Embora algumas doutrinas sejam conhecidas quase que exclusivamente pelos crentes, outras extrapolaram os limites da igreja e criaram raízes na mente do povo. O nascimento miraculoso de Jesus é uma dessas doutrinas. A pesquisa Harris de 2003 indicou que 79% da populção americana acredita nessa doutrina, além disso, 27% desses se dizem não-cristãos. De fato, essa é uma doutrina popular.
Qual o motivo disso? Não há dúvida de que parte dessa popularidade descansa na repetição anual da história sobre o nascimento de Cristo em praticamente todos os formatos imagináveis, desde a simples leitura do evangelho em um ambiente familiar até extravagantes produções da cultura popular (A New Line Cinema gastou 65 milhões de dólares para produzir o filme “O Nascimento de Cristo” [The Nativity Story] em 2006).[1] Aparentemente, crentes e não crentes, de forma semelhante, são sempre movidos a contemplar o singular evento de Deus se tornando homem por meio do nascimento virginal.
Porém, há mais aqui do que sentimentalismo. A doutrina de que Jesus Cristo foi concebido por Maria pelo poder do Espírito Santo, escritas independentemente no evangelho de Mateus e no de Lucas, não foi apenas consagrado como um feriado, mas também confessado pela igreja através dos séculos. Ela é proeminente nos credos antigos (por exemplo, no dos apóstolos, no Niceno e no de Calcedônia) e nos documentos da Reforma (por exemplo, na confissão de Augsburgo, na confissão Belga, nos trinta e nove artigos da Igreja Anglicana e na confissão e catecismos de Westminster). Essa doutrina é sustentada por todos os ramos da igreja e foi chamada de “a doutrina fundamental” no início do século XX. Ela é rotineiramente listada como a declaração de fé mais simples.
Há uma boa razão para crer nessa doutrina. Antes de falarmos sobre isso, vamos descartar algumas pistas falsas. Nós não nos apegamos ao nascimento miraculoso de Cristo porque ele se tornou divino. Cristo nunca se tornou divino – Ele sempre foi divino: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus” (Jo 1.1). E também não foi o fato de Maria tê-lo concebido milagrosamente que preservou Sua santidade interior. Enquanto Davi disse: “Eu nasci na iniquidade, e em pecado me concebeu minha mãe.” (Sl. 51.5), segue-se que não foi o nascimento virginal que separou Cristo da mácula do pecado. Virgindade não é um antídoto para o pecado. Cristo não pecou por causa da sua pureza inata, não por causa do poder de um útero virgem. O preciso mecanismo disso está além do nosso entendimento, no entanto. Warfield, com uma descrição das características, disse: “Deve ser um homem corajoso, de fato, aquele que afirma que a encarnação do Santo em carne pecaminosa não apresentou dificuldades para o seu pensamento”. [2]
Uma doutrina necessária
Se o nascimento miraculoso de Cristo não foi necessário para constituir Sua divindade ou preservá-Lo do pecado, por que ele foi necessário então? Ou, num aspecto mais prático, por que devemos apoiá-lo? Por muitas razões.
A razão mais simples é porque ele é um simples, até mesmo empático, ensinamento da Bíblia. Mateus e Lucas são explícitos nesse ponto, e nenhum outro autor bíblico levanta alguma contradição quanto a isso. Se as simples declarações sobre a virgem Maria são desconsideradas, que assim sejam os de muitas outras doutrinas.
Mais obliquamente, nós devemos seguir essa doutrina porque o oposto é inimaginável. A noção de que Deus se fez homem, de que o Verbo encarnou, é (perdoe o trocadilho) inconcebível sem um milagre físico. [3] Mesmo assim, esse posicionamento é ainda criticado por alguns. O modernista Henry Emerson Fosdick disse isso num sermão em 1922: “Aqueles primeiros discípulos adoraram a Jesus – assim como fazemos; quando eles pensavam sobre sua vinda, eles estavam certos de que ele viria especialmente de Deus – assim como viemos; essa adoração e essa convicção eles associaram com a influência especial e a intenção de Deus no nascimento de Cristo – assim como fazemos; mas eles expressaram isso em termos de um milagre biológico que nossas mentes modernas não podem usar”. [4] Fosdick teria concordado conosco que Cristo veio “especialmente de Deus”, mas considera qualquer ideia de milagre como uma opinião ingênua dos primeiros discípulos. A questão implícita era: O que perdemos por eliminar essa doutrina que ofende “nossas mentes modernas”? A resposta é simplesmente: tudo. Nós perdemos tudo porque nessa doutrina se convergem cinco verdades necessárias que caracterizam Cristo como nosso Salvador.
- O Salvador precisa ser Deus (veja o Catecismo Maior de Westminster, P.38). Qualquer redentor em potencial que não seja divino é inadequado para a tarefa. Um mero homem não poderia sustentar a ira de Deus, quebrar o poder da morte, ou ser ele mesmo e sua obra suficientemente valiosos para satisfazer a justiça de Deus por Seu povo.
