Também somos o que fazemos

Tiago Cavaco
Tiago Cavaco

[Nota do editor: O texto a seguir é uma compilação de 5 textos elaborados com a intenção de responder um questionamento a respeito da relação do cristão com o trabalho que surgiu após a pregação de um sermão no Evangelho de Marcos]

A partir do texto do Evangelho de Marcos sobre a multiplicação dos pães (Marcos 6.30-44) falamos também sobre descanso (porque essa era a intenção da viagem para o lugar deserto onde acontece o milagre). Ao falarmos sobre descanso falamos necessariamente de trabalho. E houve um apelo à compreensão bíblica de que o trabalho é uma ideia de Deus (assim como o descanso). E por isso uma coisa que deve animar os cristãos.

No sermão tive de reconhecer, em comparação com a maioria das pessoas na congregação, as vantagens que me assistem. Tenho o melhor emprego do mundo. Sou sustentado para estudar a Bíblia e valer uma pequena comunidade de crentes. Mesmo nos dias mais difíceis, que os há, é difícil querer virar-me contra o Patrão. Porque é a igreja que me paga, mas o Patrão é Deus. E parece-me que em caso de divergência não há sindicato que me valha contra semelhante chefia.

Depois do serviço de culto, duas pessoas provocaram-me a que as tentasse ir convencendo ao longo da semana através de posts do blog para essa difícil tarefa de ter alegria no trabalho quando o emprego não ajuda. É uma tarefa para a qual duvido estar à altura, mas tentar é um compromisso que tenho com as pessoas da comunidade. Por isso, vamos ver.

Nietzsche fazia pouco do cristianismo (e, de boleia1, do judaísmo) pela alegada obsessão da religião com a ideia da produtividade. Ajudou a estilhaçar alguma da harmonia para qual, sobretudo o Protestantismo, tinha contribuído ao unir a profissão comum de qualquer pessoa à sua fé (Miguel de Unamuno dizia que Lutero tornou civil o cristianismo, ou podemos sempre recordar a “Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo” de Max Weber). Desajudados pela curiosidade crescente com as religiões orientais que promovem a contemplação como uma espécie de grau acima do trabalho (uma tendência que o catolicismo, tipicamente mediterrânico, também mostra), estamos hoje num desequilíbrio entre um extremo vindo da herança pragmática protestante e o outro da fascinação com as críticas a essa herança. Ao primeiro as pessoas gostam de chamar capitalismo selvagem e diz: só és aquilo que produzes. O segundo, que não sei como as pessoas lhe gostam de chamar porque leva menos tareia2, diz: és aquilo que está para além do que fazes.

Esperando que este contexto sirva para esclarecer alguma coisa, acrescentaria ainda uma convicção pessoal. Confirmando que sou tudo, menos imparcial, nesta discussão. As Escrituras mostram uma procura por integridade e não para a fragmentação. Por isso Deus é tão sensível ao que os homens fazem. Porque o que os homens fazem mostra muitas vezes de uma maneira mais sincera o que sentem por Deus, acima da eloquência dos discursos religiosos. Se for seguro dizer que o que somos não é apenas o que fazemos, é igualmente seguro dizer que também somos o que fazemos.

Após este longo prelúdio, começaria por persuadir a favor da reconexão. Voltar a ligar o nosso coração àquilo que fazemos, partindo do princípio que essa relação pode andar meio desconjuntada. Voltar a ligar a nossa fé ao que fazemos nos nossos empregos (e com os nossos empregos). Porque, em absoluto, e mesmo que as nossas profissões sejam pouco religiosas, continuamos a acreditar que é Deus o nosso patrão. É um primeiro passo. A minha explicação é fraca, mas o princípio que me leva a tentar defendê-la tão desajeitadamente é precioso. Deus está interessado em meter-se na nossa profissão.

Quatro empregos bíblicos pouco tradicionais

Quatro empregos que a Bíblia conta e que, na sua aparente estranheza, podem ajudar-nos a olhar para o nosso, pensando que Deus está interessado no assunto.

