Confortando pais enlutados

Qual conforto podemos oferecer a pais que perdem seus filhos durante a infância? E qual a real tragédia do aborto?

Confissões reformadas abordaram o tema, Charles Spurgeon falou sobre a questão, B.B. Warfield também. Muitos de nós temos uma visão do que acontece com as crianças que morrem durante a infância ou bebês que são impiedosamente mortos no útero de suas mães. Entretanto, ao longo dos séculos, não há unanimidade clara entre os teólogos cristãos.

Pregando em 2 Reis 4.26, Spurgeon fez o seguinte comentário:

“Para os calvinistas modernos, não conheço nenhuma exceção, nós temos esperança e cremos que todas as crianças que morrem são eleitas”.

Talvez.

Parte da exegese e da teologia usadas para defender a ideia de que todas as crianças mortas são salvas nem sempre soa como algo bíblico. Além disso, um certo tipo de sentimentalismo pode entrar em nossos pensamentos, mas que não está firmado na Palavra de Deus e em seu caráter.

A doutrina reformada do pecado original, a qual inclui a imputação da culpa, essencialmente significa que não existe nenhuma criança inocente aos olhos de Deus. Todas são culpadas e corruptas perante Deus, na concepção, por causa do pecado original (Romanos 5.12 em diante; Jó 14.4; 15.14; Salmo 51.5). As pessoas vão para o inferno não somente pelo que fizeram, mas pelo o que são: pecadores que não foram cobertos pelo sangue de Jesus. A sua identidade permanece “em Adão” (quem são) e elas agiram conforme essa identidade (o que fizeram). Por causa do pecado original, e tudo o que ele significa, não há uma “idade da responsabilidade”. Nós perdemos o cerne da questão quando perguntamos: “quando o primeiro pecado da criança é considerado, ou quando ela é responsabilizada por ele?” (E é por isso que fazer referência a Romanos 1.20 não resolve muita coisa nesse debate).

Além disso, muitos apelam para a bondade/amor de Deus como a razão chefe pela qual todas as crianças devem ir para o céu. Mas essa verdade sobre a natureza de Deus não pode ser transformada em um pano quente com o qual podemos fazer o que quisermos para ficarmos confortáveis. Já usaram argumentos similares para o universalismo, aniquilacionismo e união homossexual. Um Deus amoroso, prossegue o argumento, nunca faria isso ou nunca desaprovaria aquilo. Pense sobre esse argumento e então leia sobre o dilúvio nos tempos de Noé e o que isso causou para muitas das crianças que foram tragadas e afogadas pelas águas do julgamento.

Independentemente se estamos confortáveis com essa verdade ou não, a Bíblia distingue claramente entre as crianças dos crentes e dos não crentes, tanto no Antigo como no Novo Testamento. Os filhos dos crentes são “santos” (limpos), enquanto que os filhos dos não crentes não são “santos”, mas “impuros” (1 Cor. 7.14). O Novo Testamento continua a nos ensinar a diferença básica entre as crianças israelitas e os filhos das demais nações vizinhas no Antigo Testamento, que não eram limpos ( às vezes chamados de “cachorros”, Mateus 15.26).

Em Deuteronômio 20, Deus ordena a destruição das crianças impuras (Deuteronômio 20.16-17). Leia também Josué 6 e 1 Samuel 15. A destruição dessas crianças pagãs parece dura, até pensarmos que elas iriam crescer e, provavelmente, herdariam as “práticas abomináveis” de seus pais (veja Salmo 137.8-9; Isaías 11.16). A semente de todo pecado conhecido está presente no coração das crianças.

Alguns autores que abordaram esse tema parecem – talvez convenientemente – deixar passar ou ignorar as informações bíblicas que provam que o amor de Deus e a sua bondade não significam que ele não irá ordenar a destruição de crianças em alguns contextos. Há uma solidariedade corporativa – seja na comunidade ou na família – na Escritura que, talvez, tenha sido perdida por nós ou não tenha sido totalmente apreciada.

Com essa mentalidade, eu não acredito que nós possamos dizer que as crianças de não crentes irão definitivamente para o inferno. Entretanto, eu não acredito, também, baseado no que fora exposto, que elas irão para o céu. Pessoalmente, eu sou agnóstico quanto a essa questão. Mas eu não acredito, diferentemente de alguns, que as evidências bíblicas nos obrigam a dizer que todas as crianças que morrerem irão para o céu.