- O Salvador precisa ser humano (veja o Catecismo Maior de Westminster, P.39). O Salvador deve ser um homem se ele tomará o lugar dos homens. Para expiar os pecadores, ele deve partilhar de nossa natureza, porém, deve ser sem pecado. Nem boi, nem cabra, nem mesmo um anjo é um substituto adequado para os homens (veja Hb 9.11-15; 2.14-16). Aquele que será nosso intercessor deve estar sujeito à nossa fraqueza e, no entanto, não cair por causa dela (Hb 2.17-18; 4.14-15).
- Essas duas naturezas devem estar em uma única pessoa (veja o Catecismo Maior de Westminster, P.40). O papel do Salvador é cumprido por, e entre, Deus e o homem (Gl 3.20; 1Tm 2.5; cf.Jo 9.33). Ele incorpora a promessa do Seu nome: Emanuel, que significa “Deus conosco” (Mt 1.23).
- O Salvador deve ser do povo que Ele irá salvar. Desde a cena do crime na Queda e durante toda a Escritura, isso tem sido uma característica da promessa do evangelho. É a semente da mulher que irá ferir a cabeça da serpente (Gn 3.15); é na semente de Abraão que todas as nações serão benditas (Gn 22.18; Gl 3.16); é no descendente de Davi que todas as promessas ficarão nítidas (Sl. 89.34-37; Is 9.6-7). É um ponto da profecia estabelecido que o Salvador deve surgir do mesmo povo que Ele irá salvar.
- O Salvador deve ser livre do juízo universal do pecado. A triste realidade é que a vida é vivida sob o controle da morte. Até o retorno de Cristo, todos os 6 bilhões de almas que estão vivas hoje vão ser sugadas para os insaciáveis túmulos. O materialismo te dirá que isso é natural, mas ele está enganado. A morte é universal, mas não é natural – é judicial. No Éden, Adão pecou e trouxe, para ele mesmo, a promessa do julgamento: “certamente morrerás” (Gn 2.17). Assim como Adão era o cabeça do povo da aliança – toda a humanidade em uma aliança de obras – o julgamento que ele recebeu foi repassado para todos seus descendentes nascidos, como os padrões dizem, por “geração ordinária”. Ele não passou (se é que podemos dizer isso tão suavemente) para nós meramente uma natureza corrompida de onde flui nossos pecados; ele também nos passou sua culpa e sua responsabilidade. Como estamos unidos com ele, nós nascemos debaixo desse julgamento: “por uma só ofensa, veio o juízo sobre todos os homens para condenação” (Rm 5.18).
Esse julgamento universal da humanidade e o fato de que o Salvador deve nascer humano é aparentemente um problema intransponível: como pode um salvador que vem da raça de Adão ser livre do juízo que recai sobre Adão – exatamente a mesma coisa da qual ele veio redimi-los? A pergunta é uma variação de uma do nosso Senhor: “Se Davi, pois, lhe chama Senhor, como é ele seu filho?” (Mt 22.45).
A solução é encontrada no nascimento virginal. Nesse evento, todas as demandas foram satisfeitas. Cristo, que é Deus, toma para si mesmo a natureza humana em uma única pessoa. Ele se tornou o descendente que iria cumprir as profecias, ainda por sua paternidade divina, ele permanece livre da culpa de Adão. Assim como Herman Bavinck disse: “A exclusão do homem na concepção de Jesus, ao mesmo tempo, teve um efeito de que Ele, como alguém não incluído na aliança das obras, permanece isento do pecado original e pode, portanto, também ser preservado em termos de natureza humana, ambos antes e depois de seu nascimento, de toda a poluição do pecado. Como sujeito, ele não era descendente de Adão, mas era o Filho do Pai, escolhido eternamente para ser o cabeça da nova aliança”. [5]
Nosso Salvador veio ao mundo para engolir a morte. Ele não veio como outro herdeiro condenado de Adão, mas como o último Adão, para tornar todas as coisas novas (1 Co 15.45; Ap 21.5). Paulo pintou o contraste em Romanos 5.17: “Se, pela ofensa de um e por meio de um só, reinou a morte, muito mais os que recebem a abundância da graça e o dom da justiça reinarão em vida por meio de um só, a saber, Jesus Cristo”.
Esse é o nosso Salvador e sua gloriosa obra, para a qual Ele é unicamente qualificado. O apóstolo escreve que, na plenitude dos tempos, Deus enviou Seu Filho, nascido de uma mulher, para que Ele pudesse nos redimir (Gl 4.4-5). Isso não é sentimentalismo. Isso não é tradição. Essa é nossa vida: “Porque, assim como, em Adão, todos morrem, assim também todos serão vivificados em Cristo” (1Co 15.22). Nós devemos nos apegar a Ele e a toda a verdade que torna-O o que Ele é.
[1] Los Angeles Times, Novembro 25, 2006.
[2] Benjamin Breckinridge Warfield, “The Supernatural Birth of Jesus,” em “The Works of Benjamin B. Warfield”, vol. 3, p. 455.
[3] James Orr, The Virgin Birth of Christ, 197-201.
[4] Henry Emerson Fosdick, “Shall the Fundamentalists Win?” em “A Chorus of Witnesses”, ed. por Thomas G. Long e Cornelius Plantinga, p. 248 (ênfase adicionada).
[5] Herman Bavinck, Reformed Dogmatics: Sin and Salvation in Christ, p. 294.