Por que acredito na Grande Heresia

Carl Trueman
Carl Trueman

Nas igrejas evangélicas de hoje, há um grande número de heresias que algumas pessoas acreditam, mesmo correndo perigo social e cultural. Se você não concorda com a ordenação feminina, você provavelmente acabará sendo, de certa forma, marginalizado. Cada vez mais aqueles que resistem ao crescimento da legitimidade do casamento homossexual são vistos como algum maluco de extrema direita. E se você, de fato, sugerir que algumas pessoas deveriam se afastar da igreja, você será taxado de fariseu ou de orgulhoso e pedante.

Acima de tudo isso, entretanto, há a Grande Heresia. A crença de que algumas ações têm consequências permanentes, e que o perdão do evangelho não necessariamente “limpa sua ficha” em todos os sentidos. A ortodoxia do perdão total e absoluto que apaga o passado tem assolado a mentalidade americana de tal forma que aqueles que a questionam correm o perigo de serem vistos como tão hereges quanto Miguel Serveto. Afinal de contas, isso é parte da história que a América gosta de contar sobre si mesma: a terra da segunda chance e, cada vez mais, a terra da terceira, da quarta, da quinta chance. Os artefatos da cultura popular reafirmam esse mito, essa ortodoxia, repetidamente: das tramas das novelas, onde os personagens retornam ilesos de todo tipo de ação pessoal deturpada, à fascinação com as reabilitações das celebridades, passando pelo desfile de políticos adúlteros, corruptos e trapaceiros, que são pegos em algum escândalo na Segunda Feira, renunciam na Terça, e na Quinta já fazem uma volta triunfal, a tempo do fim de semana, sem que nenhum dano real tenha sido feito.

Nos últimos anos, essa nova ortodoxia se tornou um tanto quanto proeminente na igreja. Tenho notado isso ao observar algumas respostas aos comentários que fiz no Reformation 21 sobre o novo reality show de Ted Haggard. Meu argumento era que era tipicamente americano enxergar a notoriedade da desgraça pública e a tragédia pessoal como uma boa oportunidade para a televisão. Aqueles que leram isso me acusaram de estar castigando um homem que estava caído (onde ‘caído’ é uma curiosa forma de enxergar um lucrativo contrato de televisão), enquanto outros pensaram que eu estava negando a possibilidade de reabilitação. O Senhor não restaurou Pedro? Ele não perdoou Paulo e fez dele um herói da fé? E a proeminência de Charles Colson anos após Watergate? E até o pobre do John Piper recebeu uma menção: será que ele era um pai e um marido tão ruim que eu não acreditava que ele deveria voltar ao ministério?

Há respostas simples para cada uma dessas objeções. Há uma clara diferença, no caso de Pedro e de Paulo, entre os pecados cometidos antes da conversão e os cometidos depois. Os crimes de Charles Colson anteriores a sua conversão não o desqualificam para uma futura liderança na igreja; mas era (crucialmente) necessário que ele fosse para a cadeia e, como dizem, pagar sua dívida com a sociedade. Quanto ao Piper, Paulo é bem claro nos critérios que estabelece para liderança, ao requerer dos líderes certos padrões de comportamento, mas não uma perfeição sem pecados, pois assim ninguém estaria apto para os ofícios. Podemos resumir o pensamento de Paulo nesse ponto dizendo que um homem deve ser um pai e marido decente e de boa reputação entre aqueles de fora da igreja (como seus vizinhos e colegas de trabalho). Se o John Piper passou um pouco mais de tempo com sua congregação do que com sua esposa ou se, após um longo dia de trabalho, eu respondo meus filhos com menos amor do que deveria, nós pecamos; mas Paulo não requer que deixemos nossas posições de liderança imediatamente por causa disso.

Com o homem cristão que traiu a aliança do casamento, entretanto, há uma diferença. É aí que eu vejo a posição de um pastor ou marido abusivo ou adúltero (em oposição àqueles que, como a maioria dos homens, simplesmente lutam contra os pecados de ira e luxúria) como sendo fundamentalmente diferente. Talvez eu fale desrespeitosamente com a minha esposa uma vez, e isso é inaceitável; mas se eu o faço repetidamente como meio de diminuí-la, ou a agrido fisicamente, então um limite fundamental foi ultrapassado. Mais ainda, no caso do sexo ilícito, alguém que uniu seu corpo com outra pessoa que não seja sua esposa cometeu um pecado hediondo; e isso tem consequências permanentes, tanto no casamento como na igreja. O pecado não deixa a pessoa além do alcance do perdão de Deus, mas desqualifica para voltar a se encaixar nos padrões que Paulo estabelece para o exercício de liderança na igreja. Eu posso ser perdoado; mas sempre serei o homem que bateu na esposa ou a traiu. Meu relacionamento com a minha esposa é mudado para sempre; minha reputação está afetada permanentemente.

Era isso que estava essencialmente por trás das minhas críticas ao repentino reaparecimento de Ted Haggard como pastor – e não como o Pastor Ninguém, trabalhando silenciosamente na Lugarnenhumlândia, mas como o Pastor Celebridade da Paróquia do Canal a Cabo. Um ponto simples e de pouca controvérsia, eu imaginava; apesar disso, aparentemente ofensivo e não bíblico, no contexto de uma cultura em que a Grande Heresia é afirmar que perdão não significa simplesmente um número ilimitado de segundas chances em qualquer coisa, como se o passado simplesmente não existisse.

