Leia a primeira parte desse texto aqui
Aborde o inferno apologeticamente
Também precisamos responder à suspeita popular e ao desrespeito intelectual por essa doutrina. De um lado, você pode ter leigos inteligentes em sua congregação, com convicções evangélicas, que vêm de uma influência de mestres que criaram dúvidas sobre essa doutrina bíblica. Se for o caso, algumas de suas pregações sobre o tema (sem perder de vista a questão principal ao expor o texto) serão usadas para fortalecer evangélicos que foram perturbados pelas críticas à doutrina. Isso pode exigir que você brevemente responda a algumas das críticas populares/acadêmicas/evangélicas da doutrina tradicional. Os próprios pastores de Westminster reconheceram essa necessidade. Eles diziam que o ministro “caso as pessoas estejam em risco de erro” deve “refutar solidamente e esforçar-se para satisfazer suas consciências e julgamentos contra todas as objeções”. Mais adiante, eles acrescentam: “Se alguma dúvida óbvia da Escritura, raciocínio ou concepções dos ouvintes, parece se levantar, é muito importante removê-la… respondendo aos raciocínios, e descobrindo e afastando as causas das concepções e erros”.
Por outro lado, você pode ser abençoado com a presença de incrédulos abertos e curiosos em seus cultos públicos. Alguns deles podem ter problemas grandes com a ideia de um lugar de tormento eterno. Você poderá, nessa circunstância, reconhecer a angústia existencial que muitos tiveram sobre essa doutrina e então virar o jogo (como John Piper, Tim Keller ou CS Lewis), e lembrá-los de que é nosso peculiar zeitgeist que coloca Deus em julgamento pelo inferno e questiona sua existência por causa da dor e sofrimento nesse mundo. A questão, entretanto, é que, se o universo moral descrito pela Bíblia é realidade em que realmente vivemos, então o problema real não é nossa dor, mas a nossa felicidade, não a justiça e o amor de Deus, mas experimentarmos não merecidamente isso, não o sofrimento humano, mas o pecado humano sem a imediata vingança divina, não a sentença do inferno, mas o dom da cruz.
Você precisa ler, escutar e aprender dos grandes cristãos apologistas e pregadores apologéticos de nosso tempo a maneira como eles lidam com esses (e outros) assuntos. Pesquise ideias e ângulos que você pode usar para surpreender seus ouvintes – para chamar-lhes a atenção e envolvimento. Por exemplo, uma defesa sugestiva e útil do inferno pode ser encontrada em um artigo de John Murray Macleoad no jornal The Glasgow Herald (!) [pode ser acessado aqui]. Outra apresentação poderosa e sóbria pode ser vista no livro A Faith to Live By, de Donald Macleod.
Aborde o inferno exegeticamente
Muitos de nossos ouvintes terão uma consideração alta da autoridade da Escritura, e assim, se eles forem ensinados pela Escritura sobre o que o Senhor diz sobre inferno e castigo eterno, isso será decisivo para eles. Portanto, será importante que você cuidadosamente retire do próprio texto a doutrina que deseja que eles aceitem. Além disso, enquanto você faz isso, você desejará tratar de algumas questões relacionadas que passam pelas mentes das ovelhas que estudam mais seriamente a Bíblia. O que o Antigo Testamento ensina sobre inferno, morte, julgamento e castigo? Quais são as continuidades e descontinuidades entre Antigo Testamento e Novo Testamento ao ensinar sobre esses assuntos? Como as ideias de Sheol, Hades e Gehenna se relacionam? Eles desejarão saber que tipo de esperança pela ressurreição era cultivada pelos crentes da Antiga Aliança (Derek Kidner é ótimo nisso). E, pobres coitados, se eles estiverem vagando pela obra de N.T. Wright, ficarão completamente confusos sobre a concepção primitiva dos cristãos sobre a vida após a morte! Você tem trabalho para fazer, mas se deixar o texto definir sua agenda e falar por si mesmo, as palavras de Deus não voltarão vazias.
