Sobre Leões e Lamborghinis: Medindo a maldade do mundo maldito

“Quem aumenta o conhecimento, aumenta a tristeza” Eclesiastes 1.18

Nos últimos dias temos visto enorme ultraje sobre algumas notícias. Ultraje público acerca do que as notícias contam; ultraje público sobre como parte do público reage a certas notícias mas não a outras. Minha tristeza vem aumentando exponencialmente. Salomão estava certo. Quem aumenta o conhecimento, aumenta a tristeza. Eu seria bem mais feliz se não tivesse lido sites de notícias no último mês.

História Chocante número 1: Algo novo veio à tona sobre a já terrível realidade da indústria do aborto nos Estados Unidos. Alguns vídeos foram secretamente gravados e vem sendo aos poucos divulgados para mostrar o horror do que vem acontecendo nas clínicas da organização Planned Parenthood. Um primeiro vídeo caiu como uma bomba suja no playground ocidental ao mostrar uma alta funcionária da rede falando casualmente sobre a venda de pedaços diversos dos bebês mortos nos abortos. Corações estão em alta, pulmões são mais raros, tecidos musculares das pernas e assim por diante. Ela é gravada sem saber[1] e discute tal assunto enquanto saboreia sua saladinha e seu vinho. Ela discute sobre como é possível alterar um pouco a forma normal em que o aborto é realizado para priorizar a destruição da cabeça e manter os órgãos relativamente intactos. Preços são mencionados para partes diversas.

O vídeo caiu nas redes sociais e logo começou enorme campanha para que os fundos governamentais que apoiam a Planned Parenthood fossem suspensos. Grandes corporações se apressaram em negar envolvimento com a rede de clínicas. Líderes da organização começaram a tentar apagar o incêndio; deram entrevistas falando sobre como essa mulher seria um caso isolado, que a venda de material orgânico (partes de nenéns) era para manter os custos baixos, etc. Até que surgiu novo vídeo. Em que outra mulher brinca dizendo que precisa vender essa partes, deixando claro que é pra lucro sim, faz chacota e diz que deseja comprar sua Lamborghini. Eu também desejo uma, embora prefira Ferrari. Mas não se precisar vender nenéns despedaçados.

Mais vídeos seguem surgindo; mostrando os laboratórios, mostrando as partes de nenéns, partes identificáveis como mãos que nunca farão o que foram criadas para fazer… partes não identificáveis, massas rosadas do que fora um ser humano sendo formado de modo assombrosamente maravilhoso. No vídeo, curiosamente, se referem ao falecido como “neném”, como “menino”. O que de fato ele era. A reptiliana sagacidade de chamar nenéns de tecido some junto com a máscara. Cristãos em geral, bem como os lados mais conservadores da imprensa, não pararam de falar sobre isso; congressistas norte-americanos vêm sendo pressionados de forma inédita; há no ar a sensação de que temos uma oportunidade única de desmascarar a indústria do aborto.

História chocante número 2: É a de Cecil, um leão africano que foi morto numa caçada esportiva por um dentista norte-americano. Cecil era um leão conhecido por causa de programas de rastreamento que o estudavam em seus padrões. O tal dentista pagou cerca de 50 mil dólares para ilegalmente ir até a África, perseguir o leão por 40 horas, feri-lo e enfim matá-lo de dor e exaustão, retirar sua pele como troféu, cortar fora sua cabeça e poder exibir o feito em sua casa. Tudo isso com um sorriso triunfante de quem se acha muito macho. Notícias da morte de Cecil rapidamente se espalharam e o dentista começou a passar por enorme linchamento virtual; com partes da mídia falando de nada além disso, artistas indignados vindo a público e um senso geral de injustiça e revolta contra a maldade que supostamente não deveria acontecer numa sociedade pós-moderna relativista. O dentista tenta dizer que não sabia que a caçada era ilegal… como se fosse esse o problema.

