Como Jesus lia o Antigo Testamento?

Houve um tipo de revolução bíblico-teológica nas últimas décadas. Não uma reunião em que novas doutrinas estão sendo descobertas, mas uma em que o nosso entendimento da interpretação histórico-redentiva e cristocêntrica da Escritura está sendo refinada. Muitos membros e líderes de igrejas Reformadas e Calvinistas tem recebido esse desenvolvimento com braços abertos precisamente porque os princípios fundamentais da história da redenção já estavam espalhados pelos escritos dos puritanos, dos teólogos holandeses do Século XVII e outros teólogos pós-Reforma.

Resumindo, teologia bíblica não é nada mais, e nada menos, do que a teologia pactual histórica.  Por mais que muito do que tem sido escrito hoje já tinha sido articulado em dias passados, ainda já muito refinamento e progresso para ser alcançado dentro desse círculo particular da interpretação bíblica. Um refinamento desses aparece quando tentamos responder a questão “como Jesus lia o Antigo Testamento?”. Surpreendentemente, essa é uma pergunta que poucas vezes é levantada. Meu desejo é nos levar a pensar sobre essa questão e as implicações que ela tem para a vida cristã.

Uma das principais razões pela qual essa questão não tem sido perguntada com mais frequência é que os cristãos reformados, calvinistas e evangelicais muitas vezes tendem a pensar em Jesus como apenas Deus e diminuem sua natureza humana e sua membresia no pacto, por ser um israelita nascido sob a lei para redimir seu povo (Gálatas 4.3-5). Certamente, acreditar que Jesus é a segunda pessoa da Trindade é a base mais importante da fé cristã – e algo que só pode ser conhecido e crido pela obra graciosa e sobrenatural de Deus; entretanto, crendo que Ele também é plenamente humano, e o representante de Israel que cumpriria todo o pacto, é igualmente fundamental para a fé cristã. Ele é tanto o filho de Davi quanto o Senhor de Davi (Mateus 22.41-46). Junto com a verdade da triunidade de Deus, toda a verdade sobre a pessoa, obra e salvação de Cristo formam o epicentro do Cristianismo.

Não há quase nada tão difícil de entender quanto a pessoa de Jesus – duas naturezas distintas mas inseparáveis em uma pessoa eterna. Ainda assim, as Escrituras ensinam essa verdade, o Cristianismo histórico a afirma e passaremos toda a eternidade adorando o Cristo que é completamente Deus e completamente homem. Teólogos já gastaram muito tempo tentando explicar o que se chama de “união hipostática”. O Filho de Deus pré-existente criou uma natureza humana para si mesmo no ventre da virgem Maria, “e assim foi e continua a ser Deus e homem em duas naturezas distintas, e uma só pessoa, para sempre” (Breve Catecismo de Westminster, pergunta 21).

Em sua natureza humana, Jesus precisava “crescer em estatura e sabedoria” (Lucas 2.40; 52). Ele precisava aprender, como qualquer outro homem. Por mais que, em sua natureza divina, ele fosse onisciente, em sua natureza humana ele era finito e sujeito ao crescimento e desenvolvimento. Ele nunca deixou de ser Deus, mas decididamente abriu mão do acesso ao que era seu por direito divino para ser nosso representativo segundo Adão. Nós precisávamos de um redentor que era plenamente homem. Precisamos de um redentor que passou pelas mesmas experiências que nós, se colocasse sob a mesma lei e que fosse “tentado em todas as coisas, mas sem pecado”. Uma das coisas que ele precisava experimentar como homem – e que ele precisava fazer como mediador humano e cumpridor do pacto – era estudar e entender as Escrituras.

