Um livro recém-lançado leva o curioso nome de Saving Eutychus [Salvando Êutico]. O livro tem o propósito de encorajar a ajudar pregadores a pregarem sermões envolventes, afim de evitarem que suas congregações caiam da janela para a morte, ou algo parecido.
Veja, sou completamente a favor de pregadores se esforçarem para prender a atenção de seus ouvintes, apesar de me preocupar um pouco com o alto número de livros recentes sobre esse assunto que tendem a focar na mecânica da homilética e a passar por cima dos aspectos espirituais. Mas também não estou sugerindo que o autor desse livro ignoram a leve injustiça inerente desse título para com Paulo e talvez até com o próprio Êutico (será que a engenhosidade do título é grande demais para deixar passar?).
Entretanto, será que é possível oferecer uma interpretação dessa famosa passagem que possa reabilitar tanto o pregador quanto o ouvinte?
O episódio em questão é registrado por Lucas em meio a uma série de atividades evangelísticas e de encorajamento realizadas por Paulo e sua equipe de companheiros. Eles chegam a Trôade, onde Paulo tem a oportunidade de instruir os santos daquela cidade. Ao ler algumas interpretações populares, pode-se imaginar que Paulo começou a pregar em um horário relativamente comum – talvez 6 ou 7 da noite, digamos – e se deixou levar além da conta até por volta de 11 horas. Seguindo firme e forte até a meia noite, é mais do que Êutico pode aguentar – derrotado por uma mistura de tédio e cansaço, ele finalmente perde a batalha contra o sono e escorrega de seu assento na janela para seu fim mortal, quase que literalmente pregado até a morte. Mas não há nada para se preocupar! O apóstolo simplesmente cura o camarada e, sem se importar muito, continua impávido com seu sermão até o amanhecer. Que insensível, Paulo! Que desatenção, Êutico! As lições óbvias? Pregadores não devem se demorar e devem se certificar de que mantenham a atenção dos ouvintes, e/ou os ouvintes devem buscar a verdade de tal forma que não adormeçam quando ela está sendo pregada.
Mas é realmente isso que está acontecendo? Eu acho que não:
No primeiro dia da semana, estando nós reunidos com o fim de partir o pão, Paulo, que devia seguir viagem no dia imediato, exortava-os e prolongou o discurso até à meia-noite. Havia muitas lâmpadas no cenáculo onde estávamos reunidos. Um jovem, chamado Êutico, que estava sentado numa janela, adormecendo profundamente durante o prolongado discurso de Paulo, vencido pelo sono, caiu do terceiro andar abaixo e foi levantado morto. Descendo, porém, Paulo inclinou-se sobre ele e, abraçando-o, disse: Não vos perturbeis, que a vida nele está. Subindo de novo, partiu o pão, e comeu, e ainda lhes falou largamente até ao romper da alva. E, assim, partiu. Então, conduziram vivo o rapaz e sentiram-se grandemente confortados. (Atos 20.7-12)
Perceba, antes de mais nada, quando eles se encontram: no primeiro dia da semana. Foi nesse dia que o Cristo ressurreto repetiu a prática de se encontrar com seus discípulos para lhes falar a verdade para sua edificação. Por mais que a linguagem de “partir o pão” não requer que essa ocasião fosse necessariamente um culto de adoração onde a ceia do Senhor é celebrada, essa não seria uma suposição absurda.
Entretanto, nessa ocasião, os santos tinham o privilégio de ter o próprio Paulo rapidamente perante eles, e o apóstolo aproveita a oportunidade para pregar sobre a verdade. Veja, fica claro que Paulo pregou por algum tempo, mas também vale notar que não nos é informado quando ele começou a pregar. Isso é importante, porque pode nos ajudar a entender o que está acontecendo.