Não obstante, nós podemos ter mais certeza quando falamos sobre as crianças dos crentes.

Os Cânones de Dort abordam esse tópico melhor, e certamente mais pastoral, que a Confissão de Fé de Westminster:

Devemos julgar a respeito da vontade de Deus com base na sua Palavra. Ela testifica que os filhos de crentes são santos, não por natureza mas em virtude da aliança da graça, na qual estão incluídos com seus pais. Por isso os pais que temem a Deus não devem ter dúvida da eleição e salvação de seus filhos, que Deus chama desta vida ainda na infância.

A base da nossa esperança não meramente a bondade de Deus, mas a bondade de Deus conforme revelada em suas promessas pactuais feitas a seu povo. Os filhos dos crentes são santos e, assim, suas identidades não estão, até onde podemos julgar, “em Adão”. Eles foram separados, com uma nova identidade (isso é, são santos). A questão diante de nós diz respeito à piedade, não nossa habilidade de conhecer infalivelmente os decretos. A Palavra de Deus nos dá base para fazer esses julgamentos, o que, como pastor, fico feliz em oferecer a pais da minha congregação que sofrem com a perda de um bebê.

Em resumo: nossa identidade (como crianças justificadas do Pai), e não nossas obras, é a base primária para onde iremos na eternidade.

O que isso tem a ver com aborto?

A grande tragédia do aborto é que ele rouba o privilégio da criança de ouvir o evangelho e ser salva desse mundo de pecados e miséria. No caso de criança de descrentes, isso é especialmente trágico. Por quê?

Uma vez que compreendemos que Deus poderia, baseado em sua natureza justa, e porque as crianças são culpadas em Adão (pecado original), mandá-las para o inferno, então nós encaramos o horror do aborto. Cristãos entendem que as eternas consequências que envolvem a vida humana. Nós temos as maiores razões para sermos contra o aborto.

Mais uma vez: não estou dizendo que Deus envia crianças de pais descrentes para o inferno. Mas estou dizendo que a Escritura não nos dá certeza de que, como alguns acham – como Spurgeon –, que todas as crianças mortas durante a infância certamente serão salvas. Essa ideia, defendida por alguns, que todas as crianças, independentemente de serem filhas de cristãos ou não cristãos, vão para o céu quando morrem durante a infância pode levar a uma espécie de “culpa feliz” (felix culpa) – um tipo de atitude que afirma que aborto é mau, mas, ao menos, o bebê vai para o céu. Entretanto, como não temos certeza, os riscos são muito altos. E, por isso, devemos mirar o fim do aborto para que possamos ter por objetivo ganhar essas crianças para Cristo.

A Confissão de Fé de Westminster diz (10.3): “As crianças eleitas que morrem na infância são regeneradas e salvas por Cristo por meio do Espírito…” – uma visão que permite dizer que todas as crianças são salvas, mas que também permite afirmar que, não necessariamente, todos os bebês serão salvos. Certamente, os teólogos de Westminster, com base no diretório público de adoração, o qual chama as crianças dos crentes de “cristãos”, estariam de acordo com os Cânones de Dort, nesse ponto.

Pastores têm base para dar conforto real ao cristãos que têm de lidar com a tragédia de se perder um filho, especialmente na infância (veja, talvez, 2 Samuel 12.23, que envolve uma criança da aliança). Eu não tenho como fornecer o mesmo conforto a um descrente. Isso não significa que um filho de descrente não possa ser eleito. Mas que eu não tenho base pactual para confortá-los.

Aqueles que não percebem a diferença pactual entre uma criança de crentes e uma criança de não crentes precisa sustentar que não há diferença entre o filho de um muçulmano e o filho de um cristão. Esse é o porquê alguns falam de “todas as crianças” sem fazer referência entre filho de cristão e de não cristão. Em um aspecto, acho essa visão atraente por muitas razões, mas tenho de admitir que ela não possui completamente o apoio bíblico necessário.

Naturalmente, há diversas outras questões que são levantadas quando esse assunto é discutido. Ainda assim, independentemente do que defendemos, e eu acredito que existe uma importante consequência prática do que acreditamos, nós todos podemos dizer: “Não fará justiça o Juiz de toda Terra?” (Gênesis 18.25)