“Se não comer, não posso viver. E se não viver, não posso comer”, disse certa vez o célebre Chaves do Oito. Não é necessário falar do quão importantes (para não dizer, necessárias) as refeições são para nossa sociedade. Sentar-se à mesa ou fazer um lanchinho rápido são parte da nossa rotina. Comentar uma comida boa é um excelente assunto em uma conversa. Dividir um alimento pode ser um prazer – ou um fardo. E dizem que casamentos foram feitos (e desfeitos) na cozinha.
A parábola do filho pródigo é contada como resposta à acusação dos fariseus de que Jesus comia com pecadores. Sabe-se que, nos tempos de Cristo, assentar-se à mesa com alguém significava mais que um dividir um lanche. Significava colocar-se em igualdade, aceitar essa pessoa em seu meio. Daí o escândalo dos religiosos da época de Jesus. “Fazer uma refeição era fazer teologia”, resume Conrad Gempf.
Uma coisa que raramente levamos em consideração nessa história toda é como a situação do filho mais novo se reflete nas refeições em que ele está envolvido. E essa dieta do pródigo, por sua vez, pode refletir a situação do nosso coração. “O que alguém pode (e escolhe) servir expressa sua própria posição e ajuda a definir sua relação com os outros. O que é oferecido para você, o convidado, é uma medida de sua situação aos olhos da sociedade e do seu anfitrião”, nos diz Richard I. Pervo. E é isso que observaremos aqui.
Servindo a si mesmo
Jesus não fala dos hábitos alimentares do filho mais novo enquanto ele estava “vivendo dissolutamente” (Lc 15.13). Porém, é razoável que aceitemos que provavelmente ele usou boa parte do seu dinheiro com bebida e comida, talvez chamando amigos para unir-se a ele, talvez oferecendo jantares às prostitutas. Viver dissolutamente geralmente envolve o mau uso de dons como a alimentação e o sexo. Ainda que isso seja apenas especulação, algo é certo – no mínimo, o Pródigo gastou uma parte de seus bens satisfazendo suas necessidades básicas de comida e bebida.
Não somos diferente do filho mais novo. Nossa vida é toda sustentada por Deus. Ele nos entrega não apenas tudo o que precisamos para viver, mas também incontáveis bênçãos e dons. Porém, nosso coração pecaminoso tende a seguir o caminho do pródigo e considerar a herança mais valiosa que o Pai. Corrompemos os bens que o Senhor nos entrega e os utilizamos para alcançar nossos objetivos egoístas: comer e beber demais, conquistar inúmeros parceiros sexuais e “aproveitar” tudo o que a vida parece oferecer. O nome disso é ingratidão, por não se lembrar de quem acabou pagando sua viagem à terra longínqua (v.13). O nome disso é idolatria, pois o Doador é menos amado que os dons.
A palavra é dura, mas é preferível admitir que esse é nosso coração. Que terrível é perceber que mesmo quando estou pecando, só posso fazer isso porque Deus me garante o ar nos pulmões, o batimento do coração e a eletricidade dos neurônios. “Deus faz chover sobre justos e injustos”, diz Jesus (Mateus 5.45). É assustador pensar que, em certo sentido, o pai do pródigo bancou as festas que seu filho promoveu – não porque ele as aprovava, mas porque ele era provedor.
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Servindo aos porcos
Porém, Deus tem suas maneiras de nos chamar a atenção para o fato de que ele é o doador. Na história do pródigo, isso está relacionado também à alimentação. Jesus nos diz que “houve naquela terra uma grande fome” (v.14). É nesses momentos de falta que nos lembramos de onde veio o que temos. É quando caímos em si e percebemos que estamos, na verdade, apascentando porcos e desejando suas bolotas.
Em tempos de necessidades, não levamos em consideração a qualidade do que chega ao nosso estômago. Ouvimos relatos de homens famintos que tornaram-se canibais após um desastre aéreo, de náufragos que vivem de água salgada e peixe cru por semanas e de pessoas que tiveram de alimentar-se de seus próprios excrementos. A fome precisava ser satisfeita. Eles queriam viver. Se fosse possível, escolheriam outra coisa, mas era necessário comer algo.
Receio que essa seja uma figura da vida humana. Nascemos com um desejo imenso de satisfação, temos em nós um buraco no estômago, queremos viver a qualquer custo. E, para isso, aceitaremos o que aparecer primeiro. Alguns pratos parecem melhores (festas, amigos, romance, espiritualidade), enquanto outros destroem nossa vida de maneira mais rápida (drogas, promiscuidade, glutonaria). Mas, no fim das contas, eles são apenas coisas finitas tentando tapar um espaço infinito. Há fome na terra, e estou desejando comida de porcos.
O apóstolo Paulo tinha do que se orgulhar. Era respeitado tanto na sociedade judaica (por sua religiosidade) quanto na sociedade romana (pelo status de sua cidadania). Ele estudou com os maiores mestres de seu tempo, nos maiores centros da cultura. Provavelmente, tinha as melhores companhias e uma reputação invejável. Entretanto, ele diz que agora enxergava tudo como esterco (Filipenses 3.8). Por quê? Por que ele havia conhecido um cardápio superior.
