João Calvino: chinês, estranho e mitológico

por Josaías Jr.

O propósito deste texto não é exaltar homens, mas registrar os grandes feitos que Deus realiza por meio de pecadores. Esta pequena biografia tem o propósito de apresentar o grande reformador de Genebra àqueles que pouco sabem sobre Calvino. Esperamos que ela seja útil à igreja.

Mesmo lembrado erroneamente apenas como o teólogo que criou a doutrina cristã da predestinação, a importância de João Calvino sobre a sociedade ocidental vai além de mera curiosidade histórica e teológica. Karl Barth, considerado um dos maiores teólogos do século XX (mesmo que o título seja discutível, sua notoriedade é inegável), escreve em carta para amigo uma manifestação quase poética de sua admiração por Calvino:

Calvino é uma catarata, uma floresta primitiva… algo vindo diretamente do Himalaia, absolutamente chinês, estranho, mitológico; perco completamente o meio, as ventosas, mesmo para assimilar esse fenômeno, sem falar para apresentá-lo satisfatoriamente. O que recebo é apenas um pequeno e tênue jorro e o que posso dar em retorno, então, é apenas uma porção ainda menor desse pequeno jorro. Eu poderia feliz e proveitosamente assentar-me e passar o resto de minha vida somente com Calvino.¹

Como mostra o a declaração apaixonada de Barth, limitar o reformador apenas à doutrina da predestinação seria uma injustiça. No entanto, a associação não é totalmente incorreta, uma vez que Calvino realmente sistematizou e defendeu essa doutrina de uma maneira que poucos haviam feito antes, e aqueles que o seguiram no assunto dependem bastante de seus escritos a ponto de serem chamados de calvinistas. Assim, ele não foi o único que creu ou aquele que criou a predestinação, mas provavelmente o maior expositor do assunto². Por isso, há mais a se dizer do reformador que apenas uma doutrina. O escritor John W. Robbins nos dá, corretamente, um resumo da importância e força do reformador, tanto entre opositores quanto entre defensores:

Will Durant, o historiador americano do século vinte, pensava que Calvino ‘obscureceu a alma humana com o mais absurdo e blasfemo conceito de Deus em toda a longa e honrosa história das tolices’. (…) O filósofo político francês do século dezoito, Montesquieu, pensava que as pessoas de Genebra ‘deveriam abençoar o dia do nascimento de Calvino’. O historiador do século dezenove, Leopold von Ranke, pensava que Calvino era ‘o fundador virtual da América’. (…) O sociólogo alemão Max Weber atribuiu o surgimento do capitalismo a Calvino em seu livro de 1905, intitulado ‘A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo’.³

Nasce um reformador

Nascido em 10 de julho de 1509, na cidade de Noyon, França, Jean Cauvin logo foi direcionado aos estudos pelo pai. Aos 12 anos, foi enviado para a capital da França, a fim de preparar-se para o curso de direito na Universidade de Paris. Depois de adquirir o diploma de bacharel em Artes no Collège de Montaigu, por onde também passou Erasmo de Roterdã, iniciou sua vida acadêmica aos 19 anos, cursando Teologia. No entanto, a pedido do pai, e devido ao início dos conflitos provenientes da Reforma, Jean foi enviado à Universidade de Orleans, a fim de estudar Direito.

Os relatos dessa época são poucos, mas acredita-se que, por volta de 1532, João Calvino aderiu ao movimento reformado, em algo que ele chama de “um ato súbito de conversão”, que “subjugou e trouxe minha mente a uma disposição suscetível, a qual era mais empedernida em tais matérias do que se poderia esperar de mim naquele período de minha vida” 4.Não se sabe ao certo os instrumentos utilizados pela graça de Deus para o levar a uma mudança de mente, mas alguns apontam uma conjunção de fatores, como uma Bíblia emprestada por seu primo Olivétan, as pregações do amigo Nicholas Cop, reitor da universidade de Paris, além de cursos e preleções que o reformador havia recebido nas escolas e faculdades, onde aprendeu a ler grego e hebraico, línguas originais das Escrituras.

Na época dessa experiência de conversão, seu pai já havia falecido e Calvino abandonou o curso de direito para retornar à teologia. Ainda assim, por ter cursado tudo o que era necessário, inclusive produzindo um comentário sobre Sêneca como tese de doutorado (e que se tornou seu primeiro livro), o reformador recebeu da Universidade de Orleans o titulo de doutor.