1. Para todos os efeitos, e mesmo que a primeira carreira tenha sido o ar calmo e beato do pastoreio, Davi foi Rei. Governante, Presidente, Estadista. E também soldado. Alguns dos Salmos são a prova que em muitas horas de serviço, Davi não descortinou grande sentido na sua carreira. Antes pelo contrário. Como seria possível que semelhante distinção profissional acarretasse tal avalanche de problemas? Uma das partes mais difíceis era ter um emprego que meia volta envolvia pessoas a quererem matá-lo e Davi, tendo a consciência que Deus está interessado no trabalho dos Seus filhos, limitava-se a confiar. É certo que se queixava, que barafustava3 e que aqui e ali descambava mesmo em auto-comiseração. Mas a sua carreira exigente permitiu-lhe também a reputação do Rei judeu mais popular de sempre e de um dos maiores poetas de toda a História. Deus estava interessado na profissão de Davi. E Davi percebia-o.

2. Obadias, mordomo de Acabe e Jezabel (não confundir com o profeta Obadias). Basicamente, Obadias organizava a casa dos piores reis de toda a Bíblia. Quando Jezabel começou a sua campanha de paganização e mandou matar os profetas, Obadias abrigou e escondeu cem deles em duas cavernas, alimentando-os. Obadias era um homem de Deus trabalhando com monarcas do Diabo. Quando se encontra com Elias, provavelmente o profeta mais heróico do Antigo Testamento, precisa de lhe explicar que é difícil trabalhar naquela empresa, mas até aí era possível ser fiel a Deus. Aconselha alguma calma a Elias pelo risco de vida que ele próprio, Obadias, corria. A Palavra parece demonstrar que os dois tipos de fidelidade a Deus eram possíveis a partir destes dois homens: o do homem que tem o emprego numa companhia conduzida pela malícia da mulher do patrão, e o do ativista corajoso que denuncia a corrupção dos governantes. Deus estava interessado na profissão de Obadias. E Obadias percebia-o.

3. Lídia trabalhava na indústria da moda. É certo que haverá diferenças entre a venda de púrpura de então e o mercado de alta-costura de hoje, mas a relação existe. Lídia era um exemplo de empreendimento (ou como hoje gostamos de dizer de uma maneira meio saloia4, uma entrepreneur). Converte- se quando ouve a pregação de Paulo na sua cidade, em Filipos. E apercebemo-nos que rapidamente a sua casa se torna um centro de adoração e estratégia missionária. Lídia torna-se um exemplo de iniciativa e ousadia de testemunho, possivelmente em meios que temos como pouco inclinados para a fé. Deus estava interessado na profissão de Lídia. E Lídia percebia-o.

4. Onésimo. Onésimo é um escravo que foge do seu senhor, Filemon. Entretanto, Onésimo converte-se através do testemunho de Paulo e Paulo resolve escrever a Filemon, que também era cristão, apelando ao perdão. Calculamos que não deve ser fácil ser escravo (embora as condições da escravatura na Antiguidade concedessem algumas liberdades cívicas assinaláveis), mas o fato é que a partilha da fé do senhor de quem tinha fugido não assegura que Onésimo passava a ficar livre da antiga responsabilidade. Paulo tem de pedir. A carta incluída no Novo Testamento não nos dá os detalhes do desfecho. Mas aponta que até para um emprego escravo seria necessário demonstrar fidelidade à autoridade. Deus estava interessado na profissão de Onésimo. E Onésimo percebia-o.

As preferências laborais de Deus

Se é certo que Deus gosta do trabalho, isso não quer dizer que qualquer trabalho satisfaz Deus. Deus preferia o pastoreio de Abel à agricultura de Caim. Deus preferia o desemprego de Raabe ao seu rendimento certo enquanto prostituta. Deus preferia que Jonas fosse um profeta devorado a um ex-profeta. Deus preferiu a redução dos hábitos de leitura dos Efésios à sua indústria de livros esotéricos. Deus preferiu que os Tessalonicenses prosseguissem nos seus turnos laborais cotidianos à espera pelo regresso de Jesus nos telhados das suas casas. Porque Deus valoriza o trabalho, as pessoas que O buscam expõem-se às Suas preferências. E por isso podem ter de mudar de emprego.

