A era corrente tende a enxergar polêmicas, controvérsias teológicas e qualquer disputa doutrinária como, no máximo, um mal necessário e, no mínimo, um dos aspectos mais revoltantes do cristianismo. Afinal de contas, enquanto a cultura mais ampla em que vivemos é capaz de ataques viciosos aos racistas e homofóbicos, ela considera as disputas entre cristãos como debates sobre quantos anjos conseguem dançar na cabeça de um alfinete, onde as emoções mais fortes são inversamente proporcionais à importância dos assuntos debatidos e toda a conversa indica profundos problemas psicológicos de insegurança daqueles que debatem. Os gostos da cultura se tornaram, de forma ampla, os gostos da igreja; as polêmicas estão fora de moda.
Entretanto, as polêmicas produziram alguns momentos de grande beleza na história da igreja, e não deveríamos deixar a antipatia cultural moderna à controvérsia religiosa nos cegar para esse fato. Eu preciso ser um tanto cuidadoso aqui, para não ser incompreendido, e distinguir dois tipos de beleza da polêmica. O primeiro tipo eu chamo as polêmicas onde, nas palavras de Yeats, “terrível beleza nasce”. Yeats estava escrevendo sobre a Revolta da Páscoa, em Dublin, e sobre como a causa da independência irlandesa gerou, em um momento de explosiva violência, uma grandiosidade terrível e atemorizante em homens que tinham, até aquele ponto, ocupado cargos e trabalhos completamente comuns.
A história da igreja também tem alguns momentos em que “terrível beleza nasce”. Como exemplos, alguém pode citar o Concílio de Constantinopla, em 381, quando mais de meio século de, por vezes, violentos conflitos imperiais e eclesiásticos foram resolvidos na definição da Trindade do Credo Niceno. Também é possível citar a Dieta de Worms, em 1521, quando Lutero, tendo sua consciência cativa à palavra de Deus, fez sua declaração corajosa contra as forças combinadas do império e da igreja. Alguém pode pensar em Dietrich Bonhoeffer, calmamente caminhando para a morte em um campo de concentração alemão por se recusar a trocar sua lealdade a Cristo pela lealdade ao perverso regime vigente. Cada caso é diferente; mas todos são magníficos de suas próprias formas e isso se deu pelo desafio aos poderes anticristãos que cada caso testemunha.
Meu critério amador para avaliar essa terrível beleza é simples: se o evento é claramente magnífico, mas eu não teria coragem para querer estar envolvido, então se qualifica como “terrível beleza”. Essa é uma métrica quase puramente subjetiva, mas tem funcionado. Claro, eu posso admirar os pais da igreja que se reuniram em Constantinopla, o monge permanecendo firme pelo evangelho em Worms ou o pastor luterano sendo enforcado pelo bem de sua consciência, mas eu louvo a Deus que não foi comigo. Terrível beleza teológica é um pouco como a terrível beleza militar: por exemplo, a batalha de Waterloo é magnífica (que garoto inglês dos anos 80 não sentiu seu peito se encher de orgulho nas aulas de história com o pensamento de esmagar os franceses de forma tão decisiva?), mas quem, em sã consciência, gostaria de ter lutado nessa batalha? Batalhas, como as controvérsias teológicas, são grandes e belas em retrospecto, uma vez que você sabe que o seu lado ganhou e você conseguir sobreviver.
Existe outro tipo de beleza polêmica, contudo, e essa é de um tipo que você talvez nem considere polêmica até que alguém assim diga. Algumas das mais belas linhas da história da igreja foram escritas precisamente como belas, mesmo que silenciosas, polêmicas. Estou pensando aqui especificamente na primeira questão e resposta do Catecismo de Heidelberg. Antes que o pensamento de mais um documento empoeirado de mero interesse histórico te faça rolar os olhos, mover as mãos para a boca para disfarçar um bocejo e alguém fale do clima para mudar de assunto, aqui está o que o Catecismo de Heidelberg fala:
Pergunta: Qual é o seu único consolo, na vida e na morte?
Resposta: Que eu, de corpo e alma, tanto na vida como na morte, não pertenço a mim mesmo, mas ao meu fiel Salvador Jesus Cristo; aquele que, com seu precioso sangue, pagou completamente pelos meus pecados e me libertou de todo o domínio do diabo; agora me preserva de tal forma que, à parte da vontade do meu Pai celestial, nem um só fio de cabelo cairá da minha cabeça; sim, de tal maneira que tudo coopera para o meu bem e, assim, por seu Espírito Santo, Ele me garante a vida eterna e me faz sinceramente pronto e disposto, daqui em diante, a viver por ele.