Poderia ser, então, que o que temos aqui é uma congregação de crentes de várias origens diferentes se reunindo conforme a oportunidade aparece? Várias fontes informam que Êutico era um nome relativamente comum para escravos. Se esse é o caso aqui, então podemos sugerir que Êutico – junto com vários outros nas mesmas ou em outras circunstâncias – foram ao culto assim que o dia de trabalho acabou, sendo que tarde da noite ou logo cedo eram os únicos horários em que tais reuniões eram possíveis para toda a igreja. É até possível sugerir que Êutico talvez já tivesse se reunido com os santos pela manhã. Plínio, o Jovem, governador da Bitínia e de Pontus, não muito tempo depois desses eventos, descreveu os cristãos…
… com o hábito de se reunirem em um dia fixo, antes do sol nascer, quando cantam em versos alternados um hino a Cristo, como se fosse um deus, e prestam um juramento solene de não realizarem más obras, jamais cometerem qualquer fraude, roubo ou adultério, nunca falsearem as palavras nem negarem a confiança quando forem chamados a isso; depois disso é de costume se separarem, e depois se reunirem novamente para a boa refeição – mas é comida ordinária e inocente (Livro 10, Carta 96).
Sem forçar demais a interpretação, espero que um retrato levemente mais favorável de Êutico e de Paulo comece a surgir. Por um lado, não é Paulo pregando um longo e tedioso sermão sem se importar com a capacidade dos ouvintes. Por outro, não é o tonto Êutico que simplesmente não consegue manter o foco ou é muito novo e fraco para acompanhar o ritmo.
O mais provável é que tenhamos aqui um grupo de cristãos sinceros e dedicados aproveitando a oportunidade de ouvir a Palavra de Deus do servo fiel do Senhor, Paulo, antes que ele vá para a próxima cidade. Eles se encontram quando podem, talvez no fim de um dia de trabalho (o que poderia ser bem tarde, para os escravos, sem mencionar outras ocupações, em um ambiente onde legislação de saúde e segurança laboral eram inexistentes). Eles chegam cansados, mas ávidos, acendendo as lâmpadas da sala para poder tirar o máximo daquelas poucas horas disponíveis. Sim, eles estão cansados (tanto o pregador quanto os ouvintes). Sim, está aconchegante. Mas essa é uma preciosa oportunidade, e eles estão dispostos a aproveitarem ao máximo.
Longe de criticar Paulo por pregar demais ou sentir pena de Êutico por se sujeitar a tal situação, devemos admirar esses homens pelo apetite pela comunhão com Deus e com seu povo. Sim, o jovem Êutico eventualmente sucumbe à atmosfera e cai da janela. Mas note que, uma vez restaurado, não é como se todo mundo decidisse encerrar a noite. Eles continuam até o raiar do dia, e não há nenhuma indicação de que Paulo tenha trancado as portas e colocado Sóprato, Aristarco, Secundo, Gaio, Timóteo, Tíquico e Trófimo na porta para evitar que as pessoas saiam.
Deixando de lado as questões práticas dos pregadores envolventes e dos ouvintes envolvidos, me pergunto quão ávidos nós somos para nos encontrarmos com Deus e com seu povo no dia marcado para ouvir a verdade sendo exposta, proclamada e aplicada? Quão determinados somos para tirar o máximo de nossas oportunidades de adoração? Estamos dispostos a trocarmos de turno ou fazermos horas extras para compensar nossos encontros com os santos? Se necessário, por perseguição ou alguma outra necessidade, estaríamos dispostos para nos encontrarmos antes do nascer do Sol ou na madrugada para podermos adorar o Senhor nosso Deus na companhia de seu povo?
Êutico nos deixa um bom exemplo. Claro, cair da cama é muito mais seguro que cair da janela do terceiro andar, mas, levando tudo em conta, penso que Êutico estava com o povo certo na hora certa e no lugar certo fazendo a coisa certa. Talvez essas questões já façam parte da vida de crentes em países islâmicos, por exemplo, ou em naquelas nações onde não há uma noção forte de cristianismo (por favor, note que não estou endossando essa noção, apenas reconhecendo sua existência). Esses são desafios que convertidos em famílias de não cristãos devem levar em conta, ou aqueles com cônjuges não convertidos, por exemplo.
Assim, que os sermões sejam envolventes, e que os olhos estejam sempre bem abertos sim, mas, acima de tudo, que nossos corações estejam abertos e ávidos para estarem onde Deus está se fazendo conhecido por meio da palavra pregada.