Quando lemos as histórias de Jesus, sempre exaltamos o fato de ele andar com gente como a gente, que é oprimida, que sofre, que chora, que não está no poder. Muitas vezes, lemos as passagens bíblicas sobre a graça divina e nos maravilhamos pelo fato de Deus ter misericórdia de nós. Nos lembramos de nossos pecados, de como fomos perdoados, do sangue derramado na cruz. Recriminamos qualquer pessoa que assuma uma postura que consideramos mais legalista. Chamamos de fariseu, de religioso, porque Deus chama pecadores.
Mas aí acontece de um dia Jesus chamar o tipo de pecador que não gostamos. Talvez alguém que tenha um histórico ou uma fama ruim. Talvez alguém que não tem suas capacidades intelectuais. Ou uma pessoa que, por mais que você tente, não há afinidade entre os dois, pelos gostos dela, pelas posições políticas, por não comer carne ou o que for. Logo, não gostamos tanto do povo de Deus quanto antes. Como ele ousa chamar esse cara?
Nossa atitude é errado mas esse tipo de situação existe desde sempre. É melhor estar preparado.
Considere a história de Levi, por exemplo. Marcos nos conta o relato de seu chamado:
E tornou a sair para o mar, e toda a multidão ia ter com ele, e ele os ensinava. E, passando, viu Levi, filho de Alfeu, sentado na recebedoria, e disse-lhe: Segue-me. E, levantando-se, o seguiu. (Lc 2.13,14)
Um estranho no ninho
Levi, que também é conhecido como Mateus, o Evangelista, era um publicano que se posicionava junto ao mar da Galileia. O fato de sua coletoria estar nesse local específico indica que ele possivelmente cobrava taxa dos pescadores locais. Note que interessante: talvez Mateus tivesse cobrado impostos daqueles irmãos pescadores que Jesus havia chamado há alguns dias.
Some-se a isso o fato de que a maioria dos publicanos eram corruptos e conhecidos por cobrarem mais do que deviam. Basicamente, eles tinham a fama de ladrões e injustos.
Para piorar a situação, estamos falando dos judeus, um povo fortemente agarrado a suas tradições étnicas e religiosas. Quando um homem judeu decidia seguir essa profissão, claramente estava negando sua nacionalidade para trabalhar junto aos dominadores romanos. Ele deveria ser considerado um gentio, um pagão.
Não é à toa que mesmo Jesus faz uso do imaginário de sua época, ao ensinar que a igreja deveria considerar o impenitente como “gentio ou publicano” (Mt 18.17). Não é que Jesus desprezava gentios e publicanos, mas porque ele sabia que seus discípulos entenderiam. Basicamente, era como se dissesse: “Ele é alguém que não faz parte do meu povo”.
Como será que eles se sentiram em ter um traidor da pátria em seu grupo? Os fariseus, como os versos seguintes relatam, claramente estranharam essa associação:
E os escribas e fariseus, vendo-o comer com os publicanos e pecadores, disseram aos seus discípulos: Por que come e bebe ele com os publicanos e pecadores? (v.16)
Muitas vezes, enfatizamos o amor de Deus pelos oprimidos e fracos. A teologia da libertação tem esse como um de seus fundamentos principais – “a preferência de Deus pelos pobres”. Há certa base para isso, mas um exagero nessa firmação pode ser algo perigoso.
O problema é que divisões assim simplificam demais o povo de Deus. É claro que há uma aproximação maior entre Cristo e os pecadores notórios de sua época. Porém, se observarmos o pequeno grupo dos apóstolos veremos ali escolhas pouco homogêneas.
Cristo chama pessoas incômodas para sua obra. Mais para frente, ele chamará um radical político, Simão Zelote, e até mesmo um fariseu, Saulo. Sem contar prostitutas, gentios e samaritanos que o acompanhavam.
Esperança para oprimidos… e opressores
Levi era desprezado pela sociedade, mas ele não era visto como um oprimido pelos seus pares. Ele era desprezado por ser um opressor.
Talvez, ele nem gostasse tanto, mas alguém tinha que fazer aquele papel. Alguém teria de cobrar impostos dos irmãos. Alguém tinha de ser parte do sistema. Talvez, pelo contrário, ele fosse um cínico e dissesse: “se não posso vencer, devo unir-me a eles”.
De qualquer forma, temos aqui a figura de um homem oprimido e opressor. Que mantinha o status quo, mas que também incomodava o mundo em que vivia.
Precisamos estar preparados para a obra da graça na vida dos incrédulos. É necessário que a igreja se alegre quando um desajustado, quando um opressor ou uma pessoa diferente se converte. É algo que o Corpo de Cristo tem de mais belo – a variedade unida pela mensagem do Evangelho.