Isso pode não soar muito polêmico – de fato, parece bastante pastoral – mas não se confunda. No contexto do século XVI, essa era uma afirmação muito polêmica.
No coração pastoral da Reforma Protestante está a doutrina da certeza, a ideia de que cada crente pode, individualmente, sabe – de fato, deve saber – que Deus é gracioso para com ele. Isso era importante porque, como os Reformadores corretamente perceberam, estava no centro da vida cristã, uma vida que deve ser marcada por obras feitas não de forma servil na esperança de conquistar o favor de Deus, mas por obras feitas em gratidão a Deus por sua graça, e em um espírito de confiante liberdade. O Catolicismo Medieval estava firmado em uma estratégia diferente, onde a dúvida individual da misericórdia de Deus era um meio de manter os crentes na coleira curta, por assim dizer. Quando o Catecismo de Heidelberg começa com uma afirmação sobre certeza da salvação, está dando um chute nas canelas do Catolicismo.
Essa é uma linha divisória significante entre protestantes e católicos desde a Reforma até hoje. Muitas vezes me perguntam na sala de aula sobre como os protestantes deveriam abordar seus amigos católicos. Minha resposta normalmente é dupla. Primeiro, é apropriado (e, de fato, não custa nada) reconhecer muitas das coisas boas que o Catolicismo preservou durante séculos, como nada menos que as doutrinas da Trindade e da Encarnação. Nós compartilhamos de uma mesma herança católica, uma que muitas vezes eles valorizam muito mais do que os evangélicos, pois eles tendem a uma apreciação mais profunda da história e de sua relativamente irrelevância individual em comparação à igreja como um todo.
Apesar disso, por causa de toda essa grande teologia confessional, aqueles que se convertem do Protestantismo para o Catolicismo realmente sacrificam algo crucial: a alegria da verdadeira certeza da salvação no evangelho. É claro, nós precisamos entender que a certeza da qual o Catecismo de Heidelberg fala não é do tipo que é tão comum em nossa cultura cristã atual: a ideia de que Deus é um amigão bonzinho e sentimental, que os seres humanos caídos não são tão ruins assim e que no fim do dia, tudo vai dar certo. Nada disso. A certeza da Reforma é a certeza Paulina: por nós mesmos, somos completamente imerecedores e perdidos; mas em sua gloriosa graça, o próprio Deus derrubou a montanha do pecado e, contrário a toda esperança e expectativa, nos salvou, pela vida, morte e ressurreição de Cristo, uma salvação que é nos dada pela graça, mediante a fé.
Há vários aspectos fascinantes da retórica de certos grupos evangélicos sobre a Reforma ter acabado. O mais óbvio é o fracasso daqueles que usam de tal retórica de agir de acordo com essa crença e, assim, voltar para Roma. Por favor, não venha me dizer que a Reforma foi um erro, ou sobre como todas as diferenças já foram resolvidas ou desconsideradas, se a confissão de fé da sua igreja parece contradizer isso. Se você realmente acredita que a questão foi resolvida, é passado, tenha a coragem de agir conforme suas convicções.
A segunda coisa que me fascina é o fracasso generalizado de abordar a questão da certeza como fonte de diferença entre protestantes e católicos. Isso realmente parece não importar mais, pelo menos para aqueles que carregam as bandeiras de “A reforma acabou”. Estranho, já que foi algo central para o protesto da Reforma e certamente ainda o é na prática pastoral de hoje. Assim, argumentar que a Reforma acabou é argumentar que a certeza não importa mais. Suspeito que esse é o caso não por razões teológicas, não porque as duas tradições resolveram suas diferenças, mas porque toda a noção de segurança, e falta dela, se tornou confusão para a maioria dos cristãos. E isso diz muito sobre um mundo onde as bases para a falta de certeza (a santidade de Deus e a seriedade do pecado) já não provocam muitas consequências. Se a certeza da salvação não é mais um problema, é provavelmente porque você tem uma visão sub-bíblica da santidade de Deus e sub-paulina do pecado; e se esse é o caso, então o fim da distância entre protestantes e católicos não deve ser uma causa de conforto ou alegria para ambos; pelo contrário, diz muito sobre a secularização e o mundanismo da mente cristã. Se as polêmicas podem ter terrível beleza, às vezes as anti-polêmicas e a paz podem ser simplesmente terríveis.