Lamento: birra autocomplacente ou queixas piedosas?

Quem gosta de um reclamão? Reclamões são desconcertantes. Jantares de natal arruinados por laboriosas e perpétuas queixas sobre como a vida os prejudicou – o carro que enguiçou cedo demais, a faculdade em que ele deveria ter sido aprovado, a enfermeira que deveria ter feito seu trabalho melhor. Algumas horas com um reclamão são o bastante para fazer alguém desejar escrever um bilhete anônimo: “VOCÊ NÃO TEM NADA PARA AGRADECER?”.

Porém, quando eu fui diagnosticado de um câncer incurável aos 39 anos, eu abri minha Bíblia para encontrar modelos de oração, e ali estavam: queixas e reclamações de um lado e do outro. O que estava acontecendo? O que houve com o “Regozijai-vos sempre no Senhor; outra vez digo, regozijai-vos!” (Fp 4.4)? Talvez nem todos os tipos de “reclamações” sejam iguais. Afinal, o mesmo Paulo que escreveu isso aos filipenses também escreveu: “o mesmo Espírito intercede por nós com gemidos inexprimíveis” e “Sabemos que toda a criação geme e está juntamente com dores de parto até agora. E não só ela, mas nós mesmos, que temos as primícias do Espírito, também gememos em nós mesmos, esperando a adoção, a saber, a redenção do nosso corpo” (Rm 8.26, 22-3). Mas não foi apenas Paulo. Nosso Senhor Jesus chorou por Jerusalém, chorou lágrimas de sangue no jardim e, gritando na cruz, queixou-se ao seu Pai, “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”.

É claro, Jesus estava orando com o salmista quando ele proferiu esse clamor na cruz. Enquanto eu passava mais e mais tempo estudando e orando com os Salmos, percebi quão frequentemente eu tinha “pulado” seus gritos agudos de dor, seus protestos ao Senhor, suas queixas sobre inimigos. Em um cristianismo que sempre buscava ser animado, focado em ajudar-nos a descobrir e realizar nossos sonhos, eu perdi a centralidade do lamento: reclamações e protestos intensos diante do Senhor. Como um paciente de câncer cuja expectativa de vida provavelmente tinha sido diminuída em décadas, eu sentia tristeza e raiva. Mas eu deveria “trazer essas emoções para a igreja” e arriscar ser um reclamão? A oração do Salmo 102.23-24 era clara o bastante: “Abateu a minha força no caminho; abreviou os meus dias. Dizia eu: Meu Deus, não me leves no meio dos meus dias”. Aparentemente, Deus pode lidar com nossas queixas. O salmista não somente traz raiva e tristeza diante do Senhor. Ele responsabiliza Deus. “Ele abreviou os meus dias”. Ainda assim, ele também confia em Deus e em suas promessas o bastante para trazer sua queixa à presença do Senhor. O salmista confia em Deus o bastante para lançar de volta as promessas de Deus quando elas não parecem tornar-se realidade. Essa queixa não é uma birra auto-complacente no jantar de natal. Essa reclamação vem da dor e da raiva – mas, ainda mais profundamente, vem da confiança no Todo-Poderoso e suas promessas.

Nas entrelinhas do lamento do salmista está a confiança de que o Deus de Israel é Rei – YHWH é o soberano Senhor da aliança. “O SENHOR reina; tremam os povos. Ele está assentado entre os querubins; comova-se a terra!” (Sl 99.1-4). O conhecimento e o poder do Senhor soberano não são limitados como os dos seres humanos. “Não havendo ainda palavra alguma na minha língua, eis que logo, ó Senhor, tudo conheces. Tu me cercaste por detrás e por diante, e puseste sobre mim a tua mão” (Sl 139.4-5). Essas, e inúmeras outras passagens no restante das Escrituras, testificam que Deus é o único soberano Rei. É precisamente a partir da confiança de que Deus é soberano que o salmista repetidamente traz lamentos e petições ao Senhor.

Assim, os salmos de lamento não são como as murmurações dos israelitas no deserto, que demonstravam falta de fé nas promessas de Deus. Por causa da sua fé na soberania de Deus, os salmista têm altas expectativas em relação a Deus; e porque eles levam as promessas de Deus a sério, eles lamentam e protestam quando parece que Deus não está cumprindo suas promessas. Deus é soberano e Deus é bom – portanto, Deus deve ser confiado em oração. Mas Deus também deve ser “responsabilizado”, em certo sentido, quando a crise ocorrer e suas promessas parecerem não se cumprir.