Ainda assim, gostaria de sugerir que a Grande Heresia tem mais significância do que simplesmente eliminar da liderança alguns homens após algumas ações pós-conversão. Podemos até odiar ter que reconhecermos isso, mas o perdão cristão nunca deve ser confundido com a possibilidade de segundas chances. O perdão com Deus é absoluto, e não importa o quão hediondo seja o crime, a graça de Deus nunca é retida para aqueles que o buscam por misericórdia. Entretanto, ações aqui na terra sempre tem consequências. E não ajudamos ninguém ao fingir o contrário. O evangelho não fala sobre como você pode bater na sua esposa até desfigurá-la na Terça e fazer amor com ela na Quarta como se nada tivesse acontecido. Esse ensinamento é de um tipo que é brutalmente propagado em seriados e filmes. Nesses, violência casual e sexo ilícito quase nunca parecem ter impacto prolongado e significativo em ninguém, como se fossem tão inconsequentes como a escolha da marca de café ou do cereal no café da manhã. Pelo contrário: Deus pode perdoar, mas devemos entender que parte da tragédia inerente da condição caída do homem é que ainda vivemos com as consequências de nosso pecado.

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Não tenho certeza de qual é a razão exata para a existência dessa ortodoxia da segunda chance. Talvez seja o resultado dos mitos de redenção à là Disney que os Estados Unidos gostam de contar sobre si mesmos. Talvez seja simplesmente pragmatismo: se o evangelho é verdadeiro, então ele deve funcionar, no sentido de que deve ajudar a realizar o “sonho americano” de realização pessoal. Ou eu estou sendo muito duro com a América? Será possível que seja apenas o resultado de uma tendência mais geral da natureza humana caída de sentimentalizar a tragédia que é a nossa condição? Seja lá qual for o caso, ele está errado ao extremo.

É vital que o evangelho não seja confundido com segundas chances sentimentais. Isso é importante tanto pastoralmente como teologicamente. Pastoralmente, isso deveria nos fazer mais compassivos com aqueles que lutam com os resultados de ações prévias. Isso nos permite entender porque o cristão que viveu uma vida homossexual antes da conversão talvez continue lutando contra essas tendências até o fim de seus dias. Graça não é limpar a ficha no sentido de voltar ao início e começar tudo de novo com ela limpa. Ao invés disso, é o perdão divino apesar de quem fomos e ainda somos. Isso são notícias muito boas. Pense na igreja de Corinto, um pequeno grupo de pessoas, muitos dos quais haviam trabalhado em profissões do sexo. O mais espantoso não é que a igreja estivesse sendo destruída pela imoralidade – é isso que se esperaria de um grupo de pessoas lutando contra seu passado; ao invés, é o fato de que havia lá uma igreja, para início de conversa.

No outro lado da balança, entretanto, isso deveria nos levar a ter um alto conceito do comportamento cristão. Não devemos confundir perdão com a ideia do passado simplesmente desaparecendo como se nunca tivesse acontecido. O evangelho não é um truque de mágica que continuamente nos leva de volta ao Ano Zero em cada aspecto de nossas vidas. Se eu bato em minha esposa, sou um agressor, e haverá consequências. Se, como cristão, eu bato em minha esposa, sou um agressor cristão e estarei sujeito à disciplina apropriada e à exclusão que for aplicada. Desculpa não é uma fórmula mágica que limpa a ficha em todos os sentidos, nem a graça de Deus. Há uma diferença entre, por um lado, perdão e restauração da comunhão e, por outro, voltar a como as coisas eram antes. Algumas ações mudam relacionamentos, reputações e até personalidades de forma tão profunda que não há como voltar atrás. Mentimos se dissermos o contrário aos nossos rebanhos.

Teologicamente, a sentimentalidade epidêmica da brigada do evangelho-como-segundas-chances-infinitas é também subversiva do entendimento bíblico de quem Deus é exatamente e como é a salvação. Lembre-se: enquanto Cristo estava pendurado no madeiro, os redentores da Disney, os pragmáticos e os sentimentais estavam sem forças. De falto, os líderes religiosos, os soldados e o primeiro ladrão falavam com Cristo e o diziam que, se ele realmente fosse o Rei e o Messias, ele deveria descer imediatamente da cruz. Eles só conseguiam conceber um evangelho que simplesmente limpa a ficha e ignora as consequências das ações humanas. Apenas o segundo ladrão entendeu o verdadeiro ponto do que estava acontecendo naquele dia: ele viu claramente que o reino de Cristo não seria inaugurado com um glorioso e teimoso desafio à morte, mas com uma passagem pela morte que subverteria seu poder. De forma muito interessante, ele também exortou seu colega que estava para morrer, afirmando que sim, ele deveria morrer; que, humanamente falando, não haveria uma segunda chance para ele; e que isso era apenas o mais certo e justo.

Então, por favor, levemos a sério o ensino de Paulo sobre a necessidade de caráter cristão e as consequências sociais e eclesiásticas, às vezes permanentes, do comportamento pecaminoso entre os cristãos. Não podemos ser perfeitos; mas devemos andar de forma que credencie nossa declaração verbal de que Jesus é Senhor. E não deixemos um comprometimento com uma visão “Disneyficada” do mundo, com o pragmatismo ou com sentimentos frívolos nos cegar para os problemas de ignorar o pecado, as consequências duradouras do comportamento passado ou as incontáveis mentiras que as novelas, séries e, sim, até os reality shows religiosos, tentam nos fazer engolir.

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