Muitas vezes, quando as pessoas falam de forma romântica e/ou ingênua sobre retornar à igreja primitiva de Atos, elas enfatizam a simplicidade das reuniões (de fato, perdida em muitos lugares), a comunhão dos irmãos de Jerusalém (embora alguns confundam com comunismo ou falta de disciplina eclesiástica), os milagres apostólicos (embora confundam-se com os apóstolos) e os avanços missionários dos nossos pais. Entendidos corretamente, esses e outros pontos certamente servem de exemplo para todos nós, mas tendemos a nos esquecer das duras provações que os pregadores enfrentavam naquele conturbado período.
A partir de Atos 7, lemos histórias emocionantes sobre perseguições e ataques contra a jovem igreja cristã. Nesse período, personagens vão e vêm, e ganham a atenção de Lucas. No fim de Atos 8 e no início de Atos 9, dois personagens bastante distintos são destacados. Um deles aparece e desaparece tão rapidamente quanto entrou, e seu nome nos é ocultado. Outro surge em cena comandando uma dura perseguição e tem seu nome gravado para sempre na história do cristianismo. O primeiro é o eunuco etíope que é evangelizado e batizado pelo diácono Filipe. O segundo é o maior pregador, missionário e teólogo entre os pecadores – Saulo de Tarso, vulgo Paulo.
Domingo passado, escutamos um sermão sobre Filipe e o eunuco na nossa igreja e, no próximo Dia do Senhor, ouviremos sobre a conversão de Saulo. Conversando com o presbítero que pregará em Saulo e aquele que pregou sobre o eunuco, passei um tempo pensando sobre as diferenças e o que liga esses dois homens.
Diferentes
O eunuco era um homem de origem etíope e, embora haja diferenças geográficas entre a Etiópia daquela época e o que chamamos de Etiópia hoje, o importante aqui é que ele era um gentio. Não apenas qualquer gentio, um gentio de uma terra distante, funcionário de um reino pagão. Ora, ele era tão judeu quanto um centurião romano. Normalmente, isso significaria que ele não poderia entrar no templo do Senhor, mas apenas ficar no pátio dos gentios.
Mas o eunuco tinha um outro problema. Provavelmente por causa de sua posição, ele era um homem emasculado. Nem mesmo no pátio ele entraria. A lei de Deus era clara quanto a isso (Dt 23.1). Ele estava duplamente excluído da assembleia dos santos. Ainda assim, ciente ou não dessa situação, ele foi até Jerusalém. É possível que tenha sido visto com maus olhos. Porém, isso não o impediu de adquirir um rolo do livro do profeta Isaías, o qual ele lia, mas não compreendia. (At 8.30-31)
Saulo era um homem completamente diferente. Conhecido entre os judeus como notável estudioso, talvez pudesse recitar e explicar todo o livro de Isaías para você. Diferente do eunuco, este homem poderia ir e vir quando o assunto era religião. Ele era um fariseu de fariseus, hebreu de hebreus, da tribo de Benjamim. Era acostumado ao templo desde criancinha, pois fora circuncidado ao oitavo dia. Enquanto o eunuco levava as marcas de sua exclusão, Saulo carregava o sinal da participação. Quem sabe aquele fariseu não tivesse ele mesmo cuidado de afastar alguns indesejáveis do templo? Ora, ele já tinha expulsado a seita dos nazarenos da cidade de Davi… não seria tão complicado zelar pela casa de Deus.
Iguais
Ainda assim, esses dois personagens muito têm em comum. Tanto Saulo quanto o eunuco precisavam de novos olhos. Eles precisavam compreender a palavra diante deles. Anos depois, Paulo ensinaria que os judeus liam a sua Bíblia com um véu nos olhos. Eles haviam se tornado tão gentios quanto… os gentios. Enquanto o eunuco precisava da ajuda de Filipe para entender o que lê, Saulo também precisou enxergar o Senhor ressuscitado para perceber que todo o Antigo Testamento aponta para Jesus de Nazaré.
Da mesma forma como o eunuco é seguido por Filipe em sua carrugagem, Saulo, o perseguidor, é perseguido por Cristo em seu caminho para Damasco. O conhecimento que ele tinha da Lei foi útil, é claro, mas era necessário que a eleição de Deus prevalecesse em sua vida, como foi no caso do desconhecido etíope. Sem Cristo, os dois estavam fora da assembleia dos santos. (Aliás, é curioso pensar que o eunuco tenha visto e lido muito menos até crer, enquanto Saulo recalcitrou sabe-se quanto tempo contra os aguilhões).
Talvez não seja sem razão que Lucas registre essas duas conversões lado a lado. Talvez Paulo lembrasse de algo parecido quando escreveu: “E, vindo, ele evangelizou a paz, a vós que estáveis longe, e aos que estavam perto” (Ef 2.17). Isso é apenas especulação. O fato é que o Apóstolo sabia que tanto os frequentadores do templo quanto os proscritos agora podiam se aproximar do Deus santo por meio de Cristo. Agora, eles tinham algo em comum, algo que antes era impossível. O selo da aliança lhes foi dado (At 8.38 e 9.18), eles estavam unidos a Cristo, e as barreiras do templo já não se aplicavam. “Porque por ele ambos temos acesso ao Pai em um mesmo Espírito” (Ef 2.18).
Na verdade, em Cristo eles mesmos eram o templo do Senhor.
Uma aplicação adicional
Lucas registra a empolgação do eunuco para ser batizado e como ele segue seu caminho jubiloso, mesmo depois do sumiço de Filipe. Você consegue imaginar o que significava para aquele homem receber o sinal e selo da aliança? Não sei ao certo como (e se) os judeus lidavam com a circuncisão de um eunuco, mas certamente sua condição era motivo de constrangimento e, quem sabe, um impedimento. Agora, porém, ele podia receber o sinal de que era parte do povo de Deus. Não é sem motivo que ele insiste no batismo (At 8.36). No nosso tempo, poucos são aqueles que dão alguma atenção a esse sacramento. O que te impede de ser batizado? Que aprendamos com nosso irmão etíope.