Vampiros mórmons no Jardim do Éden (III)

Veja a primeira parte desse texto aqui e a segunda, aqui

Alegorias e Símbolos

Talvez a fonte principal de apelo da saga Crepúsculo sejam os numerosos significados alegóricos e herméticos que são derivados da narrativa. Entre as imagens alegóricas estão representações  dos patriotas norte-americanos, Amazonas feministas, Muçulmanos do oriente-médio, Celtas pagãos e até os Cristãos Ortodoxos, representados pelos vampiros romenos que foram dominados há séculos pelos Volturi.

A alegoria mais poderosa, entretanto, é a reimaginação de Crepúsculo da Criação no Jardim do Éden. Uma alegoria espiritual da história de amor de Deus e o homem em uma embalagem adolescente, sobre a qual falarei mais tarde.

Os romances de Crepúsculo também contem vários símbolos e metáforas, entre as quais o círculo, a alquimia e a epistemologia do logos são proeminentes.

Os círculos, por exemplo, são um símbolo do relacionamento transcendente do ser com o visível. O centro exato de um círculo é invisível e difícil de se encontrar mas, misteriosamente, é apenas por meio do centro, o ponto definitivo eqüidistante de todos os pontos que formam a circunferência, que podemos definir a forma do círculo. O primeiro e mais importante círculo daqueles usados pela Srta Meyer é a clareira perfeitamente circular na qual Edward revela seu verdadeiro ser para Bella, mas o círculos são repetidos, quase como um padrão, em todos os eventos-chave de Crepúsculo.

Alusões à alquimia, a antiga ciência famosa pela transformação em três estágios do chumbo em outro, representam a transformação humana da escuridão espiritual (chumbo) em iluminação (ouro) – vistas nos olhos dourados e brilhantes da família Cullen.

A história de amor entre Deus e o homem

O tema hermético predominante na obra da Srta Meyer é o seu entendimento da “mente” como a composição da realidade e sinônimo de “conhecimento do coração”, em oposição ao pensamento cerebral. Praticamente todas as páginas em Lua Nova, por exemplo, mencionam as dores no peito, o vazio em seu coração e a sua perda de sentido que Bella sente na ausência de Edward.

O próprio Edward é um símbolo para Cristo como o logos encarnado que “vive no coração” do homem. Apesar de muitas vezes descrito como um “anjo” e muitas vezes ter as características de Joseph Smith, ele é o Primeiro Filho o Pai Cullen e o meio pela qual Bella se une à Santa Família, a figura de Cristo dentro da história. Sua habilidade característica de penetrar na mente de todos (mesmo na de Bella, ao fim da história) indica sua identidade como o Logos que “é antes de todas as coisas, e nele tudo subsiste.” (Colossenses 1.17).

Bella, como alegoria do homem comum em uma busca espiritual sacrificial e sincera, é definida pelo seu relacionamento com essa Palavra, que ela conhece em seu coração. Ela deixou a cidade do Sol (Phoenix) para caminhar na floresta de Forks [bifurcação], como o próprio Dante Alighieri. O que ela encontra na clareira é o vampiro “brilhante”, a Luz do Mundo, que se senta imóvel ao centro da clareira circular perfeita. Nesse círculo, Edward e Bella discorrem sobre o amor de um pelo outro.

Esse romance, cosmicamente desproporcional, é um reflexo das desigualdades e responsabilidades da sinergia do divino-humano. Deus, como Edward, não poderia se mostrar totalmente ao homem, ou isso o destruiria completamente. O homem, como Bella, precisa morrer para a identidade “carnal” de sua alma e seu corpo e arriscar tudo para poder amar Deus plenamente. O amor “divino” de Edward é constante, imutável e respeitador. O amor humano de Bella é altruísta e sacrificial. Essa saga é a história de sua transformação, por meio de “Cristo”, que se segue após ela pegar a maçã da bandeja dele na lanchonete da escola.

A febre Crepúsculo vem em grande parte da identificação do leitor com Bella, cujo amor e desejo de união com Edward, a Palavra, ou o Cristo, permite ao leitor transcender suas preocupações individuais com uma experiência imaginativa de algo mais real e duradouro.

Descobrimos nessa versão pop dos Cânticos de Salomão a história de amor entre Deus e o homem, que é a chave para desvendar o mistério do sucesso de Crepúsculo. Mircea Eliade, do livro The Sacred and the Profane [O Sagrado e o Profano], estava certo; em uma cultura secular, o entretenimento funciona como uma religião – e esse fundamento espiritual dramatizado é tão popular porque une em seu cerne a mensagem religiosa da Queda do homem e seu retorno à união com Deus através de sua Palavra.

