“Pensas de modo demasiadamente humano a respeito de Deus”

Assim escreveu Lutero para Erasmo em seu Da Vontade Cativa. Poucas, se alguma, frases de Lutero têm sido mais mal compreendidas. Regularmente, é possível ver as palavras de Lutero invocadas para enfatizar a transcendência, a alteridade, de Deus. Lutero criticou Erasmo, assume-se, por falhar em compreender a liberdade e soberania de Deus, particularmente quando esses atributos encontram sua expressão no exercício da graça de Deus.

Certamente, Lutero reservou muitas críticas a Erasmo por ele falhar em apreciar a soberana e livre prerrogativa de Deus de discriminar pecadores eleitos e réprobos. Mas, dificilmente esse era seu argumento quando ele sugeriu que os pensamentos de Erasmo “a respeito de Deus” eram “demasiadamente humanos”. Essas palavras em particular foram desencadeadas pela sugestão de Erasmo de que não há proveito em discutir algumas questões teológicas diante das massas. Erasmo ilustrou seu ponto ao lembrar a questão escolástica sobre se Deus está presente no buraco de um escaravelho. Não se agradando particularmente da ideia de ele mesmo ocupar o antro de um besouro, Erasmo teve dificuldade em ver qualquer relevância ou fruto na especulação teológica sobre os lugares em que Deus está.

Lutero, meio que ironicamente e fora de suas características, vem ao resgate dos teólogos escolásticos nesse ponto, mostrando que Deus está bastante envolvido na atividade de ocupar territórios deveras desgradáveis. De fato, Deus ocupou o lugar mais improvável e desagradável de todos – o útero humano – a fim de alcançar a salvação de seu povo. Os teólogos medievais que perguntavam se Deus estava presente no buraco do besouro, então, não estavam necessariamente fora dos limites teológicos em seus questionamentos.

Quando Lutero recriminou Erasmo por pensar “de modo demasiadamente humano” sobre Deus, ele estava lhe criticando por deixar de compreender a imanência de Deus, por falhar em perceber a que ponto Deus foi na encarnação a fim de resgatar seu povo.

Aqui estão as palavras de Lutero por completo:

“Também não tratas corretamente… e condenas como inútil que se debata perante a multidão [a proposição de] que Deus está num antro ou numa cloaca, pois pensas de modo demasiadamente humano a respeito de Deus. Reconheço que há certos pregadores levianos que, sem nenhuma reverência ou piedade, por desejo de glória, ou por amor a qualquer novidade, ou por dificuldade de guardar silêncio, garrulam e proferem nugacidades de modo extremamente leviano. Estes, porém, não agradam nem a Deus nem às pessoas, ainda que afirme que Deus está no mais alto dos céus. Onde, todavia, há pregadores sérios e piedosos, que ensinam com palavras modestas, puras e sensatas, estes falam tais coisas diante da multidão sem perigo, mais ainda: com grande proveito. Acaso não devemos todos ensinar que o Filho de Deus esteve no útero da Virgem e nasceu de seu ventre? Ora, qual é a diferença entre o ventre humano e qualquer outro lugar imundo? E quem não poderia descrever isso de modo repugnante e torpe? Entretanto, é com razão que condenamos tais pessoas, visto que abundam palavras puras com as quais podemos falar dessa necessidade também com decoro e graça. Do mesmo modo, o corpo do próprio Cristo foi humano como o nosso, e que há de mais repugnante do que este? Porventura é por esta razão que deixaremos de dizer que Deus habitou corporalmente nele, como diz Paulo (Cl 2.9)? O que é mais repugnante do que a morte? O que é mais horrível do que o inferno? Não obstante, o profeta se gloria de que Deus está com ele na morte e o assiste no inferno (Sl 139.8). Por conseguinte, um coração piedoso não receia ouvir que Deus está na morte ou no inferno, e ambas as coisas são mais horríveis e repugnantes do que um antro ou uma cloaca”.

A repreensão de Lutero a Erasmo é um alerta a todos nós. Não caiamos na armadilha de pensar “de modo demasiadamente humano” os pensamento de Deus, de falhar, em outras palavras, em apreciar que Deus percorre distâncias muito maiores – ou, melhor, profundas – que nós, criaturas, poderíamos sequer antecipar ou sonhar para estar conosco, para cumprir nossa salvação e restaurar-nos à eterna comunhão com seu ser Triúno.