Há um profundo mistério aqui. Jesus nunca estudou nas escolas rabínicas como muitos dos outros líderes religiosos de Israel (João 7.15). Podemos assumir que Maria e José ensinaram as Escrituras a ele fielmente desde seus primeiros dias de vida. Sabemos que ele frequentava as sinagogas muitas vezes quando criança; e Lucas nos diz que ele ia com José e Maria ao templo todo ano. Podemos encontrá-lo lá, um garoto de 12 anos impressionando os mestres da lei com suas questões e respostas sobre as Escrituras (Lucas 2.41-52). Então, como Jesus lia o Antigo Testamento? Ele lia como um livro de moral ou de desenvolvimento pessoal? Ele dia como os fariseus e escribas liam? Longe disso! Jesus lia o Antigo Testamento como a revelação de Deus do pacto escrita para ele e sobre ele. Frequentemente temos corrido para essa última parte e corretamente nos regozijamos no fato de que o Antigo Testamento foi escrito sobre Jesus, mas falhamos ao enxergar que, ao mesmo tempo, foi escrito, primariamente, para Jesus.

Outra razão pela qual essa questão não tem sido perguntada mais frequentemente é que os reformados são corretamente zelosos com a aplicação e a experiência. A Bíblia deve fazer diferença na minha vida. As preciosas verdades contidas nela deveriam me levar a uma vida mais piedosa. Isso é ensinado em toda a Escritura (Tito 1.1 e 1 Timóteo 4.16). Alguns pensam equivocadamente que se dizemos que as Escrituras foram primariamente escritas para e sobre Jesus, isso, de alguma forma, vai levar a uma negação da minha necessidade de transformação. Na verdade, é apenas quando enxergarmos que a Bíblia foi escrita para e sobre Jesus que iremos experimentar a transformação do evangelho em nossas vidas.

Com essas coisas em mente, aqui estão 10 formas que nos ajudam a entender como Jesus via que o Antigo Testamento havia sido escrito para e sobre ele mesmo:

1. Jesus entendia que todo o Antigo Testamento revelava que ele seria o redentor sem mácula de seu povo. Sabemos disso pelo Salmo 40.7 e Hebreus 10.7. Ele seria o servo sofredor do Senhor que se submeteria a todos os comandos do Pai e que sempre fazia a vontade do Pai por seu povo.

2. Jesus entendia que todas as promessas de Deus foram feitas para ele – primariamente – como o Filho de Abraão e Filho de Davi. O apóstolo Paulo explicitamente nos diz que as promessas feitas a Abraão e à sua semente foram feitas a Cristo – antes de terem sido feita a qualquer outro (Gálatas 3.16). Ele precisava ser primeiro “o herdeiro de todas as coisas” (Hebreus 1.1-4) antes de qualquer um daqueles que tem fé nele se tornem “herdeiros de todas as coisas”. Jesus disse “sim” para as maldições prometidas do pacto (maldições que merecemos pelo nosso pecado) para alcançar as bênçãos do pacto para nós. Paulo nos diz que “as promessas de Deus, tantas têm nele o sim; porquanto também por ele é o amém para glória de Deus”. Isso significa que Jesus lia as demandas legais da lei – com suas bênçãos e maldições prometidas – como dependentes dele se tornar maldição por nós para que pudéssemos herdar as bênçãos (Gálatas 3.10-14).

3. Jesus entendia que o Antigo Testamento falava preeminentemente de seus sofrimentos e glórias (1 Pedro 1.10-12), conforme reveladas pelo Espírito por meio dos profetas. Ele sabia que isso foi escrito em parte para carregá-lo ao longo de seu ministério. Por exemplo, o Salmo 22 só poderia ser lido experimentado pessoalmente por Jesus. Davi não foi crucificado. Davi não foi abandonado por Deus. O Espírito de Cristo revelou os sofrimentos e glórias de Cristo para prepará-lo para experimentá-los em sua experiência messiânica. Vemos esse mesmo princípio no que é dito por e sobre Cristo no Salmo 16 e no Salmo 110. Nesse sentido, podemos dizer que Jesus sabia que todo o Antigo Testamento falava a respeito de sua morte e ressurreição. Ele disse aos dois do caminho para Emaús que “importava se cumprisse tudo o que de mim está escrito na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos” e também que “está escrito que o Cristo havia de padecer e ressuscitar dentre os mortos no terceiro dia” (Lucas 24.44-46).