Uma Queda Boa

Isso nos trás de volta ao Jardim do Éden. Como mencionado acima, Crepúsculo é uma narrativa romântica da Queda do homem apresentada em uma apaixonante e excitante embalagem de romance e thriller internacional. Isso pode parecer exagero, mas pense na capa do primeiro livro – mãos femininas estendendo uma maçã –  e sua abertura – “mas não coma da árvore do conhecimento do bem e do mal, porque no dia em que dela comer, certamente você morrerá”. (Gênesis 2.17)

Essa não é, entretanto, a história conforme Moisés relatou ou como os cristãos primitivos entendiam. Como Mórmon, a Srta Meyer se afasta do entendimento tradicional desse evento, e a forma como ela se afasta mais aproxima do que afasta os seus leitores.

Cristão entendem a desobediência de Adão e Eva a Deus, o “pecado original”, a Queda, como o começo da separação de Deus, uma separação que o homem não poderia reverter por si só, mas que foi necessária a encarnação e o sacrifício de um Salvador divino e sem pecados para fazê-lo. Os Mórmon rejeitam essa interpretação. Não apenas mantêm a visão Pelagiana de que a consciência e o livre arbítrio humanos são suficientes para a salvação, como vão além, afirmando que a Queda não só não foi uma coisa ruim como foi uma coisa boa e até necessária para a salvação humana.

Em algumas correntes da tradição Mórmon, Adão é, na verdade, o deus finito da terra (ou o Arcanjo Miguel), e Eva é sua esposa celestial que veio de outro planeta. A Queda e a expulsão do Paraíso, de acordo com essa visão, foram necessárias para que Adão e Eva se casassem e se reproduzissem. O “casamento celestial” é um mandamento central para a exaltação (salvação) Mórmon, e sem a “Queda”, o homem não poderia ter dado esse importante passo em sua caminhada da mortalidade para a vida pós-mortal como um deus no Reino Celestial.

Isso é uma grande discordância do credo ortodoxo cristão em respeito à sexualidade e sobre como os humanos se relacionam com Deus. No Cristianismo tradicional, a preservação sexual é adotada por aquele que aspiram se devotar mais intensamente para às coisas de Deus, enquanto no Mormonismo, o sexo, dentro do casamento, é um exercício até salvífico. Um Mórmon solteiro é algo como um “círculo quadrado”, e a vocação do celibato é um sacrilégio.

As doutrinas de Joseph Smith sobre a Progressão Eterna e a suficiência da vontade e consciência humana também vão de encontro à tradição cristã. Ao invés de receber e ser transformado pela graça de Deus, no Mormonismo há uma série de atos espirituais que, se realizados em conformidade aos ensinamentos do deus da igreja dos SUD, irão resultar na aproximação a deus nessa e na próxima vida.

Entretenimento Espiritual

O que isso tem a ver com o porquê de tantos leitores amarem Crepúsculo?

De forma resumida, Bella é Eva e Edward é o Adão-Deus da Teologia Mórmon. A “Queda” – quando Bella/Eva/Homem pega a maçã da bandeja de Edward/Adão/Deus, apesar de enfrentar perigos e dificuldades, é o começo de uma transformação espiritual que culmina no casamento com o Deus-Homem. A história é uma alegoria romântica que caracteriza os papéis e responsabilidades dos amantes divinos e humanos, mas que contem a reviravolta hermética Mórmon  de que o sexo dentro do casamento é o propósito final do homem e o único meio para a salvação pessoal e a vida eterna.

Os livros da Srta Meyer são tão populares porque, como as crenças dos SUDs que são a substância de seu significado, eles refletem e reforçam o pensamento convencional a respeito da sexualidade mais do que o desafiam (mesmo que o auto-controle de Edward e sua insistência na castidade pré-marital são muito difíceis de entender para muitos leitores).

Eliade estava correto ao afirmar que somos consumidos por nossos próprios entretenimentos porque eles satisfazem nossa busca interior por algum tipo de experiência espiritual, mesmo que apenas de forma imaginativa, em um mundo que nega a existência de Deus e que diminuem o psicológico e imaginativo à meros devaneios. Pessoas são atraídas, e muitas são consumidas, por esses livros e filmes que mais se aprofundam de forma convincente no conteúdo religioso e no significado mítico. Não é surpreendente que esses pobres significados não consigam destruir ou mesmo confrontar os bezerros de ouro de nosso panorama moral moderno.

Crepúsculo se encaixa nesse papel perfeitamente. É uma escrita muito melhor e uma experiência de leitura muito mais profunda do que seus críticos afirmam. Também é a confirmação em forma de narrativa dos convencionais, mas anti-tradicionais credos dos SUD. Mães que não querem que suas filhas cresçam e se tornem Mórmons (ou pior, individualistas e libertinas) precisam se preocupar muito mais com o peso e conteúdo do simbolismo e significado Pelagiano da Srta Meyer do que com o mau exemplo de Edward ao observar castamente Bella dormindo toda noite.