Cristãos então, ao verem a reação popular à morte do leão, e à luz da pouca reação midiática[2] sobre o caso da venda de partes de nenéns, começaram a escrever indignados contra a sociedade que chora a morte de um leão, mas não chora a morte de nenéns. O princípio está certo: cada neném vale mais que cada leão; e há enorme inconsistência da parte desse mundo em chorar de raiva indignada pela morte do leão, mas não dos nenéns. Mas creio que nisso estamos perdendo enorme oportunidade apologética e evangelística. Deveríamos chorar as duas tragédias.

Parte da tarefa apologética/evangelística[3] envolve utilizar pontos de contato para apresentar a verdade de Deus. Todo ser humano em sua rebelião moral contra Deus continua sendo imagem de Deus e vivendo até certo ponto de acordo com a verdade de Deus. Ninguém é tão mal como poderia, ninguém leva completamente às ultimas consequências sua rebelião. Seria impossível viver assim. Por isso, muitas vezes, descrentes agem de maneira que concorda com princípios bíblicos. Há descrentes que pagam seus impostos, que não traem suas esposas, que devolvem a carteira achada no chão, que se indignam com caça esportiva. Nós cristãos devemos na sabedoria do Senhor aprender a utilizar esses pontos de contatos como caminhos para expor a inconsistência do mundo e apontá-los para a verdade do criador, como Paulo faz em Atos 17 em Atenas. Ao invés de meramente criticar a inconsistência dos que choram pelo leão, mas não pelo aborto; deveríamos concordar com o clamor contra a caça esportiva e a partir disso levá-los a ver que a posição cristã é a única que de fato tem base sólida para valorizar a vida em toda sua extensão. Ao simplesmente fazermos pouco caso da morte do leão, perdemos uma oportunidade excelente de mostrar aos descrentes que a indignação deles é na verdade pequena, pois a morte de Cecil não foi um crime meramente ecológico… foi um crime doxológico.

Mas, infelizmente, o entendimento dos cristãos sobre cuidado com os animais ainda é muito pagão. Esse paganismo aparece de duas formas: nos rumos estranhos de elevar os animais ao mesmo nível dos humanos, tratando-os como se fossem gente. Isso é errado, isso é paganismo. O homem é imagem de Deus conforme Gênesis nos ensina, muito superior aos bichos. Mas também é paganismo o achar que animais são meras coisas que existem para satisfazer nosso caprichos vis. Eles têm valor no que são, não apenas no que nos servem. Deus os declarou bons antes do homem ser criado. O lindíssimo Salmo 104 insiste no valor intrínseco deles e no amor do Pai por eles. O mesmo livro de Gênesis nos ensina que somos os guardiões protetores dessa criação. Vale lembrar que foi por nosso intermédio que o pecado e a morte entraram no mundo. Não foram as orcas, nem os orangotangos, nem os papagaios que pecaram. Fomos nós. Nós é que iniciamos a rebelião contra o criador e eles todos sofrem por causa disso[4], com uma terra quebrada pelo pecado. George Whitefield, grande pregador calvinista, certa vez disse: “Sabe por que é que animais selvagens tem medo de ti, rosnam e rugem contra ti? Pois eles sabem que és inimigo do criador deles.” Whitefield está certo. Quem está contra Deus nesse planeta somos nós, os que nascem em pecado. Não são os bichos. E eles sofrem em angústia por causa de nosso pecado e rebelião, eles aguardam a redenção sofrendo como que em dores de parto (Romanos 8).

Mas Deus não nos deu domínio sobre os animais? Sim. Para sermos os governantes benevolentes desse mundo; cuidando como Deus cuida. Podemos sim utilizar animais para alimentação e outros fins como vestimentas. Mas isso significa que podemos fazer isso de maneira descuidada? Não. Atos 15, o concílio de Jerusalém, fala acerca da autorização aos gentios de comerem os animais (lembra da visão de Pedro?). Mas proíbe que os gentios comam da carne de animais sufocados e do sangue. A proibição não era contra picanha mal-passada. Era contra o que, então? O grande teólogo de Princeton Geerhardus Vos sugere que ao nos alimentarmos do animais, devemos fazê-lo com entendimento de quem somos e de quem eles são. Não somos uma onça que pega sua presa e a devora crua e com descaso. Somos a imagem de Deus e devemos ter respeito pelas criaturas que Deus fez. Não as devoraremos cruas; as prepararemos com cuidado e com ações de graças a Deus[5].