4. Jesus entendia que os santos do Antigo Testamento não eram – primordialmente – exemplos de retidão moral para pecadores caídos emularem, mas eram eles mesmos pecadores que olhavam para Cristo pela fé (Hebreus 11). Ele explicou isso aos fariseus quando disse a eles que “Abraão, vosso pai, alegrou-se por ver o meu dia, viu-o e regozijou-se” (João 8.56-58). Adicionalmente, ele explicou que Davi, Salomão e Jonas existiram para apontar para ele (Mateus 12).

5. Jesus entendia que todos os tipos, sombras e símbolos do Antigo Testamento apontavam para algum aspecto de sua obra redentiva ou para os benefícios dela. Sabemos disso porque ele apontou para a escada de Jacó, a serpente no cajado e a água da rocha (João 1, 3 e 7) como exemplos desse princípio.

6. Jesus entendia que todas as profecias eram sobre ele. Vemos isso em seu apelo persistente à promessas messiânicas do Antigo Testamento como formas de verificar quem ele é (Zacarias 13.7 em Mateus 26.31 e Zacarias 9.9 em Mateus 21.5).

7. Jesus entendia de que ele era o verdadeiro Israel, que veio para recapitular a história de Israel para a redenção de seu povo. Sabemos isso da citação de Oséias 1.1 por Mateus em 2.15; mas também vemos isso quando Jesus citou o livro de Deuteronômio quando foi tentado pelo diabo no deserto (Lucas 4). Jesus usou a Escritura que foi dada a Israel no deserto, onde foram tentados. Ele prevaleceu onde eles falharam. Ele é o verdadeiro Israel. Ele foi ao Egito, saiu do Egito, atravessou as águas, foi ao deserto, subiu a montanha, desceu a montanha, etc.

8. Jesus entendia que seu ministério era o de proclamar o Reino de Deus e as Boas Novas de redenção para os pecadores perdidos. Vemos isso em seu primeiro sermão em Nazaré (Lucas 4.16-30), quando ele apelou a Isaías 61.1-2: “O Espírito do SENHOR Deus está sobre mim, porque o SENHOR me ungiu para pregar boas-novas aos quebrantados, enviou-me a curar os quebrantados de coração, a proclamar libertação aos cativos e a pôr em liberdade os algemados; a apregoar o ano aceitável do SENHOR e o dia da vingança do nosso Deus…”

9. Jesus entendia que todas as festas do Antigo Testamento estavam apontando para o que ele iria alcançar na obra da redenção. Sabemos isso porque naquele primeiro sermão em Nazaré, ele fez alusão ao Ano do Jubileu e explicou que ele veio para trazer a realidade daquilo que a festa tipificava. O Ano do Jubileu acontecia uma vez a cada 50 anos – uma vez na vida, em geral (Salmo 90.10). Dívidas eram perdoadas e a herança era restaurada. Jesus faz exatamente isso espiritualmente por seu povo por meio de sua morte e ressurreição.

10. Jesus entendia que o casamento foi ordenado na criação para que ele tivesse uma noiva espiritual na igreja, a quem ele redimiria. Ele repetidamente se referia a si mesmo como “o Noivo” (Mateus 9.15 e 25.1-10).

Enquanto muito poderia e deveria ser considerado a respeito desse assunto, entender que Jesus lia o Antigo Testamento como sido escrito para e sobre ele deveria criar em nós uma apreciação maior do caminho que nosso Salvador percorreu para nos redimir. Deveria nos ajudar a fixarmos os olhos mais firmemente nAquele que é o autor e consumador da nossa fé. Deveria nos motivar a buscá-lo com mais fervor. Deveria nos encorajar a confiar nele como nosso redentor mais plenamente. Deveria nos ajudar a entender que toda a vida e piedade são encontradas nele e apenas nele. Deveria produzir em nós clamores de gratidão e cantos de adoração pela sabedoria amorosa de nosso Deus ao revelar seu pacto para o cumpridor desse pacto em nosso favor.