As Institutas

Em 1534, uma forte perseguição aos protestantes em Paris leva Calvino e muitos de seus amigos e conhecidos a fugirem da cidade, refugiando-se em Basileia. Seus primeiros dias na Suíça dão-lhe um dos momentos mais frutíferos e importantes da Reforma Protestante. É ali, após 14 meses de trabalho, que Calvino publica a primeira versão de suas Institutas da Religião Cristã, obra em quatro volumes, considerada a mais importante da teologia protestante.

As intenções do jovem de 27 anos em escrever esse tratado eram das mais ambiciosas: “preparar e instruir de tal modo os candidatos à sagrada teologia, para a leitura da divina Palavra, que não só lhe tenham fácil acesso, mas ainda possam nesta escalada avançar sem tropeços”5. Mesmo reconhecendo sua pretensão, Calvino não deixa de afirmar que seu trabalho é “mais de Deus que de mim próprio. Portanto, se algum louvor houver ela de suscitar, a Deus se deve ele render”6.

Talvez aqui encontremos uma diferença entre Calvino e seus precursores escolásticos: apesar de toda sua erudição, não era a especulação, a curiosidade ou o “conhecimento pelo conhecimento” que motivava o reformador, mas um desejo de ensinar e proteger os menos instruídos naquilo que ele comumente chama de “piedade”. “Em todas as suas páginas aparece não tanto (como em Aquino) a soma de toda teologia (summa theologiae), mas uma soma de toda piedade (summa pietatis)”7.

Um outro propósito da obra é talvez mais ousado. Após a introdução das Institutas, há uma carta em que os livros são dedicados ao Rei da França Francisco I, na tentativa de persuadir o monarca de que a igreja protestante não se posiciona como inimiga da Igreja Católica, mas como um retorno à igreja como proposta pelo Novo Testamento8. Naqueles quatro livros estaria, portanto, uma explanação das doutrinas básicas do Cristianismo – embora, na verdade, o leitor mais atento descobrirá que encontramos também a visão calvinista do governo e da sociedade, algo que possivelmente era direcionado ao Rei Francisco.

Nas Institutas, encontraremos também uma visão das artes e das ciências, da Criação como “teatro da glória de Deus” e do valor do ser humano que, apesar de pecador e caído, para Calvino, ainda retém parte de sua glória. Essa abrangência do pensamento do reformador garantiu que seus seguidores não enfatizassem tanto uma natureza dualista do universo, em que o homem deve escolher entre atividades seculares e sagradas, pois apenas as últimas são agradáveis a Deus. Não era muito forte no reformador a ideia quase gnóstica de que a natureza material era essencialmente ruim, enquanto apenas o espiritual é bom, algo presente entre católicos medievais, anabatistas e pietistas. Para Calvino, tanto um sapateiro quanto um missionário executavam um trabalho digno e que glorificaria a Deus.

Mudança de planos: Genebra

Igreja de São Pedro, onde Calvino pregava

Terminada a estrutura básica das Institutas (que ainda passariam por várias revisões pelos anos), Calvino agora se preparava para mudar-se para Estrasburgo, onde prosseguiria em seus estudos. No entanto, seus planos seriam mudados radicalmente pela necessidade de alterar sua viagem, passando um dia em Genebra para escapar de uma guerra. Lá, Calvino conhece Guilherme Farel, líder protestante que  o amaldiçoa caso não se una à Reforma em Genebra. “Farel me deteve em Genebra… movido por uma fulminante imprecação, a qual me fez sentir como se Deus pessoalmente, lá do céu, houvera estendido sua poderosa mão sobre mim e me aprisionado”9.

A partir daí, a história de Calvino estaria ligada à cidade suíça. O reformador permaneceu lá até sua morte, em 1564, deixando Genebra apenas por três anos, devido a um exílio. Em seu novo lar, o reformador assumiu o papel de pastor e mestre, auxiliando o conselho dirigente da cidade, mas também envolvendo-se em situações difíceis, como a rebelião dos chamados “libertinos”, ou vergonhosas, como sua participação na condenação à fogueira de Miguel Serveto, teólogo antitrinitariano. Ele envolveu-se em polêmicas, sendo associado ao uso excessivo da lei para diminuir a imoralidade na cidade, mas também foi querido por muitos na cidade, tornando-se um propagador da educação pública, da justiça social e do saneamento básico.

