Vampiros mórmons no Jardim do Éden (II)

Veja a primeira parte desse texto aqui

Os Heróicos Cullen

Enquanto a maioria dos vampiros da obra de Meyer são perigosos – como crentes sem coração e obcecados por algum tipo de sangue propiciatório que atacam não-crentes – isso não é verdade para a família Cullen, que representam os Mórmons genuínos na história. Os Volturi, por outro lado, vampiros sediados na Itália que lideram e policiam todos os outros vampiros, são uma versão da Igreja Católica Romana, a “Prostituta da Babilônia”, como diria Joseph Smith Jr e seus seguidores do século XIX.

A família Cullen, ao contrário dos outros vampiros, lutam para preservar e aperfeiçoar a humanidade que perderam ao se tornarem imortais. Em obediência à “visão” de seu Pai, Carlisle Cullen, e à “consciência” de sua família, eles se alimentam de sangue animal ao invés de sangue humano. Carlisle Cullen nasceu nos anos 1660, o mesmo período que marcou o nascimento do mormonismo histórico na Europa. Ele se tornou um vampiro ao ser mordido, mas não morto, por um vampiro que estava morrendo. Sua escolha heróica de dar as costas ao vampirismo e se alimentar de animais ao invés de comida humana deixaram seus olhos dourados, ao invés do tradicional vermelho-sangue. Por mais de dois séculos, ele aprendeu tudo o que poderia sobre medicina e, por volta de 1800, se tornou um médico, salvando vidas ao invés de destruí-las.

Edward e a família Cullen
Edward e a família Cullen

Ao colocar o nascimento da “visão” dos Cullen na mesma época e lugar que o nascimento das crenças Mórmons, e definir que Carlisle começou a praticar a medicina em 1840, a mesma época em que Joseph Smith Jr “restaura” o evangelho na América, Meyer indica o alegórico – e apologético – caráter de sua história.

Inversões e Reversões

De fato, penso que lidar com seus infortúnios e conflitos interiores de mulher mórmon em uma terra de não mórmons foi um dos grandes motivadores da escrita da Srta. Meyer. Em seus livros, ela estabelece defesas, normalmente como inversões ou reversões compensadoras, para, pelo menos, dez crenças, práticas e eventos históricos Mórmons específicos que muitos de fora enxergariam como evidências para acreditar que o Mormonismo é uma fraude e uma seita. Um exemplo de cada categoria ilustra esse argumento.

Crença: Uma das crenças centrais da genealogia Mórmon é que os índios americanos nativos são descendentes de Abraão, através dos filhos de Lehi. Mas em uma série de artigos escritos em 2002 e 2003, o antropólogo especialista em Mormonismo Thomas W. Murphy argumenta que estudos genéticos “não mostram qualquer ligação genética … entre os antigos israelitas e os povos indígenas das Américas – menos ainda dentro do período sugerido pelo Livro de Mórmon”.

A resposta da Srta. Meyer para o desafio da ciência à sua fé acontece no clímax de Amanhecer. Os Volturi chegam à clareira da montanha dos Cullen para a batalha final contra os “vegetarianos” e seus aliados, e esses últimos estão em apuros. O que os salva dos vampiros-papais é uma inversão do argumento genético contra a revelação do Livro de Mórmon: Os Cullens são salvos pela aparição ex machina de uma índia Sul-Americana cujo DNA prova que os vampiros Mórmons estão falando a verdade. Aqui, a genética não é a inimiga; é o salvador.

Prática: No livro Under the Banner of Heaven [Sob a Bandeira do Céu], de 2003, Jon Krakauer apresenta uma série de anedotas a respeito do sofrimento das noivas-criança das comunidades poligâmicas Mórmon que vivem, a maioria, acima e fora da lei no cinturão Mórmon [grupo de estados norte-americanos onde a religião Mórmon é mais popular]. Essas garotas se casam no início da adolescência com homens muito mais velhos por meio da prática conhecida como “casamento celestial”.

Quando Bella conhece Edward em Janeiro de 2005, ele já tem mais de 100 anos de idade, apesar de aparentar apenas 17. O relacionamento dos dois é apressado por Bella, por conta de seu medo de que se não se tornar uma vampira em breve, ela se tornará uma mulher velha e pouco atrativa, enquanto ele permanecerá jovem apara sempre. Edward, obviamente, diz que seu amor não tem nada a ver com idade, mas também afirma que o casamento dos dois é a condição final para transformá-la em vampira. Como a vida e seu maior objetivo dependem de seu relacionamento com Edward, o pesadelo vivo, e crime, que é o casamento mórmon que  Krakauer atribui ao Mormonismo é reformulado por Meyer como uma prática salvadora para a criança, e que o herói insiste em oferecer.

 

Memorial às vítimas do Massacre da Clareira da Montanha
Memorial às vítimas do Massacre da Clareira da Montanha

Evento Histórico: O Massacre da Clareira da Montanha de 1857, citado anteriormente, é uma atrocidade com pouco equivalentes na história dos Estados Unidos. A única defesa dos Mórmons tem sido a insistência patética de que as famílias atacadas, na verdade, provocaram o ataque, e que toda Utah estava em pânico, por pensarem que estava para ser atacados pelo Exército Americano e pelas milícias da Califórnia que se agrupavam em suas fronteiras. Meyer reflete esse apelo à perseguição religiosa como justificativa para uma defesa própria homicida em cada um dos confrontos das clareiras em seus livros. Assim, as clareiras são lugares ondeos vampiros-mórmons são os atacados, duas vezes por invasores em grande número, que eles só conseguem repelir por meio de atos heróicos ajudados por coisas como intervenções miraculosas.

