“Eu não posso carregar ninguém ao céu, nem mesmo sob pauladas”. Assim observou Lutero em 11 de Março de 1522, em um sermão em Wittenberg. Apesar de ser um tanto óbvio, Lutero se sentiu compelido a dizer isso porque em sua ausência de Wittenberg nos dez meses anteriores, certas pessoas ficaram impacientes com o progresso da reforma na cidade e apelaram a meios legais compulsórios e/ou violência para trazer as mudanças na doutrina e na adoração que tanto desejavam.
Lutero tinha, na verdade, dito a mesma coisa em um sermão para a mesma audiência no dia anterior. Insistindo de forma clara sobre a necessidade da fé em Cristo para a salvação, de onde necessariamente vem a fé e o amor por Deus e pelos outros, assim como a verdadeira adoração, Lutero enfatizou no sermão anterior que essa mesma fé surge da proclamação das promessas de Deus, não do uso da força: “eu não poderia, nem deveria, forçar qualquer um a ter fé”. De fato, o uso da força é, em última instância, na opinião de Lutero, desnecessário e infrutífero para o sucesso da expansão do reino de Deus, porque a palavra divina – encontrada na Escritura e proclamada pelos ministros ordenados de Deus – é quem realiza essa tarefa.
“A Palavra criou céus e terra e todas as coisas; a Palavra é quem vai realizar [a conversão dos homens], não nós, pobres pecadores”. De nossa parte, “devemos deixar a Palavra correr livre, sem adicionar nossas obras” – isso é, sem usar nossos meios de coerção. Assim, “devemos pregar a Palavra, mas os resultados devem ser deixados unicamente à vontade de Deus”.
Lutero descobriu um exemplo perfeito da habilidade da Palavra de expandir o reino de Deus sem um taco de baseball em sua própria experiência nos anos anteriores. “Eu me opus às indulgências e aos papistas, mas nunca pela força. Eu simplesmente ensinei, preguei e traduzi a Palavra de Deus; fora isso, não fiz mais nada. E enquanto eu dormia ou bebia a cerveja de Wittenberg com meus amigos Phillip e Amsdorf, a Palavra enfraqueceu o papado de tal forma que nenhum príncipe ou imperador jamais seria capaz. Eu não fiz nada; a Palavra fez tudo”.
É questionável se Lutero manteve sua posição sobre a prerrogativa exclusiva da Palavra para avançar o reino de Cristo nos anos seguintes. Cada vez mais alarmado pelos esforços extremos dos anabatistas para implementarem sua própria versão de um reino civil/espiritual pela força (o que significa, ainda bem, que nunca a possuíram em grandes quantidades), Lutero parece ter tolerado cada vez mais o uso de força recíproca para manter os anabatistas na linha, civil e (possivelmente) religiosamente. Porém, é possível, talvez, argumentar que sua posição se manteve consistente, e que a força contra os anabatistas endossada por ele era puramente por questões de restrição civil, não de uniformidade religiosa.
De qualquer forma, a disposição que Lutero demonstrou mesmo nos anos de 1520 perante o uso de meios legais e militares para reprimir desobediência civil nos lembram que sua doutrina do poder da Palavra dizia respeito especificamente ao ponto teológico de como o reino de Cristo é sustentado e expandido, não um endosso genérico de persuasão pacífica em qualquer contexto possível. Uma mão forte é necessária algumas vezes para manter cidadãos – ou, porque não, crianças – rebeldes na linha. Apenas a Palavra, entretanto, pode produzir fé genuína, esperança e amor por Deus em um homem, uma mulher ou uma criança.
Lutero encontrou um exemplo bíblico do poder exclusivo da Palavra de trazer renovo e reforma no relato da obra missionária de Paulo em Atenas em Atos 17. “Quando Paulo chegou em Atenas, uma cidade poderosa, encontrou no templo muitos altares antigos, e foi andando entre todos eles, mas não derrubou nenhum deles a chutes. Pelo contrário, se levantou no meio do mercado e disse que eles não eram nada além de objetos de idolatria, e pediu que as pessoas os abandonassem; veja, ele não destruiu nenhum pela força. Quando a Palavra tomou conta de seus corações, eles mesmos os abandonaram por conta própria”.
Lutero poderia, se quisesse, usar outra ilustração desse ponto na história da igreja, ao considerar o crescimento do cristianismo nos primeiros séculos. Os cristãos dos três primeiros séculos espalharam o evangelho exclusivamente por meio da proclamação. Na verdade, eles tinham pouca escolha. Como sua religião recém descoberta era considerada ilegal, eles eram consistentemente marginalizados de posições de influência política, social ou militar, e eram, pelo menos ocasionalmente, vítimas de intensa perseguição. Eles testemunhavam da realidade de que Deus, em Cristo, estava reconciliando o mundo consigo mesmo por meio de seus lábios e, às vezes, com suas vidas. Pela própria natureza da situação, eles não poderiam promover o reino de Cristo por meio de estabelecerem nações “cristãs” ou manobrando o aparato legislativo ou jurídico dos estados existentes. Notavelmente, esse foi o maior período de crescimento que a igreja cristã já experimentou, mesmo na ausência do fator da cerveja de Wittenberg.
A expansão inicial do cristianismo contrasta fortemente com a expansão inicial do Islamismo, nesse sentido. Desde o começo, Maomé e seus seguidores empregaram qualquer meio militar que tinham para avançar a expansão de sua religião. Em menos de uma década depois da morte de Maomé, os muçulmanos já haviam se espalhado de sua base na Península Arábica para conquistar a Palestina. Em menos de um século, já haviam conquistado a Síria, a Pérsia, o norte da África e muito da Península Ibérica. Tudo isso, claro, era pela força, mesmo que as “conversões” forçadas fossem diminuindo conforme o Islã se distanciava de sua base geográfica. Tais conquistas militares foram notáveis, mas não sem precedentes (pense em Alexandre, o Grande, por exemplo) e, assim, não foram sinal certo de favor divino. A rápida expansão do cristianismo sem os meios da força (e, na verdade, na presença de muita perseguição), por outro lado, é notável, e é possível argumentar que aponta para uma bondade providencial direcionada à doutrina defendida pelos cristãos primitivos.
Cristãos tem sido um tanto vagarosos para aprender a lição que Lutero, a Escritura e a história da igreja nos ensinam em conjunto sobre esse assunto. A tentação de confiar na força – seja pessoal, política ou financeira – para a expansão do reino de Cristo, mesmo quando ela não é propriamente usada, é constante. É o outro lado da moeda de não acreditar que a Palavra de Deus pode, de fato, no tempo perfeito de Deus, trazer pecadores para seu Reino, ou trazer esse Reino à sua realização escatológica. Um bom medidor de onde nossa confiança para o sucesso do evangelho está pode ser o otimismo/pessimismo que sentimos em relação ao resultado de eleições ou pontos específicos de legislações. Há, é claro, muitas razões para participar dos processos políticos para buscar o melhor estado civil possível para nós e nosso próximo, crentes e descrentes. Há, igualmente, muitas razões para não se preocupar demais com o sucesso ou fracasso desses esforços; somos, afinal de contas, herdeiros de um reino que não será alcançado por meio de processos políticos, mas irá florescer por meio da proclamação da promessa de Deus e o poder dessa proclamação de gerar verdadeiros cidadãos (isso é, justificados, santificados e eventualmente glorificados) desse reino.