Calvin, Calvino e o Papai Noel

Um dos meus objetivos desde o início do iPródigo é escrever um texto sobre Calvin & Haroldo no dia em que a série comemora aniversário. Bem, atrasou um pouco, mas considere que esse post começou a ser digitado no dia 18 de novembro de 2013, quando a fantástica tira de Bill Watterson completa 28 anos. De qualquer forma, o que isso tem a ver com teologia?

Bem, logo lançaremos um Prodcast sobre os prazeres e a utilidade da ficção na vida do cristão, mas adianto que o nome do protagonista, Calvin, não veio por acaso. Bill Watterson batizou o seu pestinha com o nome de João Calvino, nosso querido reformador. E uma das minhas curiosidades sobre a tira envolvia justamente saber se há alguma ligação entre o menino e o teólogo de Genebra nas histórias de Watterson.

Evidentemente, a personalidade do traquinas Calvin pouco tem a ver com o sério Calvino, mas há coincidência nos temas que o pastor francês e Watterson trataram em suas obras. Não é que Calvin & Haroldo mencione diretamente a religião e a teologia. Porém, como subcriação de um homem feito à imagem de Deus sobre um mundo criado por Deus (Rm 1), muitos temas teológicos acabam sendo mencionados. Morte, vida, moralidade, autoridade, diversão e trabalho são apenas alguns dos tópicos sobre os quais Calvino e Watterson escreveram. Tem como observar a tira abaixo e não pensar em Depravação Total?

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Hoje, porém, gostaria de falar sobre um tocante momento da saga de Calvin. Ele foi publicada quase no final dos trabalhos de Watterson, no natal de 1995, a menos de uma semana da tira ser encerrada. E envolve o Papai Noel.

[Obs.: este texto é adaptação de um trecho de um trabalho acadêmico. Por isso, talvez pareça que ele gasta muito tempo definindo e explicando, ao mesmo tempo em que parece abrupto em alguns momentos. As duas coisas são verdade, mas acho que as ideias principais estão presentes.]

Bom velhinho

Na tira de Waterson, o Papai Noel tem as características tradicionais associadas a ele: um “bom velhinho”, que mora no Pólo Norte, para quem fazemos nossos pedidos de Natal, que são respondidos apenas se formos bons durante o ano. Não se sabe como o Papai Noel enxerga tudo, mas é simplesmente aceito que ele é um bom juiz de quem foi ruim ou bom. A punição dos maus é ficar sem seus presentes, enquanto os merecedores são recompensados. Existe também o fato comercial por trás da popularização de sua figura: as crianças esperam receber presentes, e quem os compram são os pais.

Com Calvin não é diferente. Ele espera a chegada do Papai Noel e faz seus pedidos todo ano. Porém, desde o primeiro ano da tira, o seu relacionamento com o bom velhinho é dos mais conturbados. Conhecido por suas travessuras e tendência a provocar os outros, o garoto sabe que dificilmente seria presenteado pelo personagem natalino. Assim, as tiras de dezembro geralmente são dedicadas a mostrar o conflito interno de Calvin entre fazer o bem ou continuar sua vida de provocador. Waterson aproveita essa época do ano para entrar nesse assunto: “com frequência uso a temporada do Natal para Calvin lutar com o bem e o mal. Ele quer ser bom, mas pelos motivos errados”.

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Para Calvino, a fonte de toda moralidade encontra-se nos decretos de seu Deus, em especial nos dez mandamentos, sendo impossível para a humanidade alcançar esse conhecimento naturalmente, embora tenha dentro de si uma consciência que lhe dá alguns valores a seguir.

E para Calvin, de onde vem nosso padrão moral? Nas tiras de Waterson, cabe ao Papai Noel o papel de juiz. Entretanto, nem ele está isento dos questionamentos de Calvin. “Quem escolheu o Papai Noel? Como sabemos se ele é imparcial? Que critério ele usa para determinar bem e mal?”, reclama o garoto em certa tira. É claro que a intenção de Calvin é bem diferente da procura de Calvino pela piedade. Haroldo, o tigre, sabe muito bem o que o menino deseja: escapar da culpa de um alguma travessura misteriosa (que Waterson deixa a cargo do leitor imaginar o que aconteceu) chamada de o “incidente da salamandra”. Ainda assim, a pergunta é válida – quem decide o que é certo ou errado?

Nos anos seguintes, a questão do bem e do mal ganha novas cores quando Calvin não leva em consideração apenas os atos bons, mas a motivação. Isso é, como garoto mau que é, será que apenas praticar externamente ações boas lhe garantem o presente esperado? Temos de ser realmente bons ou apenas parecer bons? João Calvino entende que a religião deve vir do coração do ser humano, advindo de um desejo genuíno de fazer o bem. Ele diz:

“Ouvem: ‘Não matarás; não adulterarás; não furtarás.’ Não desembainham a espada para matança; não ajuntam seus corpos às meretrizes; não lançam as mãos aos bens alheios. Tudo isso está bem até aqui. Mas, de toda a alma, respiram mortes, abrasam-se de volúpia; olham de esguelha para os bens de todos e os devoram de cobiça. Já está, na verdade, ausente o que era o ponto principal da lei.”