Alguns Pontos Críticos

Mesmo assim, apesar de toda a inversão apologética dos argumentos que os não-Mórmons levantaram contra sua fé, a Srta. Meyer também incorpora críticas substanciais à sua igreja na história de sua obra. O mais óbvio é que, ao descrever a Santa Família Celestial, os Cullen, como vampiros, sejam lá quais forem seus princípios sobre matar humanos, ela parece aceitar grande parte das afirmações de Krakauer de que os Mórmons são, por definição, violentos, perigosos e desrespeitosos com os que são diferentes deles.

Crepúsculo é essencialmente uma alegoria à conclusão da busca de um “gentio” pela vida e fé dos Santos dos Últimos Dias. Bella é, assim como a Srta Meyer, uma mulher americana contemporânea, que luta contra a misoginia e super-proteção paternalistas de Edward. A mente de Bella é a única do livro que não está aberta a Edward, o que representa tanto o seu temor reverencial a ele como Deus ou o profeta quanto sua resistência a se submeter totalmente. Apesar de ser devotada e estar apaixonada por ele, ela acaba ecoando algumas notas, por toda a série, que refletem algo próximo ao feminismo.

A vida de Bella termina feliz para sempre, mas a de outra personagem, Leah Clearwater, a solitária lobisomen fêmea da história, se levanta como um alerta à isolação e vazio que uma mulher inteligente e capaz experimenta nessa comunidade, se não estiver ligada a um homem.

Joseph Smith, criador do Mormonismo
Joseph Smith, criador do Mormonismo

Meyer também alfineta o próprio Joseph Smith Jr. algumas vezes. Principalmente com a história de Rosalie Hale, uma linda mulher que Carlisle Cullen tranformou em vampira em seu leito de morte em 1933, esperando que ela se tornasse um bom partido para seu “filho” Edward. Na vida real, “Hale” era o nome de solteira da primeira esposa de Smith, Emma, que não aceitava o “princípio” da poligamia proposto pelo profeta.

Na história, Rosalie é a linda filha de uma proeminente família de Rochester, Nova York, que se torna noiva do melhor partido da cidade, o rico e esbanjador Royce King II. A cidade e o nome do rapaz se refletem muito claramente no profeta Mórmon, já que o mormonismo americano nasceu em Rochester, o II (segundo) é um equivalente a “Jr”, e como roi é “rei” em francês, “Royce King” seria um homem coroado duas vezes. Smith foi declarado rei duas vezes, primeiro em 1843, e depois “Rei do Mundo”, em 1844. Rosalie não se casa com Royce por ter sido estuprada e deixada para morrer pelo bêbado Royce e seus amigos (mais tarde, como vampira, ela se vinga de todos eles). Penso que a opinião da Srta Meyer sobre os “princípios” do profeta sobre o casamento, o tratamento dado a sua primeira esposa, e por ele ter recebido a morte que merecia, tanto na história como na ficção, estão claramente expostos na história de Rosalie – uma opinião claramente muito distante da ortodoxia SUD.

Um tom Pós-moderno

Mas se a maioria dos leitores de Meyer não são Mórmons e não compartilham dessa mesma visão, por que milhões de pessoas tem sido tão atraídas pelos livros Crepúsculo?

Uma das razões pode ser resumida pelo termo “genialidade de gênero”. Tenho escrito muito sobre como o sucesso de J. K. Rowling em sua série Harry Potter se baseia em sua habilidade de misturar dois tipos literários que, sozinhos, são batidos e repetitivos: a ficção de garotos na escola e a ficção gótica semelhante a Bram Stocker e Mary Shelley. Crepúsculo mostra um tipo semelhante de genialidade de gênero. Os tipos literários que Meyer mistura são o Rapaz-Conhece-a-Moça para jovens, e os romances góticos influenciados pelas irmãs Brönte, além dos thrillers de ação internacional.

Carlisle Cullen, interpretado por Peter Facinelli
Carlisle Cullen, interpretado por Peter Facinelli

A segunda razão vem da mistura que Meyer faz da moralidade Mórmon com a moralidade pós-moderna. Sem nenhuma surpresa, a moralidade sexual da saga Crepúsculo reflete amplamente os ensinos dos SUD sobre castidade e pureza. Edward e Bella são famosos por dormirem juntos toda noite, sem jamais “dormirem juntos”, no sentido sexual da expressão.

Mas em outros pontos, a Srta Meyer repete os mesmos mantras pós-modernos que praticamente todos os outros autores, escritores e roteiristas de nossos tempos: O bem está na diversidade, o preconceito é o maior inimigo, a meta-narrativa, ou a mitologia central, na qual você foi criado é o que te impede de ver as coisas como elas são (“Não acredite no que você pensa!”). A escolha livre e informada é o único meio de escapar desses mitos e “auto-contextualizar”. Por exemplo, os vampiros e lobisomens não são tudo aquilo que te ensinaram; os velhos mitos sobre eles são mentiras e distorções. Releve os contos de fada que te contaram e entenda que os seres que te ensinaram a temer e odiar (ou simplesmente não acreditar) são as únicas pessoas reais que existem – e você vai querer se juntar a eles.

Para um livro com muito material apologético Mórmon e alegorias espirituais, o tom pós-moderno é relativamente forte se comparado a, digamos, Harry Potter.

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