Deus nos colocou nesse mundo como imagem e representantes dele. Ao cuidarmos bem das coisas que ele coloca sob nossa proteção, nós o honramos. A Bíblia ensina, por exemplo, que devemos cuidar das necessidades de nossos animais; isso é o que cabe a um homem justo, enquanto os ímpios são cruéis (Provérbios 12.10). Cuidar bem de seu bicho, seja gato, cavalo ou peixe, é ordem de Deus. O terceiro mandamento é muito interessante para nos ajudar a entender isso. Deus nos diz: “Não tomarás o nome do Senhor teu Deus em vão.” Esta aí um mandamento que poucos levam a sério. Mas no que ele implica? Os catecismos de Westminster interpretam o princípio do mandamento e o aplicam a mais do que meramente respeito pelo nome de Deus em si. Perguntas 54 e 55 do Breve Catecismo de Westminter:

Pergunta 54.

Que exige o terceiro mandamento?

Resposta:

O terceiro mandamento exige o santo e reverente uso dos nomes, títulos e atributos, ordenanças, palavras e obras de Deus

Pergunta 55.

Que proíbe o terceiro mandamento?

Resposta:

O terceiro mandamento proíbe toda profanação ou abuso de quaisquer coisas por meio das quais Deus se faz conhecer.

Os teólogos de Westminster mui sabiamente perceberam que ao falar sobre a honra do nome de Deus, o SENHOR incluía nisso todas as coisas pelas quais ele se faz conhecer. Isso inclui seu nome, isso inclui sua palavra, isso inclui seu arco-íris, isso inclui toda a sua criação (Salmo 19). Utilizarmos a criação de Deus para fins perversos é quebrar o terceiro mandamento. Caçar animais para alimentação, criar animais para abate, é algo lícito biblicamente. Deus nos deu os animais por alimento. Caçar animais pela foto no instagram e a cabeça na parede é tomar o nome de Deus em vão. É fazer de nossa diversão algo maior que a vida dos animais que glorificam a Deus. Um leão não vale mais que um neném, e nem que um dentista. Mas vale mais que a diversão do dentista. É um crime doxológico. Quantos dos caçadores que andam por aí matando veados e outros animais de fato o fazem pelo alimento? Podemos comer os animais; ter prazer em matá-los é algo estranho à Nova Jerusalém.

Deus prometeu que essa criação será redimida. Que ela será renovada de forma imperecível. Se até muitos dos culpados poderão morar lá, quanto mais os que não tiveram culpa. E nós que já somos redimidos devemos lutar pelo bem dos que estão debaixo de nossa proteção. Não precisamos escolher qual dos dois males merecerá nossa fúria. Denunciar a morte de Cecil não deve ser antitético a falar contra o assassinato de incontáveis meninos e meninas que tem seus pedacinhos vendidos por aí pra se tornarem carros esportivos italianos. Podemos chorar de raiva pelas duas coisas e perder o sono por causa das rachaduras deste planeta. O cheiro de enxofre que sobe das fissuras morais desse mundo está me impedindo de dormir.

Salomão estava certo, como sempre. Hoje completo 37 anos. Passei por cerca de 12 desses sem muito conhecimento do tamanho da maldade humana. Mas desde então, venho aprendendo sobre a maldade externa a mim e a maldade interna de meu coração e não gosto nem um pouco do que ando vendo. Nessa semana aprendi muito mais do que gostaria de saber, e não sei se aguento mais 37 nesse ritmo. Mais fácil seria calejar o coração, mas não quero fazer isso; este coração já foi duro de pedra e hoje precisa é ficar cada vez mais mole. Quem nos livrará do corpo dessa morte?

