dentro do contexto e sob o Senhorio certo: ao Senhor adorarás e só a ele darás culto. Quando Jesus prometeu o Consolador, disse que “esse vos ensinará todas as coisas e vos fará lembrar de tudo o que vos tenho dito”. Minha chave bíblica(2) tem 107 entradas para “lembrar”, 7 para “lembrança”, 3 para “lembrado”, 22 para “memória”, 7 para “memorial”. Nem começo a mencionar outros “lembretes bíblicos” relacionados a estes.
A memória era forma de edificar o caráter da pessoa, desenvolvendo as virtudes cardeais da prudência e da ética. Somente pela memória é que o pensamento seria incorporado à mente e seus valores seriam absorvidos. O ensino de tudo era baseado em memória, e muitas vezes as pessoas decoravam fatos, nomes, conceitos, números sem relacioná-los ao quadro geral da realidade. Não havia concordâncias Bíblicas até a Idade Média, não havia acesso a enciclopédias e dicionário. Com o advento da imprensa, o livro ficou mais acessível, mas mesmo assim, as únicas pessoas que possuíam modesta biblioteca eram as pessoas mais abastadas e cultas. Os leitors valorizavam o pouco que tinham para ler, e guardavam no pensamento e no coração aquilo a que tinham acesso. Hoje um menino semi-alfabetizado é incentivado a “fazer pesquisa” copiando do Google – seu conhecimento fica ainda menor que o da memória de rotina que seu avô era obrigado a armazenar e papaguear para “passar no exame”. E quando se pensa no uso da memória para desenvolvimento da vida cristã, a história é ainda mais patética. Ouvimos falar de cristãos que, em época de perseguição e escassez de Bíblias, memorizavam livros inteiros para ajudar a si e seus irmãos. Meu marido conta que conheceu na Igreja Batista Russa um senhor que era “Gálatas”– memorizou essa carta paulina, enquanto outros decoraram outras epístolas, para a edificação de uma igreja que só possuía uma Bíblia. Hoje temos dez, vinte edições da Bíblia em nossas estantes – mas tem gente que não sabe onde fica o banquete da Sabedoria nem a história de Ló ou quem era Jeremias – e quer achar Ezequias 12.2 ou Filemon 4.4 em suas rígidas, polidas e desconhecidas bíblias “da mulher”, “do vencedor”, do “guerreiro”, “da menina” e outras versões esdrúxulas.
Lembro-me da moça em Goiânia que decorou “uma ilha é pedaço de terra cercada de água por todos os lados” e quando minha mãe disse que ia para a ilha de Manhattan, perguntou-lhe: “Fica pra lá de Corumbá?” Nem o que é ilha, nem distâncias e proximidades em cidades, países e continentes eram entendidas. Aliás, ainda hoje o senso de história e geografia aniquilado pela falta de memória escolar primária é gritante – mesmo entre gente que tem diploma de faculdade! Deixamos de decoreba, mas deixamos de aprender o mais básico da base.
Pouco antes de um grande servo de Deus morrer em idade avançada, ele, que havia sido médico, missionário, músico, administrador e homem de oração, comentou com meu marido: “Com o passar da idade, o meu esquecedor vai se aprimorando cada vez mais”. Lembrei de outro idoso que disse: “Quando meu pai chegou aos oitenta anos, lembrou que se não fizesse alguma coisa para melhorar a memória, ia ficar gagá. Então, começou a memorizar Fausto de Goethe”. E eu – estou deixando meu “esquecedor” dominar minha vida – ou exercitando minha memória para lembrar o passado, firmar o presente e enriquecer o futuro (meu e das gerações que me seguirão) para a glória de Deus?
Quisera aprender o mínimo necessário para conhecer o mundo em que vivemos, o ambiente em que estamos inseridos, e simultaneamente, desenvolver memória que traga esperança e nos leve a reconhecer o Deus da história e da eternidade. Isso não se aprende por frases feitas: é estudando o pensamento, o mundo psicológico, político e ideítico atual através de bons livros, lembrando o passado para que vislumbremos um futuro sadio. Acima de tudo, é estudando – guardando no coração, meditando nela dia e noite, tornando-a alimento e respiração sem o qual não sobrevivemos – a Palavra de Deus “para não pecar contra ti”… Esse estudo tem de começar com a criança para que se diga dela “desde a infância sabes…” em vez de dar à sua memória impressionável imagens nefastas e cantigas tolas daqueles que desprezam a sabedoria de Deus. É certo que “decorar sem entender” não vale nada. Mas só entendemos aquilo que aprendemos, e aprendemos para sempre aquilo que memorizamos. Acima de tudo, nessa questão de memória, lembro o hino: “Nunca meu Mestre cessarão meus lábios/ de bendizer-te, de cantar-te glória/ Pois eu conservo de teu bem imenso/ grata memória…”
Texto publicado originalmente no Coram Deo Comentário