Talvez alguns questionem a relevância dos escritos de João Calvino para nosso tempo. Como um teólogo do séc. XVI pode nos ajudar? Acredito que, por sua dedicação em expor a Palavra com a maior fidelidade, os textos do mestre de Genebra são bastante proveitosos para os cristãos hoje. Nosso Cristo é o mesmo ontem e hoje, a Escritura não pode falhar tanto no 1536 quanto em 2010, e a humanidade continua debaixo da maldição de Adão. Se o crente procura uma boa exposição da Bíblia, encontra ótimo trabalho em Calvino, mesmo que não concorde em todos os pontos com o reformador. É por isso que até hoje muitos (como eu!) dedicam seu tempo a entender melhor o pensamento do controverso e mal compreendido teólogo francês.
Um bom exemplo é a forma como o Reformador lida com o problema daqueles que menosprezam as Escrituras em detrimento de supostas orientações do Espírito de Deus, muitas das quais contrárias à Palavra. Parece até que o pastor francês enfrentava desafios idênticos aos que os crentes atuais encaram. No capítulo nove, do livro I das Institutas, ele lida com muita lucidez esse problema. Lá, Calvino fala que “surgiram em tempos recentes certos desvairados que, arrogando-se, com extremada presunção, o magistério do Espírito Santo, fazem pouco caso de toda leitura da Bíblia e se riem da simplicidade daqueles que ainda seguem, como eles próprios a chamam, a letra morta e que mata” (1.9.1, textos de Calvino sempre em vermelho). Com a ajuda do reformador, vejamos como devemos evitar esse tipo de reinvidicação.
Provavelmente nos virá à memória alguém que conheçamos, que pensa de maneira semelhante aos contemporâneos do reformador, e outros leitores até tenham se sentido mal por parecerem tão “insensíveis ao toque do Espírito”. Talvez alguns de nós já fomos tratados como alguém que segue a letra morta, ao invés de deixar-se levar pelos “ventos do Espírito de Deus”. Mas o reformador sabe que nenhum dos apóstolos pensava assim.
“Eu, porém gostaria de saber deles que Espírito é esse de cuja inspiração transportam a alturas tão sublimadas que ousem desprezar como pueril e rasteiro o ensino da Escritura? Ora, se respondem que é o Espírito de Cristo, tal certeza é absolutamente ridícula, se na realidade concedem, segundo penso, que os apóstolos de Cristo e os demais fiéis da Igreja primitiva, foram iluminados não por outro Espírito. O fato é que nenhum deles aprendeu o menosprezo pela Palavra de Deus.” (1.9,1)
Para Calvino, o Espírito e a Escritura estão unidos por um “vínculo inviolável”, mas aqueles que tentam criar uma dicotomia entre esses dois elementos cometem sacrilégio e desrespeito para com Deus, sua Palavra e o próprio ministério do Espírito Santo.
“Logo, não é função do Espírito que nos foi prometido configurar novas e inauditas revelações ou forjar um novo gênero de doutrina, mediante a qual sejamos afastados do ensino do evangelho já recebido; ao contrário, sua função é selar-nos na mente aquela mesma doutrina que é recomendada no evangelho.”
Como já vimos, crescimento espiritual e leitura da Palavra não se separam.
“Se ansiamos por receber algum uso e fruto da parte do Espírito de Deus, imperioso nos é aplicar-nos diligentemente a ler tanto quanto ouvir a Escritura.” (1.9.2)
Porém, existem aqueles que negam a necessidade do estudo bíblico e enfatizam uma suposta orientação do Espírito Santo. Ainda hoje esse tipo de heresia existe, e muitas vezes vemos alguém enganando a si, afirmando ter uma revelação especial, quando aquilo que ela sustenta pode até ir contra a Escritura.
A resposta de Calvino pode parecer polêmica para alguns, mas, para ele, o Espírito Santo não irá além daquilo que está escrito. Isto é, ele não negará as Sagradas Escrituras, e nem pode fazê-lo. Evidentemente, alguns dirão que estamos prendendo Deus em uma caixa, mas o reformador responde:
“Alegam, com efeito, que é afrontoso que o Espírito de Deus, a quem todas as coisas devem ser sujeitas, seja subordinado à Escritura. Como se, na verdade, isto fosse ignominioso ao Espírito Santo: ser ele por toda parte igual e conforme a si mesmo; permanecer consistente consigo em todas as coisas; em nada variar! De fato, se fosse necessário julgar em conformidade com qualquer norma humana, angélica, ou estranha, então deveria considerar-se que o Espírito estaria reduzido a subordinação.”