Minha filha tem dois anos. É difícil olhar para a mãozinha dela e não pensar na mãozinha que vi no vídeo. Ela anda com medo de algumas coisas que não precisa ter medo, como de barulho de chuva. Mas vejo que logo ela vai começar a ter medo de monstros e temo pelo dia em que ela vai me perguntar se existem monstros. Existem sim, minha filha. Não sei como te dizer. Mas existem monstros inúmeros andando sobre a terra, destruindo o que Deus fez, do mais ao menos precioso. Chamado a imagem de Deus de tecido e achando mais bonitos leões mortos na parede que vivos nas savanas. Monstros que ignoram o mal que acontece ao redor deles. Maldito seja o dentista que matou Cecil. Maldito sejam os assassinos e contrabandistas da Planned Parenthood que mataram a imagem de Deus. Malditos sejamos nós que ouvimos e nos calamos, que vemos e não agimos, que pecamos de inúmeras maneiras. Maldita seja essa terra. Que ela chegue ao fim. Vem Senhor Jesus[6]. Aumentar a tristeza sobre o mundo tem a vantagem de nos fazer ver claramente que, se não for por intervenção externa, não temos nenhuma esperança. Que se não for por um herói limpo de nossa sujeira, matando o dragão e resgatando sua noiva, nada vai sobrar.

Precisamos de um novo mundo onde habite justiça. Deus se importa com os leões. Ele disse isso. Deus se importa com crianças. Ele insiste nisso. Em Isaías 11 ele fala sobre o reinado do cordeiro, sobre seu santo monte onde não haverá mais dano. Onde leão e animal cevado andarão juntos guiados por criança. Vaca e ursa pastarão juntas, crianças de peito brincando com áspides. Um mundo novo onde leões não precisarão ter medo de dentistas. Um mundo novo onde crianças não precisarão ter medo de instrumentos cortantes e suas mãozinhas crescerão ao ponto de fazer carinho em jubas.

 

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[1] Chega a ser hilária a indignação de alguns com a suposta imoralidade de uma gravação sem conhecimento. Como se esse fosse o problema real.

[2] Grandes veículos norte-americanos sequer mencionam o caso da Planned Parenthood, ou o fazem de maneira quase apologética à organização.

[3] São dois lados da mesma moeda: a defesa da fé e a apresentação da fé.

[4] Orcas vivendo em cativeiros e tendo suas vidas drasticamente reduzidas, orangotangas vivendo acorrentadas como escravas sexuais, papagaios sendo transportados imobilizados em garrafas pet escondidos como mercadoria. Os exemplos são infinitos e infinitamente tristes. Salomão avisou pra não ler esse artigo.

[5] Isso deve incluir lutar por formas de abate que sejam o menos cruéis possíveis (ainda que isso encareça o produto). E considerar seriamente se deveríamos comer certas coisas que envolvem terrível sofrimento para os animais. Sugiro ler o ensaio de David Foster Wallace chamado “Pense na Lagosta” [parte do livro “Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo”, ed. Cia das Letras], em que ele discute a ética de cozinhar vivos esses animais para nosso prazer gastronômico.

[6] Ao de coração entristecido, recomendo o hino “All Things New (Todas as coisas Novas)”, letra de Horatius Bonar com música de Red Mountain Music. https://www.youtube.com/watch?v=Ukej-X-ssIo 1. Venha Senhor e não demore. Traga o dia tão aguardado. Oh por que esses anos, esperando aqui, essas eras de demora? 2. Venha pois teus santos esperam, diariamente sobem seus suspiros, o espírito e a noiva dizem ‘vem’, tu não ouves nosso choro? 3. Oh venha e faça todas as coisas novas, arrume essa terra arruinada, faça todas as coisas novas. 4. Venha pois a criação geme, impaciente em sua demora, desgastada pelos longos anos de dor, essas eras de demora.