Porque nenhum de nós vive para si, e nenhum morre para si. Porque, se vivemos, para o Senhor vivemos; se morremos, para o Senhor morremos. De sorte que, ou vivamos ou morramos, somos do Senhor. Porque foi para isto que morreu Cristo, e ressurgiu, e tornou a viver, para ser Senhor, tanto dos mortos, como dos vivos. Romanos 14.7-9
Uma aplicação prática desse ensinamento está no evangelismo. Precisamos saber que somos apenas instrumentos daquele que chama os seus discípulos. A esperança de um pregador ou de quem evangeliza não deve residir no perfil da pessoa que ouve, mas no poder da mensagem que carrega. Sua responsabilidade é ser fiel e apresentá-la da maneira que a Palavra ensina. Mas é por meio dela que o Salvador chama seus discípulos.
Muitas vezes, achamos que existem algumas pessoas que são “inconversíveis”, que dificilmente crerão, enquanto outros claramente demonstram sinais de que aceitarão. Pensamos que devemos investir mais no segundo grupo, uma vez que “eles são quase crentes, só falta Jesus”. Tolice. Como disse um querido pastor a uma irmã que fazia esse tipo de divisão, “minha querida, se falta Jesus, então falta tudo”.
Mas, por que fazemos essa distinção entre mais próximos e menos próximos? Simplesmente porque nos esquecemos do alvo de Jesus. Nos esquecemos que somos necessitados da graça e “não há um justo, nenhum sequer”. Cristo veio para os pecadores.
Ele veio para os doentes
E Jesus, tendo ouvido isto, disse-lhes: Os sãos não necessitam de médico, mas, sim, os que estão doentes; eu não vim chamar os justos, mas, sim, os pecadores ao arrependimento. (v.17)
Jesus responde seus opositores com a figura do médico. Ele não veio para os sãos, mas para os doentes. Em outras palavras, aqueles que se consideravam justos não iriam aproximar-se dele. Por outro lado, aqueles que se reconheciam como pecadores buscariam a cura do Salvador. Não há qualquer relação com características naturais ou sociais, como ser conservador, liberal, oprimido ou opressor. A questão é: você se reconhece como justo ou como pecador?
É claro que Jesus não estava dizendo que os fariseus e escribas eram justos. Pelo contrário, com ironia, Cristo procurou alertá-los para o fato de que estavam cegos para essa grande verdade a respeito da salvação.
Se Jesus veio apenas para justos, não há necessidade de sangue derramado. Ele não precisaria tornar-se homem. Não há ira para ser desviada, pois Deus não está ofendido com nossos atos. Não há motivo para uma cruz, pois justos não têm pecados para ele carregar. Não existe sacrifício, pois ele não precisa tomar lugar de ninguém. Se Jesus não veio para os doentes, sua vida perfeita é mero exemplo, não algo de que necessitamos. A Ceia torna-se uma refeição vazia. O Espírito Santo não é um ajudador necessário. A igreja não é nada além de uma reunião comum de pessoas, como também é um clube, uma festa ou um partido político.
Se acharmos que Jesus veio para os justos ou nosso grupo favorito, nos damos ao direito de decidir quem entra ou não no grupo, e serão somente aqueles que cumprem todas as regras. Como nós conseguimos cumprir.
Há alguns meses, no Facebook (onde mais?), aconteceu uma discussão sobre qual a melhor imagem para a igreja. Algumas pessoas, ofendidas com a disciplina eclesiástica afirmavam que a igreja deve ser como um hospital, não como um tribunal.
A figura era correta, mas o entendimento estava incompleto. E daqui decorre o segundo erro dos fariseus. O doente é aquele que se aproxima do seu médico porque sabe que está doente. O médico quer curá-lo e o enfermo quer livrar-se de suas enfermidades. Um doente que se considera são não enxerga isso.
Se Jesus vem para os justos, então a mensagem de arrependimento que é pregada desde o início de seu ministério não faz sentido. Quem não tem pecado – isto é, quem pensa que não tem pecado – não tem do que se arrepender. Os fariseus esqueceram-se disso quando se consideraram superiores aos publicanos.
Se, como os religiosos do tempo de Jesus, somos muito bons para listar nossas virtudes, mas lentos em perceber nossos erros, está claro que esquecemos da necessidade de um médico. Sem qualquer medo de ser ousado, posso garantir que nenhum leitor desse blog alcançou a perfeição. Logo, ainda temos muita necessidade de um médico, e não devíamos desprezar os outros pacientes desse doutor.
O “justo” – nos termos dessa passagem – é aquele que é incapaz de olhar para Cristo e dizer “pequei, preciso de tua cura”.
Que humildemente nos reconheçamos como pessoas dependentes do médico dos médicos.