Isto é: não há nada mais honroso que comparar o que o Espírito diz às igrejas com aquilo que ele escreveu às igrejas. Caso utilizássemos outra regra para definirmos o que é, ou não, verdadeiro, cairíamos na heresia de conformar o Consolador a algum padrão inferior a Ele mesmo. Deus não pode mentir, e aquilo que ele disse na Escritura, é aquilo que Deus Espírito diz aos seus. Qualquer ensino que desvirtue isso é anátema.
“Para que o espírito de Satanás não se insinue sob o nome do Espírito, ele quer ser por nós reconhecido em sua imagem que imprimiu nas Escrituras. Ele é o autor das Escrituras: não pode padecer variação e inconsistência para consigo mesmo. Portanto, como ali uma vez se manifestou, assim tem ele de permanecer para sempre.”
Existe ainda uma acusação comum contra aqueles que tentam manter-se fiéis à Palavra, e desejam que somente as Escrituras falem no púlpito, através de uma boa interpretação: eles seguem a letra morta, não o Espírito que vivifica (uma distorção do texto de 2 Coríntios 3.6). Calvino começa a última seção do capítulo 9 rebatendo essa falsa crítica.
“Portanto, morta é a letra, e a lei do Senhor mata a seus leitores, quando não só se divorcia da graça de Cristo, mas ainda, não tangindo o coração, apenas soa aos ouvidos. Se ela, porém, mediante o Espírito, é eficazmente impressa nos corações, se a Cristo manifesta, ela é a palavra da vida, a converter almas, a dar sabedoria aos símplices.” (1.9.3)
Há uma relação orgânica e viva entre Escritura e Espírito, de maneira que só conhece corretamente a Escritura aquele que está no Espírito. Ao mesmo tempo, somente pela Escritura podemos ter plena certeza das ações do Espírito e identificar falsas manifestações.
“Pois o Senhor ligou entre si, como que por mútuo nexo, a certeza de sua Palavra e a certeza de seu Espírito, de sorte que a sólida religião da Palavra se implante em nossa alma quando brilha o Espírito, que nos faz aí contemplar a face de Deus assim como, reciprocamente, abraçamos ao Espírito, sem nenhum temor de engano, quando o reconhecemos em sua imagem, isto é, a Palavra.”
Para Calvino, é ministério de Deus, em especial do Espírito, cuidar para que a mensagem da Escritura permaneça na mente dos cristãos. É comum ver igrejas que não seguem princípios bíblicos em seus cultos, apresentando a desculpa de que foram movidas pelo Senhor a isso. Devemos tomar cuidado com tais congregações.
“[Deus] enviou o mesmo Espírito, pelo poder de quem havia ministrado a Palavra, para que realizasse sua obra mediante a confirmação eficaz dessa mesma Palavra… Cristo abriu o entendimento aos dois discípulos de Emaús não para que, postas de parte as Escrituras, se fizessem sábios por si mesmos, mas para que entendessem essas Escrituras.”
Criar uma divisão entre o que a Bíblia diz e o que o Espírito Santo ensina é colocar Deus contra Deus. Não que tenhamos um Livro como divindade, mas porque devemos ter consciência de que ali estão guardados os pensamentos do próprio Criador. Fugir da Palavra em nome do Espírito é dizer que Deus, que não pode mentir, se contradiz, ou que o Consolador deixou seu ministério a fim de trazer inovações no Cristianismo. Tal postura é incompatível com a de um cristão e deve ser combatida. Que o Espírito de Cristo nos ajude nisso.
Nossa oração é que o Espírito fale sempre, por meio do que Ele mesmo designou e nos preparou.
Em Cristo,
Josaías Jr
P.S.: Adaptei esse post do blog JoãoCalvino.net. Espero que seja útil como os textos do reformador foram úteis a mim.