Os Pirata é uma coluna (relativamente) semanal do Blog do Reforma21 onde discutimos de forma curta e direta alguns temas relevantes (ou nem tão relevantes assim) da atualidade, cultura e vida cristã.
Capitão América: Guerra Civil é o último lançamento de sucesso do universo cinematográfico dos estúdios Marvel. Seguindo a história do filme anterior do Capitão (Soldado Invernal) e de Vingadores 2, e baseada em uma das séries de maior sucesso dos últimos anos nos quadrinhos, o filme retrata a divisão entre os heróis a respeito de uma proposta de regulamentação da atividade dos super-heróis, que não mais agiriam de forma independente, como tem feito até agora. O filme já é sucesso de bilheteria e as redes sociais foram tomadas pela discussão “de que lado você está?”. Reunimos nossos especialistas para responderem: #TimeCapitãoAmérica ou #TimeHomemDeFerro?
Emilio Garofalo
Nessa discussão sobre o time favorito, há alguns fatores a considerar com cuidado. Vale lembrar, para começar, que o coração tem razões que a própria razão desconhece, e o filme tem a capacidade de te fazer torcer por um lado por causa de simpatias emocionais, ao mesmo tempo em que racionalmente você concluiria que mais justa seria a outra posição. Somos seres complicados e cheios de nuance – note como, antes mesmo do filme sair, toda sorte de argumento foi usado para defender um time ou outro. Falou-se em intervencionismo x livre mercado (mas o filme não é sobre economia), discutiu-se qual herói é mais gato (irrelevante), especulou-se que a velha rivalidade entre Capitão e Homem de Ferro seria o real combustível da desavença, e até mesmo a participação do Capitão América no Trenzinho Carreta Furacão foi usada em seu favor. Por causa desse último ponto, quase mudei de time.
Penso que parte da confusão na escolha do time é a velha mistura de pensar na situação teórica e ser influenciado por como ela ocorreria na prática. Imagino que seja bem mais fácil e palatável a ideia de uma equipe superpoderosa que vaga o mundo fazendo o que bem entende pelo fato de que seu líder, nesse caso específico, ser o valoroso e incorruptível Capitão América. Se o argumento fosse apresentado sem sabermos quem seria o líder dos Vingadores, provavelmente seríamos mais cautelosos em nos juntarmos a esse time. Será que se a escolha fosse entre “time Homem de Ferro” e “time super-herói poderoso e instável” haveriam tantos correndo para o lado da autonomia? Mas, como se trata de alguém de plena confiança do expectador, fica fácil constatar que Os Vingadores liderados por alguém como ele serão sempre uma boa coisa para o mundo, mesmo que vez por outra acabem pisando na proverbial bola.
De forma similar, nos termos do filme, deixar a equipe debaixo do controle de figuras obviamente mal-intencionadas como o salafrário General Ross não parece uma boa ideia para (quase) ninguém. Mas, se o responsável pela regulamentação da equipe fosse um personagem mais carismático e reconhecidamente sábio… Pense por outro lado: você gostaria de ter em sua cidade uma força policial que não fosse sujeita ao estado? Policiais independentes andando armados por aí com poder de prisão e uso da força sem ter de prestar contas a ninguém? Agindo, não de acordo com regras pré-estabelecidas, mas de acordo com o que pensam ser melhor para cada situação sem um padrão externo? E não estou falando de policiais corruptos, mas de gente a priori bem intencionada. Precisamos de mecanismos de controle; precisamos, pra lembrar outra história de heróis, que alguém vigie os vigilantes. Amo políticas de privatizações, mas se tem algo que não quero ver privatizado são as Forças Armadas.