Em que sentido, exatamente, o salmista “culpa” Deus em meio à crise? O salmista não “culpa” Deus no sentido de um juiz que culpa um réu ao dar o veredito e dispensar o réu do tribunal. Se o salmista já tivesse dado o veredito – que Deus é realmente infiel – ele não continuaria a oferecer sua reclamação. Pelo contrário, o salmista “culpa” Deus interrogativamente, com perguntas graves e sem resposta que se agarram à esperança nas promessas pactuais de Deus: Por que estou nessa crise se as promessas pactuais do Senhor são verdadeiras? Deus promete não abandonar seu povo (e.g. Dt 31.8) – assim, em última análise, é confiando nessa promessa que Jesus junta-se ao salmista no grito “Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?” (Sl 22.1). No contexto de comunhão pactual, o povo de Deus pode clamar a seu Senhor pactual em queixa, e mesmo em protesto, até que Deus mostre sua fidelidade segundo sua promessa pactual.

Não são apenas os salmos de lamentos, mas também os salmos de ações de graça que ousam responsabilizar Deus em meio à calamidade, mesmo quando eles continuam a confiar no poder e bondade de Deus. Antes de irromper em ações de graça, o salmista declara no Salmo 66: “Tu nos puseste na rede; afligiste os nossos lombos, Fizeste com que os homens cavalgassem sobre as nossas cabeças; passamos pelo fogo e pela água” (v. 11). Depois dessa declaração de que Deus era responsável pela aflição nos lombos, e ser pego na rede, ele oferece ações de graças porque “nos trouxeste a um lugar espaçoso” (v. 12). Da mesma forma, antes de conter o lamento no Salmo 30, o poeta simplesmente diz: “Tu encobriste o teu rosto, e fiquei perturbado” (v. 7). Todavia, como no Salmo 66, não somente a crise, mas a libertação é atribuída a Deus. “Tornaste o meu pranto em folguedo; desataste o meu pano de saco, e me cingiste de alegria, ara que a minha glória a ti cante louvores, e não se cale. Senhor, meu Deus, eu te louvarei para sempre” (Sl 30.11-12). As ações de graça do poeta são uma recordação dos poderosos feitos de libertação de Deus – libertação da “morte” e da “cova” (30.9). Ainda assim, ações de graças são dadas de uma maneira que se prostra diante do mistério ao invés de tentar sobrepujá-lo. No centro da gratidão e do lamento está a esperança em um Deus que é bom e todo-poderoso – o Senhor que é fiel a suas promessas.

O salmista queixa, mas não como um “reclamão” autocomplacente. Por um lado, o salmista não procura conter suas emoções diante de Deus; por outro lado, seu lamento também é mais do que simplesmente um “desabafo” diante de Deus. Os salmistas trazem todas as suas emoções – seus seres completos – diante do Todo-Poderoso, não simplesmente a fim de “sentir-se melhor”, ou obter uma resposta intelectual para o problema do mal. O salmista oferece queixas – e ações de graça por libertação – porque ele confia na promessa pactual de Deus. O salmista traz questões em aberto, e faz apelos e petições com base em uma promessa pactual.

Deus nem sempre age da maneira que o salmista deseja. E, embora Deus seja bom, ele não está tão distante do mal de forma que ele simplesmente lamenta com o sofredor, incapaz de fazer alguma coisa sobre aquilo. Pelo contrário, o salmista responsabiliza Deus na calamidade e agradece a Deus pela libertação, tudo com base nas promessas pactuais de Deus. Deus não promete uma cura para meu câncer ou uma longa vida com uma aposentadoria confortável no final. O Deus da Escritura não é um meio para alcançarmos os nossos fins desejados. Ainda assim, o Deus da Escritura promete ser fiel ao seu povo, uma fidelidade cuja expressão é nada menos que a promessa de que seu amor por nós em Cristo é tão firme e poderoso que nem mesmo a morte pode nos separar (Rm 8.39). Deus é o Rei – pecado, corrupção e morte não terão a palavra final, mesmo se é isso que parece agora. Por enquanto, nós, juntos com o salmista, aguardamos ansiosamente nas “trevas deste século” (Ef 6.12) que o soberano Senhor aja com base em suas promessas pactuais. “Aguardo ao Senhor; a minha alma o aguarda, e espero na sua palavra. A minha alma anseia pelo Senhor, mais do que os guardas pela manhã, mais do que aqueles que guardam pela manhã” (Sl 130.5-6).