Trabalhando para depender

Simone Weil dizia que não conhecia lavradores ateus. Porque as pessoas que mais dependiam da sua força para trabalhar na terra sabiam que ao mesmo tempo dependiam também de outra força sobre a qual não dominavam. Num mundo de publicitários e informáticos, a tendência é, ainda que inconscientemente, sentir que o nosso trabalho é um ciclo que se completa dentro do nosso próprio controle. A ideia de depender de fatores externos frustra-nos. Perante qualquer adversidade provocada por outros, é o próprio sentido da nossa vocação que fica colocado em causa. O agricultor cansava-se, mas via o fruto. O operário cansa-se e só vê uma pequena parte do processo de produção. Naturalmente, o velho cansaço físico do homem que trabalha na terra é mais produtivo que o cansaço da ausência de horizonte pós-industrial. Os antigos iam para a cama arrasados. Nós vamos para a cama deprimidos.

O Cristianismo, que não precisa combater o progresso tecnológico, ensina que somos criaturas dependentes. E que isso é uma bênção. Muitas vezes a nossa infelicidade laboral é o resultado de aspirarmos à auto-suficiência. Não dá para ser um bom adorador ao mesmo tempo em que nos fingimos de deuses. Ironicamente, o melhor profissional é aquele que se sente privilegiado por participar. Da mesma maneira que Deus convidou o homem para dar nomes aos animais. O pior profissional é o que se acha insubstituível. Deus mete-lhe um elefante à frente e ele queixa-se do tamanho das orelhas.

Criatividade e humildade

Há um provérbio que diz que “só trabalha quem não sabe fazer mais nada”. Não vem na Bíblia, tresanda a chica-espertice5, mas talvez nos sirva para alguma coisa. Quando Jesus visita a casa de Marta, Maria e Lázaro, três irmãos, Maria fica sentada a ouvi-lo enquanto Marta trabalha sem parar. Sabemos que Marta se queixa da passividade de Maria e que Jesus, algo inesperadamente, esclarece que, de fato, Maria escolheu “a melhor parte”. Não por ser espertalhona mas porque genuinamente queria aproveitar todos os momentos com o Mestre. A partir desta história não faltam sociólogos que dizem que os Católicos imitam Maria na sua contemplação, e os Protestantes, Marta, na sua hiper-atividade. A simplificação não deixa de ter graça e ser útil para ganharmos perspectiva sobre nós próprios.

Ter uma relação cristã com o trabalho e o descanso é tão mais difícil pelo fato de crermos que no Céu os esforços são desnecessários. Darmos por nós a acreditar que aqui o trabalho tem de ser mais suportado que saboreado não é difícil. Ainda mais num contexto onde nos impacientamos esperando uma espécie de Paraíso na Terra chamado “realização pessoal” (os Céus sabem como tenho vontade de partir para a violência quando ouço as pessoas a falar sobre realizarem-se pessoalmente – mas Deus dá-me calma). Quando os cristãos acreditam que o trabalho é bom não é porque enquanto o praticamos nos conhecemos melhor (e toda essa metafísica narcisista de “nos descobrirmos a nós próprios”, “nos superarmos” ou “transpormos os nossos limites”), mas porque conhecemos melhor Deus. Trabalho é Teologia. Essa operação é da mais pura criatividade (Chesterton que dizia que Deus era uma criança contente com uma brincadeira que acabara de inventar ao dar ordem ao sol para que se levantasse). Ao mesmo tempo em que pedagógica para nós, chama-nos a concordar com a qualidade da criação de Deus sem termos a patente da invenção. Se a criatividade nos faz arriscar, certamente o louvor ao Criador nos oferece humildade.

No meio destes cinco textos trapalhões, eu diria às duas queridas pessoas da minha congregação de São Domingos de Benfica que me pediram para ser mais convincente sobre o assunto do trabalho: os nossos empregos, por mais chatos que sejam, são a prova que Deus nos deseja criativos e humildes.

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1 de carona

2 apanha menos

3 esperneava

4 provinciana

5 parece muito profunda

 

Gentilmente cedido por Tiago Cavaco, adaptado de uma série de cinco posts de seu blog (parte 1, 2, 3, 4 e 5)