Aborde o inferno cristologicamente
Talvez o mais importante, existe uma necessidade urgente de que abordemos essa verdade cristologicamente, isto é, em uma relação consciente com a doutrina de Cristo. Quero dizer isso de pelo menos duas maneiras. Primeiro, precisamos enfatizar que o inferno é uma doutrina inescapavelmente relacionada a Cristo. Aprendemos sobre ela pelos lábios de Jesus. Ninguém é mais responsável por lançar as linhas centrais dessa doutrina tão desprezada em nossos dias que o nosso Senhor. Ele abordou o assunto mais que qualquer outro, e deu mais a atenção a ela em seu ministério que a muitos outros temas importantes. E não é surpresa que ele falasse disso tão frequentemente, com solenidade mortal. Ele o criou e somente ele da humanidade redimida experimentou os tormentos do inferno. Portanto, em última análise, cremos no inferno porque cremos – e acreditamos – em Jesus. Isso significa que se alguém quiser divergir do inferno, sua discussão não está contra o pregador, mas contra o Criador-Salvador. Essa não é uma luta que alguém deseja entrar.
Segundo, nossa pregação sobre o inferno deve ser cristológica no sentido de que deve ser feita dentro do contexto da cruz. Para muitos, o inferno surge como um problema de teodiceia. Logo que alguém sugere que o problema do mal coloca em questão sobre a bondade ou existência do Deus soberano, em seguida o inferno é lançado como o último trunfo contra o amor, a misericórdia e a graça do Deus cristão. Como podemos crer, perguntam, em um Deus que envia pessoas para o inferno? Bem, a resposta é: olhe para a cruz e eu te dou um problema maior para pensar. O desamparo, o abandono e a renúncia de Cristo na cruz é um problema filosófico-teológico muito maior que o inferno.
Por que eu digo isso? Porque na cruz, a ira de Deus está sendo derramada em um lugar, na única pessoa, em todo o universo que tinha o direito de não recebê-la – o encarnado e impecavelmente perfeito Filho de Deus. É uma injustiça muito maior que poderíamos conceber. Nada jamais foi tão desmerecido. O inferno, por outro lado, foi merecido. Faz perfeito sentido. Sua lógica é inexorável. Aqueles que abandonaram Deus nessa vida, o abandonarão na próxima. Justiça absoluta, mesmo que em certo sentido autoimposta e escolhida inadvertidamente. O inferno é o quid pro quo definitivo – a recompensa eterna de todos os pelagianos¹.
Mas na cruz é que há um labirinto. Quando contemplamos adequadamente a cruz, temos de levar em conta, não apenas sua brutalidade, mas também sua injustiça, à luz da perfeição moral completa do Filho e sua suprema preciosidade para o Pai. Não existia base intrínseca para um juízo contra ele. Considerada nesse contexto, a cruz parece contradizer e questionar a própria justiça de Deus. Ainda assim, a mensagem central do Evangelho de Paulo é que esse plano, que parece, à primeira vista, baratear a justiça de Deus, era verdadeiramente a estratégia divina para estabelecer a justiça de Deus na dispensação de sua graça. Como isso pode acontecer?
Porque embora não exista base intrínseca para a condenação de Cristo, ainda assim havia uma base extrínseca localizada em sua união federal com seu povo. Por causa de sua relação pactual, em sua substituição vicária, ele tornou-se fraco e vulnerável ao pecado e punição de todas as suas ovelhas. Portanto, a cruz é inocentada de injustiça e, de fato, é o instrumento divino para revelar “a justiça de Deus” (Romanos 1.17).
Os enigmas do inferno, tão profundos quanto sejam, não podem competir com o enigma da graça. O inferno é o temor subconsciente da humanidade porque inerentemente sabemos que o merecemos, mesmo que ranjamos os dentes sobre isso (como os habitantes do gehenna). Mas a graça, a graça é contraintuitiva. É a coisa mais difícil de se crer no mundo.
Agora estamos perfeitamente familiarizados com o conselho de Spurgeon de que pegamos mais moscas com mel que com vinagre. Mas isso não deveria ser usado como uma justificação para ignorar a verdade do inferno em nossa pregação. Spurgeon certamente não o faria. Não, o inferno é uma realidade que coloca o céu-pela-graça em claro relevo. Ela diz ao pecador, via revelação especial, que ele sabe, via revelação geral e pela imago Dei: um dia sua alma será exigida, haverá uma prestação de contas, a justiça de Deus será consumada e ele merecerá a condenação. Então, ao lado dessa verdade do inferno, o Evangelho vem e diz: sim, a justiça de Deus será feita – mas de uma maneira ou outra. Pode-se levantar diante do tribunal com a sua própria bondade ou vestido da bondade de Cristo. Pode-se receber o salário que merece ou receber o salário que Cristo mereceu. A diferença é final e eterna.
¹quid pro quo – adaptado no Brasil como “quiprocó”, ou confusão – tem o sentido de “toma lá, dá cá” no latim e nos países de língua inglesa.
Traduzido por Josaías Jr | iPródigo | original aqui