Morte e influência

Em Genebra, Calvino casou-se com Idelette de Bure, em uma relação que durou apenas nove anos, com a morte dela em 1549. Sobre a perda precoce de sua esposa, o reformador diz:

 É verdadeiramente minha essa fonte descomunal de pesar – fui destituído da melhor companheira de minha vida, de alguém que tinha sido de tal modo eleita para mim que, se isso tivesse sido ordenado, não apenas teria sido uma espontânea companhia na minha indigência, mas também na minha morte. Durante toda a minha vida ela foi uma auxiliadora fiel em meu ministério. Nunca tive por parte dela um mínimo estorvo. Ela nunca foi um problema para mim ao longo de toda a trajetória de sua doença.10

Após a morte de Idelette, o teólogo francês decide permanecer solteiro pelo resto da vida. Seus últimos anos foram mais tranquilos em seu relacionamento com Genebra e seus moradores, mas terríveis para sua saúde. No mesmo período em que concluiu a última versão das Institutas, o reformador estava cada vez mais debilitado por suas doenças. Por fim, seu corpo não mais resistiu e o reformador faleceu em 27 de maio de 1564, deixando um legado de 45 livros de comentários bíblicos, 2000 sermões e centenas de cartas escritas para conforto e aconselhamento de fieis e amigos.

Antes de morrer, não demonstrou tanto a pretensão juvenil que tinha na primeira publicação das Institutas, mas a sabedoria de um humilde ancião. Diz ele que “tudo que fiz é indigno, e sou uma criatura miserável. Contudo, posso dizer isso: eu tencionava o melhor… se houve uma coisa boa, vocês podem firmar-se por meio dela e usá-la como exemplo”11. A seu pedido, foi enterrado em um túmulo anônimo, a fim de não atrair atenção para si.

A força do reformador é reconhecida por seguidores e antagonistas e as consequências de sua passagem por Genebra permanecem até hoje. Recentemente, a cidade recebeu o título de cidade com melhor qualidade de vida do mundo, o que, em parte, vem das reformas educacionais propostas por Calvino12. Jacob Armínio, um dos maiores opositores do calvinismo, ensinava seus alunos a dependerem dos comentários de Calvino13 em auxílio ao estudo da Bíblia. Recentemente, a revista TIME elegeu o que chamou de “neocalvinismo” – a adaptação do pensamento do reformador para os dias de hoje – uma das dez ideias que está mudando o mundo14.

Pode-se questionar essa afirmação, mas não é difícil notar que o pensamento de João Calvino foi muito além do âmbito religioso, indo além da sociedade de Genebra e moldando as estruturas de países como a Inglaterra, a Holanda e os Estados Unidos. Tudo isso porque Deus foi gracioso na vida do reformador. Somos gratos pela vida de Calvino por sua paixão pelo Evangelho e por ensinar que a glória deve ser somente dada a Deus.

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1  BARTH, Karl. apud. GEORGE, Timothy. A Teologia dos reformadores. São Paulo: Vida Nova, 2006, p.161.

2 Calvino depende especialmente dos escritos de Agostinho em suas Institutas. Lutero também defendeu a predestinação em seu debate contra Erasmo.

3 ROBBINS, John W. Quem foi João Calvino? Disponível em <http://www.monergismo.com/textos/jcalvino/quem-foi-calvino_robbins.pdf > . Acesso em: 30.out.2009.

4 CALVINO, João. O Livro de Salmos. São Paulo, Paracletos, 1999. livro 1, p. 38.

5 CALVINO, João. As Institutas da Religião Cristã, São Paulo: Ed. Cultura Cristã, 1985. Livro 1, p. 35.

6 Ibid., p.40

7 THOMAS, Derek. Blog 1: “To the Reader”. Disponível em < http://www.reformation21.org/calvin/2009/01/blog-1-to-the-reader.php >. Acesso em 16. nov. 2010. Tradução do autor.

8 CALVINO, João. op. cit., livro 1, p.33-35.

9 CALVINO, João. O Livro de Salmos. Livro 1, p. 40.

10 CALVINO, João. apud. MATOS, Alderi Souza de. Um Vaso de Barro: A Dimensão Humana de João Calvino. Fides Reformata, São Paulo, São Paulo, vol. 14, nº 2, julho.2009. Disponível em < http://www.mackenzie.br/fileadmin/Mantenedora/CPAJ/Fides_Reformata/Um_Vaso_De_Barro_-_A_Dimensao_Humana_De_Joao_Calvino_Alderi_.pdf >. Acesso em: 01. nov. 2010.

11 PARSONS, Burk (org.). João Calvino – Amor à Devoção, Doutrina e Glória de Deus. Editora Fiel, São José dos Campos, São Paulo, 2010, p.40

12 SILVESTRE, Armando. Calvino: o potencial revolucionário de um pensamento. Editora Vida, São Paulo, 2009, p.144.

13 apud. CALVINO, João. Romanos. São Paulo, Paracletos, 2001, p. 15.

14 BIEMA, David van. 10 Ideas Changing the World Right Now. Disponível em < http://www.time.com/time/specials/packages/article/0,28804,1884779_1884782_1884760,00.html >. Acesso em 10.out.2010.