Novamente, uma resposta irônica vem do tigre: “acho que o Papai Noel terá de lidar com o que tem”. Como vemos, Haroldo muitas vezes é o portador da opinião de Waterson, e essa resposta é sempre um bem humorado comentário sobre nossa dificuldade em fazer o que acreditamos ser o certo.

Se Calvin é bom ou mau, não podemos dizer. Sabemos que, na mente do garoto, suas ações não serão bem vistas aos olhos do bom velhinho. É nesses momentos, lidando com uma criatura quase onisciente que Calvin demonstra um pouco de culpa. Porém, o que Papai Noel diria? Como Calvin argumenta em outra das tiras natalinas, seu esforço para praticar o bem é muito maior do que o esforço de um bom menino, que tem prazer na virtude e nas boas ações.

A última tira

Felizmente para o garoto, Waterson nos dá uma resposta sobre essa questão, na última história natalina estrelada pelo garoto e o tigre. Pela primeira vez, adentramos em um ambiente fantástico que não parece surgir da mente de Calvin.

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Embora não saibamos a natureza desse relato (em busca do Papai Noel histórico?), a tira registra o que acontece na fábrica do Papai Noel antes de entregar os presentes. Os duendes têm problemas com o pedido de trinta páginas “desse tal de Calvin”, além de debaterem com seu patrão se o garoto é ruim ou bom. Algumas evidências favoráveis e contrárias à índole do menino são citadas, como o infame “incidente do miojo” (mais uma história não contada por Waterson), os ataques à Susie, além de declarações atenuantes de Haroldo e do Pai. Graça ou condenação? O veredicto de Calvin será dado aqui, na última tira de Natal. Apesar de todas as travessuras registradas nos dez anos da série, Papai Noel decide presentear o menino. A tira termina com o velhinho e o duende observando Calvin e Haroldo por seu monitor e descobrimos outro lado do universo de Waterson que não conhecíamos: Papai Noel parece ser tão real quanto o tigre de Calvin, e ele declarou o garoto justo.

Um padrão se repete em diversas sequências no último ano da série: um tipo de “redenção”, ou de “reconciliação” entre Calvin e alguns de seus inimigos. A escola, a babá e a culpa são vencidos, respectivamente, pela imaginação do garoto (Calvin consegue seu primeiro 10 em redação), pelo Calvinbol (ele consegue divertir-se com a babá) e pela bondade de Papai Noel. Há uma resposta para os problemas de Calvin. Bill Waterson e João Calvino têm em comum sua visão negativa da humanidade. Entretanto, eles também compartilham em seus escritos um desejo de ver o problema ser corrigido.

Calvino cria em um Deus onipotente, imutável e santo, que pune o pecado, mas está pronto a fazer o bem aos homens. Segundo o teólogo francês, os homens “tudo devem a Deus, são assistidos por seu paternal cuidado, é ele o autor de todas as coisas boas, daí nada se deve buscar fora dele”.

Para o reformador, o homem, totalmente corrompido, em nada contribui para o processo de salvação. É necessário que Deus tome a iniciativa de salvá-lo, desde o princípio dos tempos (a predestinação), transforme sua natureza (regeneração) e o preserve salvo até o dia do julgamento. Sua ênfase na ação divina sobre o homem dá-se pelo que o reformador entendia como graça – um dom entregue sem qualquer merecimento do homem, sem troca ou pagamento, onde o condenado (ainda que reconhecidamente culpado) era declarado justo porque Deus desejou desde a eternidade que Cristo levasse o castigo de seus eleitos.

“Quem poderia fazer isso, se o mesmo Filho de Deus não se fizesse filho do homem, e de tal forma tomasse o que é nosso, e nos transferisse o que é seu, e o que era inerentemente seu, pela graça se fizesse nosso? Portanto, apoiados neste penhor, confiamos ser filhos de Deus, porque o que por natureza era Filho de Deus, apropriou para si o corpo de nosso corpo, a carne de nossa carne, os ossos de nossos ossos, para que fosse precisamente o que somos, e não relutou em assumir o que nos era próprio, para que, por sua vez, a nós pertencesse o que ele tinha de propriamente seu, e assim ele, em comum conosco, fosse não só o Filho de Deus, mas também o Filho do Homem”

Não há expiação de pecados no perdão de Papai Noel. E é aqui que encontramos a fraqueza de todos os sistemas humanos e a força do Evangelho. Nos sistemas de redenção do mundo, ou precisamos alcançar o perdão ou o perdão é alcançado com injustiça – pois não há pagamento de dívida. O Evangelho pregado por Calvino e exposto na Palavra é completamente diferente. Ele é gracioso e justo. Ele envolve um preço altíssimo e graça completa. Somos maus, mas fomos considerados bons. Outro, porém, era bom e foi considerado mau. Se havia algum incidente do miojo em nosso histórico, não há mais. Que venham os presentes de Deus. Todo dia é Natal para quem está Cristo.