A Teologia Sistemática olha para toda a Bíblia e tenta entender tudo aquilo que Deus fala sobre um determinado assunto (por exemplo: pecado, céu, anjos, justificação).
Exegese é aquilo que você faz quando olha para um único texto das Escrituras e tenta entender o que o autor – falando em uma cultura específica, endereçando uma audiência específica, escrevendo com um propósito específico – pretende comunicar.
Uma boa Teologia Sistemática estará ancorada em uma boa exegese. A soma do todo é tão verdadeira quanto cada uma das partes individuais. Nenhum cristão deve se interessar em construir um grande sistema teológico criado a partir de um entendimento superficial e distorcido de cada parte. Eu não conheço nenhum pastor ou erudito evangélico que discorda desses pontos.
Mas e o contrário? Todos nós sabemos que a exegese deve informar a teologia sistemática, mas o nosso sistema teológico deveria também informar nossa exegese? Alguns cristãos, especialmente estudiosos, tem argumentado que a melhor exegese é aquela completamente imparcial do ponto de vista teológico. Não podemos levar nossos conceitos teológicos para a Bíblia para não alterarmos o significado das Escrituras e impormos categorias anacrônicas ao texto. O pressuposto não dito (e às vezes dito) é que o tráfego entre a exegese e a teologia é de mão única. Acadêmicos fazem seu trabalho, e enquanto os teólogos prestarem atenção à exegese profissional, eles podem fazer o trabalho deles. Mas a tarefa da exegese, em geral implicitamente e algumas explicitamente dito, tem pouco a ganhar ouvindo os teólogos.
Essa insistência em fazer com que o caminho entre a exegese e a teologia seja uma rua de mão única é insustentável e não é sábia. Pastores, acadêmicos e intérpretes leigos fariam bem em prestar atenção ao conselho de Moisés Silva:
Em contraste [com esta rua de mão única], eu gostaria de argumentar que não apenas o exegeta deve endereçar questões teológicas e sugerir o que determinado texto tem a dizer para uma reflexão teológica – dou um ousado passo além: minha teologia deve, de fato, informar minha exegese. Colocando da maneira mais chocante possível, meu sistema teológico deve me dizer como fazer exegese. (Interpretando Gálatas, p. 207)
Moisés Silva continua e menciona três considerações em defesa dessa “escandalosa posição”:
1. “Em primeiro lugar, devemos nos lembrar que a teologia sistemática é, em grande medida, uma tentativa de formular o ensino das Escrituras em maneiras que sejam significativas e compreensíveis para nós em nosso contexto atual” (p. 208). Há vários comentários bíblicos que induzem o pastor ao erro e deixam os membros das comunidades cristãs desorientados, porque se recusam a perguntar as questões reais que as pessoas querem saber. Eles mergulham em história, filosofia e crítica textual, mas não falam sobre o que determinada passagem significa para nossa visão de casamento, para nosso entendimento sobre o mal ou para nossa crença na providência. As categorias da teologia sistemática não são estáticas. Algumas surgem e outras desaparecem com o tempo. Mas, em geral, a teologia sistemática lida com as questões que os cristãos estão mais interessados em discutir ao longo dos anos ou séculos. Deixar a teologia de lado na tarefa da exegese é um convite para fazer a exegese irrelevante.
2. “Em segundo lugar, nossa visão evangélica da unidade das Escrituras exige que vejamos a Bíblia toda como o contexto de qualquer trecho individual” (p. 208). O atual debate sobre Adão, para citar apenas um exemplo, demonstra o quão crítico é a unidade das Escrituras em modelar nosso método exegético. Se crermos – em meio à genuína diversidade bíblica – que há por trás de cada autor humano um autor Divino, então estaremos preocupados em ver como as diferentes vozes nas Escrituras fazem um som harmônico. Logo, se Romanos ensina que a doutrina do pecado original está enraizada no Adão histórico, não ficaremos envergonhados em trazer essa consideração para o nosso entendimento de Gênesis, não de uma maneira que ignore tudo aquilo que acontecia na antiga Mesopotâmia, mas de um modo que considere nosso entendimento da inspirada e unificada Palavra de Deus. Claro, a eisegese é um perigo e, por causa disso, alguns eruditos querem deixar de lado “a analogia da fé”1 no processo exegético. Mas fazer isso, Moisés Silva nos lembra, “é negligenciar o mais importante recurso hermenêutico que temos, a saber: a unidade e o todo da própria revelação de Deus” (p. 209).
3. “Terceiro, e finalmente, minha proposta parecerá bem menos chocante se lembrarmos que, na verdade, todos já fazem isso, de qualquer forma” (p. 209). Se o pós-modernismo nos ensinou alguma coisa, foi que nenhum de nós chega a um texto completamente imparcial, uma “folha em branco”. Nós vamos à tarefa da exegese com um conhecimento prévio, com uma maneira de ver o mundo, com um sistema. É assim que a mente trabalha e é um dos dons de Deus que permitem que o aprendizado seja possível. Isso também torna o trabalho hercúleo do pregador mais factível. Sem uma teologia sistematizada, como você poderia começar a saber o que fazer com a escatologia de Ezequiel, ou a linguagem sacramental em João 6 ou a insistência do salmista em dizer que ele é justo e reto? Como um cristão, espero que minha teologia esteja aberta a correções, mas como um ministro, preciso começar de algum lugar. Todos nós fazemos isso. Para mim isso significa começar com a Teologia Reformada e minha tradição confessional e permanecer firme nelas a menos que eu tenho razões realmente boas para não fazer isso.
Então, ao invés de fingir ser teologicamente imparcial, por que não reconhecer nossas próprias concepções prévias e usá-las no processo de exegese? Se formos honestos em relação aos nossos sistemas teológicos, estaremos mais bem equipados para reformular nossa linha de pensamento quando ela não funcionar e mais bem equipados para lidar abertamente com pontos difíceis no texto. Sem um sistema, nos aproximaremos de passagens como Tiago 2.24 e a entenderemos errado; ou, provavelmente, ignoraremos as difíceis questões que confundem a cabeça de todo mundo. A teologia não precisa necessariamente distorcer a exegese. Bem feita, ela pode ajudar a proteger o processo interpretativo, honrando a unidade das Escrituras e lançando luz nas mais importantes e difíceis questões que surgem a partir da Palavra de Deus.
[1] N. T.: Princípio hermenêutico que diz que “Escritura deve interpretar Escritura”.