A decisão do juiz Vaughn Walker de derrubar a Proposição 8* levanta uma série de questões que vão muito além do caso da Califórnia. Especialmente preocupante é a visão de Walker sobre gênero. Sua decisão traz a afirmação radical de que “o gênero não constitui uma parte essencial do casamento.”
Essa declaração está sendo largamente citada com grande espanto por causa de seu enorme exagero. No entanto, revela um elemento fundamental na visão liberal da sexualidade humana.
A ética liberal é baseada em uma visão fragmentada do ser humano que coloca a biologia contra a escolha. Suas raízes remontam ao filósofo francês René Descartes, que propôs que o Corpo é uma máquina controlada por uma coisa, completamente separada, chamada Mente. O fantasma na máquina.
Como o filósofo Daniel Dennett explica, “desde Descartes, no século 17, tivemos uma visão do Ser como uma espécie de fantasma imaterial que detém e controla um corpo da mesma forma que você possui e controla o seu carro.” Em outras palavras, o corpo já não é considerado como uma parte integral da pessoa humana, mas como algo sub-pessoal, funcionando estritamente em termos biológicos e químicos – quase como uma propriedade que pode ser usada para servir aos desejos do seu próprio ser.
Esta é a filosofia que está subjacente aos argumentos a favor do “casamento” entre pessoas do mesmo sexo. A suposição é que o nosso corpo não tem nada a ver com nossa identidade como pessoas. E que, portanto, a anatomia pode ser substituída por uma mera escolha auto-expressiva.
A difamação da anatomia física não pára no “casamento” entre pessoas do mesmo sexo. A discussão mais quente atualmente é que há um movimento que rejeita a distinção entre os próprios conceitos de “masculino” e “feminino” como se fosse uma mera construção social – e opressiva.
Segundo o New York Times, várias universidades já oferecem banheiros, apartamentos e até equipes esportivas exclusivas para estudantes transexuais, que não se identificam como homem ou mulher. Algumas escolas já não exigem que os alunos declarem o sexo masculino ou feminino nos formulários. Em vez disso, eles são convidados a “descrever sua história de identidade de gênero”. Em outras palavras: quais gêneros você tem sido no decurso de sua vida?
Gênero tornou-se um conceito pós-moderno – fluido, flutuante, completamente separado da anatomia física.
Vários estados americanos já aprovaram leis obrigando escolas e locais de trabalho a acomodarem transgêneros. Simpatizantes estão pressionando fortemente para torná-las leis de nível nacional. Em 2007, a Califórnia aprovou uma lei exigindo que as escolas permitissem ao estudante transgênero usar o banheiro ou o vestiário de seu gênero preferido, independentemente do seu sexo anatômico. A nova lei redefine o sexo como algo socialmente construído entre homens e mulheres: “Gênero significa sexo, e isso inclui a identidade de gênero de uma pessoa e a aparência e o comportamento relacionados ao sexo, quer esteja, quer não, relacionado ao sexo atribuído a alguém ao nascer.”
Note-se o pressuposto de que o sexo é “atribuído” a você, como se fosse algo puramente arbitrário em vez de uma realidade anatômica. A lei está sendo usada para impor uma visão de mundo secular liberal que rejeita anatomia física como insignificante, inconseqüente e completamente irrelevante para a identidade de gênero.
Como eu mostro em ‘O Resgate de Leonardo’**, isto representa uma visão devastadoramente desrespeitosa do corpo físico. Isso aliena as pessoas de seus próprios corpos, tratando anatomia como não tendo dignidade intrínseca. Nenhuma dignidade é conferida às capacidades únicas inerentes ao ser masculino ou feminino.
Ironicamente, os cristãos são frequentemente reportados como hipócritas e puritanos devido à sua moralidade sexual “repressiva” – mas, na verdade, a cosmovisão cristã afirma realmente uma visão muito mais elevada a respeito do corpo humano do que a visão liberal, utilitarista. Ela oferece a afirmação radicalmente positiva de que o mundo material foi criado por Deus e que Deus realmente se encarnou em um corpo humano.
No mundo antigo estas alegações foram tão surpreendentes que os gnósticos a rejeitaram e tentaram transformar Jesus em um avatar, que só parecia ter um corpo humano. Eles não podiam aceitar a idéia de um Criador que se apraz com a nossa natureza material, biológica, sexual.
Elites liberais de hoje, como o juiz Walker, podem posar de libertadores iluminados, mas na verdade eles são gnósticos seculares tratando a anatomia física sem dignidade ou finalidade intrínseca. Em uma reviravolta inesperada da história, mais uma vez são os cristãos que estão defendendo uma visão holística e elevada da pessoa humana.
Notas:
*A ‘Proposição 8’ proibia o casamento entre pessoas do mesmo sexo no âmbito do estado americano da Califórnia e foi declarada inconstitucional em 4 de agosto de 2010.
** Saving Leonardo é o mais recente livro da autora deste artigo.
Traduzido por Gustavo Vilela | iPródigo – Texto original aqui.