Servido pelo Pai
O filho volta para casa e é o estômago (não a aceitação do pai) que serve como principal argumento – “quantos trabalhadores de meu pai têm abundância de pão, e eu aqui pereço de fome!” (v.18). O pródigo queria trabalhar como um dos servos, merecer seu prato de comida. Ele gostaria de servir ao seu pai.
Mas esse pai, figura do Deus que “não é servido por mãos humanas… pois é ele quem dá a todos vida, respiração e todas as coisas” (At 17.25), não permite que o moço o sirva para poder comer. Pelo contrário, o filho é recebido com uma festa, em que o bezerro cevado (provavelmente o anima mais caro da fazenda, guardado para ocasiões extremamente especiais por seu valor e sabor) é morto para que todos “comam e alegrem-se” (Lc 15.23). O pródigo não trouxe nada em suas mãos além de fome e desespero, mas é servido por aquele que tem poder, riquezas e autoridade.
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A história, porém, não acaba aqui, mas termina com alguém novamente usando a comida como referência. O filho mais velho, figura dos fariseus e legalistas, se ira pelo tratamento farto dado ao irmão. Ele lembra que trabalhou a vida inteira na fazenda e jamais recebeu sequer um cabrito como recompensa ou prova de gratidão. Ele queria servir ao pai.
Alguns detalhes interessantes: o irmão mais velho pede um prêmio bem mais modesto, talvez para mostrar sua “humildade”, enfatizar o desperdício do pai ou os dois. A resposta de bondoso homem mostra a tolice daquele que deseja comprar pequenos favores de Deus: “meu filho, tudo meu é teu” (v.31). O filho mais velho podia até se considerar digno de um cabrito, mas o pai estava aberto a lhe bancar muito mais que isso.
Recusando o novilho e invejando os porcos
O Evangelho é escandaloso porque nos ensina que não estamos por aqui trabalhando para ganhar pequenos prêmios, mas que tudo que é de Deus é nosso em Cristo. Por muito tempo, não cri naquela estranha passagem de Paulo em 1 Co 3.21,22: “todas as coisas são suas: quer Paulo ou Apolo ou Cefas, ou o mundo ou a vida ou a morte ou o presente ou o futuro – todas as coisas são suas”. Imaginava que era um tipo de hipérbole ou até mesmo ironia.
Mas é verdadeiro! Em Cristo, tudo é nosso, porque somos de Cristo e Cristo é de Deus (1 Co 3.23). Porque em Cristo, somos herdeiros de todas as coisas (Rm 8.17; Hb 1.2). Porque aqueles que aproximam-se em pobreza e fraqueza herdarão a terra (Mt 5.3,5). Porque Deus, desde já, nos dá todas as coisas (At 17.25), já nos deu seu filho e nos dará muito mais (Rm 8.32).
Tullian Tchividjian nos lembra:
Por desígnio divino, o homem, como originalmente foi criado, desfrutava de uma existência ampla, caracterizada não por limites, mas pela falta deles. Sua esfera diária era inundada com um senso real de tudo. E, mais importante, esse tudo incluía, um relacionamento livre com o próprio Deus.
Não é sem motivo que o salmista canta: Como é precioso o teu amor, ó Deus! Os homens encontram refúgio à sombra das tuas asas. Eles se banqueteiam na fartura da tua casa; tu lhes dás de beber do teu rio de delícias (Sl 36.7,8).
O nosso problema, C.S. Lewis já disse, é que desejamos muito pouco. Como os teólogos da prosperidade querendo meramente seus sonhos de consumo ou os teólogos da libertação desejando apenas igualdade para todos ou alguns evangelicais buscando conforto terapêutico. Como os moralistas que só desejam um mundo sem perversão e os libertinos sonhando apenas com prazer e quebra de regras. Raramente lembram-se do mais precioso da fazenda, o Cordeiro que foi morto antes da fundação do mundo. Nunca lembram-se do que se segue: uma Nova Criação, onde não haverá choro e somente alegria na presença do Pai.
Nosso erro é nos enganarmos, pensando que a alegria e conforto estão em outro lugar. Somos como o pródigo, que vivia em um lar de abundância de amor e alegria, mas era incapaz de enxergar além de sua própria luxúria. Somos como o irmão mais velho, que vivia neste mesmo lar de amor, alegria, mas não pôde ver além da própria justiça e da mísera recompensa, um pequeno bode, em comparação à festa grandiosa que o pai oferece.
A Bíblia ordena que sejamos alegres. Que participemos da festa. E a alegria e a festa que ela menciona é aquela que encontraremos na casa do pai. Alegremo-nos e festejemos porque estávamos mortos, mas agora estamos vivos!
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PS.: Dois livros importantes para esse texto: A Meal With Jesus, de Tim Chester, e Jesus + Nothing = Everything, de Tullian Tchividjian. Ficam como sugestões :)