Ao pensarmos sobre sistemas de governo eclesiástico, penso que algo similar se passa. Podemos até achar que a ideia de um governo episcopal seja boa, quando pensamos em alguma figura amada e conhecidamente bem intencionada governando sozinho a igreja. Mais liberdade para agir, com menos burocracia. Mas, se pensarmos nessa situação sem colocarmos o que temos de melhor, deixando apenas o trono vago para ser assumido por quem for, então a ideia de um sistema de freios e contrapesos – o ideal bíblico de pluralidade de líderes – começa a nos soar mais seguro e sábio. Quantas igrejas e quantas carreiras ministeriais já não foram arruinadas por conta do excessivo poder dado ao líder? Na vida real, gente que começou de um jeito que lembrava o Capitão América facilmente começa a se mostrar um Caveira Vermelha quando questionado ou contrariado. Nós reformados acreditamos na depravação total. Isso não significa que somos tão perversos como poderíamos ser, mas que não tem ninguém e nenhuma área do ser humano que tenha escapado das manchas da queda, do pecado. Não é, no final das contas, uma questão de liberdade de agir, mas de ser impedido de agir de uma forma que eu mesmo gostaria depois que alguém houvesse me impedido.
Filipe Schulz
À sombra do Fla-Flu ideológico que tomou conta do Brasil nos últimos meses, a tentação de sair do cinema após assistir Guerra Civil com essa divisão clara na cabeça é grande: de um lado, Capitão América, paladino da liberdade individual e defensor de tudo que há de bom; do outro, Tony Stark, o dono de uma suspeita armadura toda vermelha, advogado do Estado regulador e controlador das ações dos indivíduos. Libertário x Estatista. Direita x Esquerda. #SomosTodosCapitão então, não? Calma lá.
Poucas coisas na vida são fáceis assim, e creio que o confronto político-ideológico é apenas um gancho para lidar com questões mais profundas. Penso que o que está em jogo é, curiosamente, o que podemos aprender com o famoso lema do Homem-Aranha, muito apropriadamente inserido no universo de filmes agora: com grandes poderes vem grandes responsabilidades. Mais do que um código de honra para super-heróis, essa é uma ideia central para a vida de qualquer cristão.
Um pouco de história da igreja aparentemente fora de contexto: Martinho Lutero cria que a melhor forma de ouvir a voz de Deus era pela pregação expositiva da Palavra, mais do que pela leitura particular e individual dela. Seu argumento era que somos naturalmente, por conta da queda, parciais em nosso julgamento e, por isso, nossos pressupostos tortos ofuscam a aplicação que fazemos das Escrituras quando as lemos. Precisamos de uma fonte autoritativa externa que desvie e/ou rompa nossa casca de autojustificação.
Agora volte para o Século XXI e pense em como a fé do Capitão América na inocência de seu grande amigo Bucky e na possibilidade de restaurá-lo – algo que, em si mesmo, não é ruim – obscureceu seu julgamento. Em um dos diálogos mais interessantes do filme, Bucky afirma não ser digno de tudo que Steve fazia por ele. Steve responde prontamente que ele não tinha culpa de seus atos, que sua mente era controlada por pessoas mal intencionadas. Bucky não se deixa enganar e parece ver as coisas com mais clareza que o próprio Steve: “sim, mas mesmo assim, eu fiz o que eu fiz”. Não estou dizendo que o outro lado também não tinha seus motivos nem que todos são puros (como o desejo cego de vingança do supreendentemente legal Pantera Negra). Mas pense em como seria fácil culparmos nossa natureza caída pelos nossos pecados, assim como Steve parece tentar fazer para justificar as ações de seu amigo.
A questão é: nós precisamos de supervisão e de responsabilização. Cristo nos salvou e nos adotou em sua família, a igreja, seu corpo. É nesse contexto que podemos contar com pessoas maduras na fé (presbíteros, pastores ou irmãos mais experientes) que nos conhecem e podem apontar os tropeços que nossa autojustificação nos impede de enxergar – afinal, nenhum de nós tem a moral tão ilibada quando Steve Rogers. A própria igreja, coletivamente, é regida não pelo pastor ou pelo conselho, que também podem falhar, mas por Jesus Cristo, cuja perfeita vontade nos é revelada em seu “tratado” inspirado e autoritativo. Todos nós, em última instância, respondemos a uma autoridade superior, o Deus Criador e Soberano do universo, o único a quem pertence toda vingança.
Josaías Ribeiro Jr.
“Aquele, pois, que sabe fazer o bem e não o faz, comete pecado” (Tiago 4.17)
Deveriam os heróis e vigilantes ser monitorados pelo governo, pela ONU ou algum tipo de organização que limitasse o seu poder – e a quem eles devessem responder? Esta parece ser o grande conflito por trás de Capitão América: Guerra Civil, e dizer que eles não deveriam ser responsabilizados parece ser a atitude correta. Tenho simpatia pela proposta e, por muitos anos, defendi que a visão de Tony Stark tem, sim, seus pontos atraentes: imagine você viver num mundo em que homens e mulheres mascarados (incrivelmente mais poderosos, hábeis, inteligentes ou bonitos que você) surgem à noite e espancam o que eles chamam de bandidos. Imagine que às vezes eles até destroem prédios e cidades em suas batalhas – que você acompanha apenas pelo noticiário. Como não ser favorável a um certo controle e supervisão? Quem garante que eles estão batendo em bandido? E eles deveriam bater nos bandidos?
Mas o ponto não é esse. O problema com a visão de Tony Stark é que, quando os tais Acordos de Sokóvia são propostos, ele não percebe que já há esse controle e supervisão. Observe: os Vingadores são uma agência voluntária, pública e relativamente transparente (tanto quanto uma delegacia de polícia), mantendo um relacionamento com o governo dos EUA (pelo menos). Sim, eles tomam suas próprias decisões, mas suas ações passam pelo crivo das várias entidades que estão ao redor deles. Isso não quer dizer que os atos dos Vingadores precisam ser aprovados, mas que eles são observados pelos diversas entidades ao redor deles. Se não fosse o caso, por que a ONU teria tanta informação sobre eles? Eles conhecem até as identidades de cada um dos heróis. Assim, o grande problema dos Acordos de Sokóvia não é a responsabilização: os Vingadores já estavam respondendo por seus atos. Sim, poderia haver uma forma melhor de lidar com isso, mas não é isso que o acordo propõe. Os acordos são, na realidade, uma forma limitar o poder de decisão deles. Pense no caso de uma igreja, por exemplo – ela pratica atos e deve responder caso fuja de seus limites. Há supervisão, mas não há interferência no que aquele grupo pode ou não fazer. (Ou não deveria, pois o aconselhamento de homossexuais, por exemplo, já sofre restrições).
O maior problema, contudo, não é que países da ONU ou o governo decidam que missões os Vingadores deverão cumprir. Claro, já há uma dificuldade nisso: alguém poderia ser obrigado a fazer algo contra a sua própria consciência. Mas, a dificuldade maior é quando o herói se sente obrigado a envolver-se em certa missão, e os políticos envolvidos na tomada de decisão o impedem. Imagine que o Capitão América e seu time percebam que certo vilão quer explodir uma nação da América Latina. Eles desejam partir para salvar os inocentes daquele país, mas não convém aos poderosos deste mundo que eles salvem aquela nação (talvez – o caso do Brasil? – é mais fácil começar tudo de novo). Como fica esse dilema? Uma coisa é você ter alguém dizendo que missões tomar (e isso já envolve dificuldades), outra é ter alguém te impedindo de fazer o que é certo.
O versículo de Tiago que abre nosso texto fala sobre aqueles que sabem o que é certo, mas não o fazem. Assinar os Acordos de Sokóvia colocaria pessoas que buscam fazer o bem numa situação em que eles são impedidos de fazê-lo. E não adianta culpar o governo: foram eles que decidiram se meter nessa situação. Eles deixaram de ser heróis e se tornaram políticos. Pior: colocaram o padrão do bem e do mal nas mãos dos políticos e de outros. Eles estariam submetidos mais a jogos de poder e interesse que à busca da justiça e da verdade. (E é aqui justamente que os nossos amigos defensores do PT confundem: pensam que seus políticos são heróis). Defender o direito de fazer o que é certo é a luta daqueles que são contrários aos Acordos. E mesmo membros do time Homem de Ferro concordam e expressam bem o que está em jogo aqui. Em uma reveladora cena, Tony pergunta ao jovem Peter Parker por que ele sai por aí vestido de super-herói. A resposta do jovem expressa aquilo pelo qual o Capitão América parece lutar: “Quando você faz as coisas que eu posso, mas não faz, e, então, acontece algo ruim? Isso acontece por causa de você”. Devemos prestar contas ao governo, mas importa mais obedecer aquela que é a verdadeira justiça.